sábado, 1 de novembro de 2025

O "QUE" DA INTERSECÇÃO ENTRE A FOTOGRAFIA E A PSICANÁLISE

Por Catarina Denise Rabello Osoegawa (São Paulo, SP)

 

No espaço do silêncio entre o clique da máquina fotográfica e a sensação de um silêncio perturbador no divã de análise, alguns paralelos instigam-me a questões quase indecifráveis.  As narrativas que se descortinam entre um silêncio e outro, entre uma imagem e outra, ora se desnudam, ora se escondem, ora se fragmentam em uma correnteza de significantes que se movem em direção a uma nuvem de metáforas.

 Assim como na fotografia, no jogo de luz e sombras, as imagens nos seus contornos se desvanecem à medida que a luz se divide em diferentes planos e texturas mantendo-se apenas o foco central com nitidez, no percurso da análise, coincidindo com o “clique” do inconsciente, irrompe um rojão que explode na consciência, recuperando um segredo guardado que fora fina e longamente elaborado, expurgando a sombra que o aprisionava. Libera-se em uma apresentação potencialmente transformadora o insight. Este pode ser múltiplo, único, rápido ou mais prolongado, de qualquer maneira conserva a sua característica de provocar um êxtase a quem o reconhece em seu valor de comunicar algo surpreendente com a aparência de novo e conhecido ao mesmo tempo.

Começar de novo é uma experiência comum a cada sessão de análise e a cada sessão fotográfica, como se um condutor se dirigisse sempre ao mesmo destino comum e apaixonante. Da semiótica ao mundo das narrativas, desde as mais subjetivas até às documentais, históricas, ficcionais, às mais poéticas, o humano se aventura a provocar e ser provocado pela linguagem, e trilha sem saber os caminhos que o levam a realizar sua vida pulsional.



Sem saber como nem porque, aventurei-me ao estudo da linguagem e somente após uma longa trajetória profissional, passando pela Fonoaudiologia, Psicologia e Psicanálise pude encontrar-me com o que faria sentido na intersecção destes campos com a Fotografia. Descobri que algumas perguntas são capazes de elevar o grau de ansiedade frente a uma ausência de resposta, enquanto outras, dependendo da forma como se questiona, são capazes de resgatar caminhos mais criativos e favoráveis à continuidade de uma jornada.

Em Introdução à Psicanálise e as Neuroses de Guerra, texto escrito em 1918, Freud tratava de um tema dos mais atuais para a época. O resultado deste trabalho apresentado no Quinto Congresso Psicanalítico Internacional em Budapest, levou as autoridades à promessa de estabelecerem centros psicanalíticos para tratar e estudar a natureza dos intrincados distúrbios produzidos pela guerra. Embora essa proposta se perdesse com o final da Primeira Guerra Mundial em 11 de novembro de 1918, esse episódio marcou uma grande influência na difusão da psicanálise.

Alguns dos fatores que a psicanálise havia reconhecido e descrito ao trabalhar com neuroses em tempos de paz observou-se estarem igualmente presentes nas neuroses de guerra, como a origem psicogênica dos sintomas, a importância das pulsões inconscientes e o papel desempenhado pelos mecanismos da repressão na produção das neuroses.



A teoria da etiologia sexual das neuroses acabara de testemunhar ao mundo pós-guerra que as neuroses tinham a sua origem em momentos bem precoces do desenvolvimento psicossexual, e os efeitos das feridas narcísicas à frustração no amor refletiam-se na vida adulta em forma de sintomas em resposta às exigências de uma libido insatisfeita.

Na elaboração dos conceitos e fundamentos da teoria psicanalítica, Freud incluiu em suas descobertas elementos da cultura, da mitologia, da história das religiões e da literatura. No texto de 1919, intitulado ‘Estranho’ reporta-se ao tema da estética, não somente relacionada à teoria da beleza, mas à teoria das qualidades do sentir. Relata Freud: “O analista opera em outras camadas da vida mental que o levam, eventualmente, a recorrer ao campo da estética para compreender a natureza dos impulsos emocionais. O tema do ‘estranho’ é um desse tipo”. [1]

Suas buscas no campo da semiologia levaram-no a compreender o processo da criação de sentido dos termos   unheimlich (estranho) e o seu oposto heimlich (familiar), concluindo após longo e detalhado estudo, que estas palavras embora opostas, apareciam nos textos literários com uma raiz semântica muito semelhante.  O estranho que remete ao assustador, esquisito, misterioso e não familiar, é comum também ao que é familiar capaz de causar estranhamento. A lembrança emocional deste conteúdo oculto em uma memória distante, ao retornar à consciência, mostra-se como algo incompreensível com aparente falta de lógica, não familiar, causando espanto e desejo de que permaneça oculta para sempre. Freud relaciona esta ideia ao retorno do reprimido inconsciente que irrompe na vida mental em forma de sonhos, chistes, atos falhos e sintomas incompreensíveis, causando estranhamento, dor e angústia.



Sob a perspectiva da psicanálise, a arte se coloca como uma possibilidade de expressão do inconsciente, uma via de acesso ao conteúdo reprimido, sem necessariamente causar a sensação de estranhamento ou transformar-se em angústia.

No processo da produção artística a energia pulsional agressiva e o conflito de forças das vivências traumáticas que poderiam cristalizar-se em forma de sintoma, passam por um processo complexo de metamorfose e adquirem um valor estético capaz de serem comunicados e aceitos socialmente.

Segundo Donald Winnicott (1896-1971), a atividade criativa e artística está intimamente relacionada ao ato de brincar e ao conceito de objeto transicional. O brincar torna-se um espaço potencial onde a criatividade pode emergir, favorecendo a criação do objeto transicional, o qual desempenha um papel primordial no equilíbrio psíquico, estruturando a interface entre o mundo interno e o mundo externo. Winnicott afirma que o desenvolvimento da criatividade é essencial na promoção da saúde, funcionando como importante recurso terapêutico para a expressão simbólica do sofrimento   nos processos de ressignificação e elaboração das vivências traumáticas. Especialmente em casos de psicopatologias severas, a abordagem winnicottiana contribui para a reorganização psíquica, reduzindo o isolamento e auxiliando a reintegração social do paciente.

Roland Barthes (1915-1980), filósofo, escritor, crítico literário, semiólogo francês, expoente da intelectualidade contemporânea, escreveu um estudo filosófico sobre o processo fotográfico em seu livro A Câmara Clara-Nota Sobre a Fotografia, publicado no ano de sua morte, em 1980. Barthes explorou a fotografia não como um mero registro do real, mas como uma linguagem que veicula sentidos em vários níveis. A fotografia, para Barthes revela uma dualidade paradoxal: por um lado é um registro quase literal do real, do que esteve diante da lente, o referente. Por outro lado, é uma construção que, como toda linguagem, está sujeita a normas e ritos sociais e culturais que podem desviar do sentido original, incluindo as distorções e mentiras como um fenômeno social que invade todas as áreas da cultura.

Barthes elabora a tese de que a fotografia, compreendida como linguagem, não expressa uma correspondência linear entre seus significantes, as imagens, e seus significados, as interpretações. O fotógrafo, ao selecionar um objeto ou situação, já estaria criando um mito ao transformar algo que lhe é íntimo e faz parte da sua subjetividade em algo coletivo e natural. A fotografia é como um teatro primitivo, cria-se um cenário a partir de um impulso de vida que evoca ao mesmo tempo o instante da morte. O real não está na imagem, surge no momento da criação e desaparece da cena com o clique da máquina. A imagem fotográfica congelada indica um real que se perdeu, que fez parte do infinito caminho entre o desejo e a lente do fotógrafo.

Ao interpretar o momento do clique da câmera como o momento da morte, Barthes acentua que a fotografia é única e irreproduzível.  Sempre haverá um sujeito com sua história por detrás de cada registro fotográfico, e aquela imagem que poderia causar algum espanto ao seu autor por não ter acesso direto ao que o motivou, ao invés disso, proporciona realização, satisfação e prazer. O trabalho criativo eleva-se à categoria de arte, e o artista pode expressar sem medo algo que emerge do inconsciente. A criação revela apenas traços indicativos daquele ‘o que’, que permanece intricado à história e subjetividade do autor, algo familiar e estranho ao mesmo tempo, porém, não assustador. Este o “Que” que desponta da criatividade e pode causar surpresa, contempla um potencial de identificação entre o artista e o espectador, como se uma comunicação inconsciente se fizesse presente entre ambos. Assim como nos chistes o riso revela um significado oculto que pode ser compartilhado, na fotografia algo que aproxima o autor do espectador é revelado entre ambos como familiar e capaz de extrair daquele momento um flash de surpresa e cumplicidade.  

O ‘Que’ do desejo inconsciente recuperado e perdido ao mesmo tempo, transforma-se em combustível capaz de alimentar as múltiplas faces das narrativas, algumas passíveis de serem vistas e questionadas, outras de serem admiradas e sentidas, outras de serem profundamente lidas, refletidas e interpretadas. De qualquer forma, o fotógrafo estaria sempre diante do seu autorretrato tentando comunicar algo, qualquer que fosse a intenção da sua fotografia, produzindo sensações de estranhamento ou contemplação... A fotografia segundo Barthes pode ser vista como uma autobiografia, e como ele dizia, toda autobiografia é ficcional e toda ficção, autobiográfica.

Sem esquecer o poder social da linguagem, Barthes permanece atual nas narrativas de transformação — seja pela psicanálise, pelo jornalismo ou pela fotografia. A linguagem, em suas variadas formas e códigos, detém imenso poder de gerar efeitos coletivos. As narrativas fotográficas contemporâneas, ao abordar temas como injustiça social e desafios ambientais, propõem um olhar crítico sobre problemas emergentes, afirmando: não deixem de ver o estranho como verdadeiramente estranho, pois esse o “que” da fotografia documental que nos impacta e nos assusta — é profundamente real.

 

 Obs.: As fotografias foram tiradas no Parque Nacional "Los Cardones", Argentina.

 

Referências

·        Barthes, R. A Câmara Clara. Nova Fronteira, 1984 (original: 1980, francês)

·        Freud, S. (1976). Introdução à Psicanálise e as Neuroses de Guerra. Imago, vol. XVII, pp. 259-265, 1919

·        Freud, S. (1976). Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente. Imago, Volume VIII, 1905.

·        Freud, S. (1976). O Estranho. Imago, v. XVII, pp. 273–314, 1919.

·        Winnicott, W. D. O Brincar e a Realidade. Imago, 1975.

 

 

 

Sobre a Autora

Catarina Denise Rabello Osoegawa mora em São Paulo (SP) e em Florianópolis (SC). Psicóloga e psicanalista, membro efetivo do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae em São Paulo, atuou como psicóloga na rede pública municipal de São Paulo pela Secretaria Municipal da Saúde. Graduada em Fonoaudiologia, atuou como fonoaudióloga do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo. Paralelamente à atuação clínica, dedica-se à fotografia, sendo reconhecida em exposições como a Metamorfose III, realizada em Brasília em 2025.



[1] Freud, S. (1919). O Estranho. Imago, Volume XVII, p.275 (1976)

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