Por Samuel da Costa (Itajaí, SC) e Clarisse Cristal (Balneário Camboriú, SC)
O meu universo muito particular é a literatura, as belas-letras para ser mais
específica, pois sou bibliotecária de profissão, especialista em avaliação e
reparo de livros, um trabalho silencioso e solitário posso assim dizer. Passo
os meus dias entres livros, revistas e jornais antigos, muitas das vezes usando
máscaras, luvas e aventais. Eu estabeleci o meu nome no mercado de livros raros
e afins, a partir das boas relações profissionais e afetivas, que fui
construindo ao longo do tempo. E eu acabei entrando em uma rede de
profissionais do universo livreiro, das raridades e análises, que se indicavam
trabalhos uns para os outros. Vou ser mais específica aqui, às vezes sou
contratada para avaliar livros, em bibliotecas particulares, geralmente são
situações sui generis. Geralmente eram divórcios tumultuados e disputas legais
de espólios, geralmente são pessoas bem posicionadas na sociedade, que levam em
conta a discrição.
E vou reportar aqui, justamente uma situação delicada, uma conhecida advogada,
que eu já tinha trabalhado para ela anteriormente. Ela requisitou os meus
serviços, para avaliar uma biblioteca particular e digo que foi um convite vago
e enigmático, um tanto fora dos padrões profissionais que eu estava acostumada
até então. A então proeminente advogada, que requisitou os meus préstimos, era
de primeira linha, eu bem sabia que eu iria ficar um bom tempo ocupada, fazendo
um trabalho meticuloso. Eu provavelmente analisaria uma enorme biblioteca
particular, de algum erudito, um alto funcionário do sistema judiciário, um
grande advogado ou algo que o valha. Pois a advogada, de primeira linha, era
conhecida por ser a advogada dos advogados e advogadas e geralmente em
situações delicadas. E a minha mente fecunda, não parou por aí, como o convite
nada dizia sobre quem era o proprietário ou a proprietária da biblioteca. Então
fiz uma pesquisa discreta e fiquei sabendo que nenhuma figura da sociedade
acadêmica, do mundo literário, da alta sociedade ou mesmo do mundo jurídico,
tinha falecido ou mesmo passando por um aparente e ruidoso divórcio.
Aquietei-me, fiquei à espera de algum jovem assistente, a me procurar no meu
local de trabalho. Mas para a minha surpresa, a proeminente advogada,
literalmente bateu na minha porta, ela em pessoa, me procurou na minha casa ao
final da tarde. Chegou sem avisar, estava um tanto nervosa e foi logo me
situando do ocorrido. Dize-me que uma advogada conhecida e reconhecida, Estella
D’Angelo Cursano, foi dada como desaparecida há mais de um ano. Ela é
discreta, de idade avançada, solteira, sem filhos e expoente de duas numerosas
famílias. Por indicação das ordens dos advogados, a advogada dos advogados
ficou incumbida de acompanhar as investigações do desaparecimento de Estella
D’Angelo Cursano.
Não precisava, mas a minha cliente me pôs ciência de quem era a advogada
Estella D’Angelo Cursano. Vinda há décadas do interior, trabalhou por anos em
uma rede hoteleira local, para depois ir trabalhar na imprensa local, em
rádios, jornais e revistas. Sempre com a função de secretária e secretária
executiva. Depois foi trabalhar em bancas de advogados, foi a primeira leva de
mulheres a se formar e exercer as ciências jurídicas. Durante décadas foi
trabalhar como assistente jurídica de promotores e juízes. Bem quista e querida
no meio jurídico, bem vista por toda a alta sociedade indo parar nas classes
proletárias. E particularmente a conhecia dos meios literários alternativos,
ufológicos, espíritas e esotéricos, uma militância pouco conhecida do grande
público.
Assim me explicou a minha contratante, que eu deveria manter sigilo total, para
o trabalho, pois eu só não iria tão somente analisar a biblioteca da advogada
desaparecida eu também deveria analisar as correspondências dela. E o que por
si só era um tanto delicado, pois ali estava décadas dos bastidores do
judiciário e jurídicos e que se misturava com o lado pessoal de Estella
D’Angelo Cursano. Confesso que eu não conhecia o lado profissional da advogada,
mas conhecia bem a produção literária dela e os círculos alternativos que
andávamos.
Eram dois universos distintos, que a advogada separava bem. E senti um certo
exagero, por parte da minha contratante, pelo sigilo da tarefa que iria
assumir, pois o sigilo é bem comum nesses tipos de trabalho. E eu não disse
nada, mas tive a estranha sensação, que eu fui contratada de fato, para jogar
luzes no caso nebuloso do desaparecimento da Estella. E provavelmente um
atestado de óbito estava por vir. Então a minha contratante, salientou que
Estella D’Angelo Cursano, mantinha uma farta correspondência, com intuições
culturais, institutos de pesquisas, bibliotecas, editoras, selos literários,
editoriais e afins. Era esta correspondência literária, em particular, que eu
iria me ater. Por fim, estava entrando em um campo desconhecido, onde desconhecia
as regras do jogo e os próprios jogadores. Alea jacta est bradei em alto e bom
som para mim mesma.
Fragmento
do livro Opera mundi, texto de Clarisse Cristal, poetisa, contista, cronista,
novelista e bibliotecária em Balneário Camboriú, Santa Catarina.
Argumento
de Samuel da Costa, poeta, contista, cronista e novelista em Itajaí, Santa
Catarina.
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