quinta-feira, 1 de maio de 2025

OPERA MUNDI: DO DIÁRIO DE ESTELLA D'ANGELO CURSANO (SÉRIE: OS CEIFADORES)

 Por  Samuel da Costa (Itajaí, SC) e Clarisse Cristal (Balneário Camboriú, SC)

 

            O meu universo muito particular é a literatura, as belas-letras para ser mais específica, pois sou bibliotecária de profissão, especialista em avaliação e reparo de livros, um trabalho silencioso e solitário posso assim dizer. Passo os meus dias entres livros, revistas e jornais antigos, muitas das vezes usando máscaras, luvas e aventais. Eu estabeleci o meu nome no mercado de livros raros e afins, a partir das boas relações profissionais e afetivas, que fui construindo ao longo do tempo. E eu acabei entrando em uma rede de profissionais do universo livreiro, das raridades e análises, que se indicavam trabalhos uns para os outros. Vou ser mais específica aqui, às vezes sou contratada para avaliar livros, em bibliotecas particulares, geralmente são situações sui generis. Geralmente eram divórcios tumultuados e disputas legais de espólios, geralmente são pessoas bem posicionadas na sociedade, que levam em conta a discrição.

            E vou reportar aqui, justamente uma situação delicada, uma conhecida advogada, que eu já tinha trabalhado para ela anteriormente. Ela requisitou os meus serviços, para avaliar uma biblioteca particular e digo que foi um convite vago e enigmático, um tanto fora dos padrões profissionais que eu estava acostumada até então. A então proeminente advogada, que requisitou os meus préstimos, era de primeira linha, eu bem sabia que eu iria ficar um bom tempo ocupada, fazendo um trabalho meticuloso. Eu provavelmente analisaria uma enorme biblioteca particular, de algum erudito, um alto funcionário do sistema judiciário, um grande advogado ou algo que o valha. Pois a advogada, de primeira linha, era conhecida por ser a advogada dos advogados e advogadas e geralmente em situações delicadas. E a minha mente fecunda, não parou por aí, como o convite nada dizia sobre quem era o proprietário ou a proprietária da biblioteca. Então fiz uma pesquisa discreta e fiquei sabendo que nenhuma figura da sociedade acadêmica, do mundo literário, da alta sociedade ou mesmo do mundo jurídico, tinha falecido ou mesmo passando por um aparente e ruidoso divórcio.

            Aquietei-me, fiquei à espera de algum jovem assistente, a me procurar no meu local de trabalho. Mas para a minha surpresa, a proeminente advogada, literalmente bateu na minha porta, ela em pessoa, me procurou na minha casa ao final da tarde. Chegou sem avisar, estava um tanto nervosa e foi logo me situando do ocorrido. Dize-me que uma advogada conhecida e reconhecida, Estella D’Angelo Cursano, foi dada como desaparecida há mais de um ano. Ela é discreta, de idade avançada, solteira, sem filhos e expoente de duas numerosas famílias. Por indicação das ordens dos advogados, a advogada dos advogados ficou incumbida de acompanhar as investigações do desaparecimento de Estella D’Angelo Cursano.

            Não precisava, mas a minha cliente me pôs ciência de quem era a advogada Estella D’Angelo Cursano. Vinda há décadas do interior, trabalhou por anos em uma rede hoteleira local, para depois ir trabalhar na imprensa local, em rádios, jornais e revistas. Sempre com a função de secretária e secretária executiva. Depois foi trabalhar em bancas de advogados, foi a primeira leva de mulheres a se formar e exercer as ciências jurídicas. Durante décadas foi trabalhar como assistente jurídica de promotores e juízes. Bem quista e querida no meio jurídico, bem vista por toda a alta sociedade indo parar nas classes proletárias. E particularmente a conhecia dos meios literários alternativos, ufológicos, espíritas e esotéricos, uma militância pouco conhecida do grande público.  

            Assim me explicou a minha contratante, que eu deveria manter sigilo total, para o trabalho, pois eu só não iria tão somente analisar a biblioteca da advogada desaparecida eu também deveria analisar as correspondências dela. E o que por si só era um tanto delicado, pois ali estava décadas dos bastidores do judiciário e jurídicos e que se misturava com o lado pessoal de Estella D’Angelo Cursano. Confesso que eu não conhecia o lado profissional da advogada, mas conhecia bem a produção literária dela e os círculos alternativos que andávamos.

       Eram dois universos distintos, que a advogada separava bem. E senti um certo exagero, por parte da minha contratante, pelo sigilo da tarefa que iria assumir, pois o sigilo é bem comum nesses tipos de trabalho. E eu não disse nada, mas tive a estranha sensação, que eu fui contratada de fato, para jogar luzes no caso nebuloso do desaparecimento da Estella. E provavelmente um atestado de óbito estava por vir. Então a minha contratante, salientou que Estella D’Angelo Cursano, mantinha uma farta correspondência, com intuições culturais, institutos de pesquisas, bibliotecas, editoras, selos literários, editoriais e afins. Era esta correspondência literária, em particular, que eu iria me ater. Por fim, estava entrando em um campo desconhecido, onde desconhecia as regras do jogo e os próprios jogadores. Alea jacta est bradei em alto e bom som para mim mesma.    

Fragmento do livro Opera mundi, texto de Clarisse Cristal, poetisa, contista, cronista, novelista e bibliotecária em Balneário Camboriú, Santa Catarina.

Argumento de Samuel da Costa, poeta, contista, cronista e novelista em Itajaí, Santa Catarina.


 

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