sábado, 1 de novembro de 2025

VEADEIROS EM CHAMAS

Por Catarina Denise Rabello Osoegawa  (São Paulo, SP)

 

Todo historiador carrega consigo uma dor, que embora profunda, se revela na superfície da sua biografia. Os significantes de pequenas unidades linguísticas tal como a dor e o sentido têm a propriedade de remeter a inúmeras formas de historiar, desenhando rotas e mudanças de um traçado sempre inesperado. O sentido, que dirige para longe, para a frente ou para trás, que nos arremessa na curva da retomada ou da inversão, se mantém pleno de simbolismos e comoção.

Ser um ser de linguagem e conseguir transformar as nuances dos sentimentos em uma expressão plena de sentidos, é algo que exige trabalho árduo de confecção que a inteligência artificial ainda não ousa indagar. O historiador se permite revelar até onde se autoriza, mas ao ser autobiografado, se desnuda sem consciência em meio às fagulhas do inconsciente sempre à espreita, aguardando uma confirmação do que fora simplesmente um conteúdo fragmentado, que agora se deixa ser ressignificado.

Acordar em meio ao pesadelo das chamas é uma experiência que abala a todos que têm na terra o seu habitat, sustento e enraizamento. O ser vivo maduro revela o seu espírito insistente e envolto às múltiplas trajetórias que precisou percorrer nas demandas da sobrevivência, ora inacabadas, interrompidas ou decepadas,  forçou a retomar a sua resistência e resiliência. Um pesadelo que dura um dia, semanas ou meses permanece séculos presente na memória do que foi a sua devastação, e no semblante do historiador temos mais do que mil palavras a interpretar quando avistamos a rara beleza da Chapada a se queimar. Conheçamos esta figura tão especial que nos embala nesta noite fria de esperança fraca de colheita de alegrias.



Sempre amei a primavera porque trazia flores lindas aos jardins e as praças ficavam todas coloridas, alegres, verdejantes, com aroma de vida no ar de setembro. Setembro...septembrum...septum...separação...limites tão frágeis   como as associações livres no livre falar da prosa entre amigos ou no pensamento livre de regras solto ao vento chegando ao topo das árvores mais altas do cerrado... Como se pudéssemos afirmar que o pensamento é tão livre quanto aparenta ser... Na verdade, todas as vidas amarradas entre as cordas do desespero ansiando fugir à destruição, se reconhecem frágeis e impotentes frente ao poder de um evento tão impactante que não obedece nem as regras, nem os limites, só podem lutar em união.

Toda história encontra no espaço íntimo dos traços de memórias os vazios sempre disponíveis a serem recriados. Nas raízes ou nos galhos secos e retorcidos, a lembrança e o desejo se encaminham a serem transportados por um fio d’água em uma canoa de fantasia. Brincam de se embalar sobre um real breve e especialmente desejoso de paz. Forças opostas ali presentes conduzem o movimento ao vento, e independente da inércia circundante, geram novos rabiscos prestes a encarnar uma pintura disfarçada de destino irrecusável e esperança de superação.



Havia um filósofo que dizia que a linguagem que vem de uma reflexão é tudo.  Apreender a profundidade desta afirmação tão racional e categórica, nos convida a viver mais cem anos para poder assimilá-la no seu âmago.

Sou o buriti que brinco de fazer arte, sirvo de alimento, casa e ninho das araras, arrisco inúmeros ensaios até conseguir modelar e dar uma forma aos filamentos da minha história, que me parece, ficou até bem-humorada. Felizmente a dor do viver não é continua. Como a onda que vai e vem, sem controle e com desdém, no intervalo do seu tempo, reage afoita com suas águas rolando de volta ao curso normal, assim como a Cachoeira de Cristal, que corre desvairada contra o tempo, mas nunca esquece de brilhar ao sol. Nas águas que colidem nas entranhas, se embelezam, emitem rumores de susto, medo e emoção, e no envolvimento turbulento das ondas, quanto mais perigoso, mais o ingênuo remador se aprisiona nesta doce sedução. Na onda rubra da vergonha, a dor que tem na flor a sua esperança, se enclausura na finitude de uma aproximação fina e delicada da agulha que perfura sem ficar marcada. A dor que recebe um cobertor leve e quentinho, é tudo o que a dor precisa para ser guardada em um cantinho.

A dor não se exime das palavras, é o coração que parte, é a fala silenciosa, é o vazio do entardecer, é a resposta não esperada...tristes sentimentos difíceis de descrever.

Enfim, esta é uma das centenas de histórias que me arrisco a escrever, que gostaria de chamar de ode, como os curiosos poemas líricos da métrica perfeita. Terei muito que exercitar neste voo ainda, mas agora faço uma pausa para ouvir o canto dos bem-te-vis que pousam, um a um, no beiral da minha janela. Eles me pedem desesperadamente que interrompa esse fluxo de ideias soltas ao vento para oferecer-lhes um pouco do meu cuidado. Como eles estavam sedentos e famintos!! Minutos depois deste intervalo, retomo feliz à minha história, sentindo que este desdobramento no aprendizado do amor ficará registrado, e por mais breve e frágil que seja, compartilhado em um fio de memória mínimo, foi carregado com muito carinho.

 Obs.: Fotografias tiradas na Chapada dos Veadeiros, Goiás.

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