Por Clarisse Cristal (Balneário Camboriú, SC)
‘’Há uma orquestra desarmônica em caos
Tentando destruir a minha não-existência
Mas quando um homem
Pretensamente negro se levanta
A terra deveria tremer! Mas ela não se move. ’’
Samuel da Costa
Em tempos idos, um certo furor de indignação e
horror, se abateu na minha cidade e nas cercanias, pois um escândalo de maus
tratos, em uma casa de repouso para idosos, na nossa antiga capital federal.
Por Deus, eu bem que gostaria de morrer jovem, nessas horas, mas o caso aqui
não sou eu e sim uma história, que o destino fez soprar nos meus ouvidos
desavisados. Para quem conhece bem os meus relatos, onde exponho os meus
hábitos e costumes, sabe que gosto de ser levada pelas areias do destino. Então
vamos ao que interessa!
A Praia dos Amores é um bairro, que fica no limite
da minha cidade, com a decadente, portuária e proletária cidade vizinha, que
usurpou um pedaço territorial, da cidade onde nasci e vivo atualmente. Mas isto
é uma outra história insólita, que eu vou e deverei dramatizar mais tarde.
Praia dos Amores é um bairro requintado, onde a maior parte territorial do
bairro é uma morraria coberta pela Mata Atlântica. E para os nossos
padrões, possui uma extensa orla marítima e pequenas praias agrestes de difícil
acesso.
Então lá estava na Praia dos Amores, eu
sozinha, caminhando pelo deck de madeira de acesso à praia, passarela coberta
de areia fina, ia eu para uma praia agreste com as suas areias mornas, em um
outono pela manhã, então vi algo surreal. Era a baixa temporada e é comum ver
essas cenas por aqui, contudo a cena que vi era no mínimo estranha e inusitada,
no seu conjunto da obra. Pessoas de idade avançada, ocupando a faixa de areia,
com as suas tendas sofisticadas, pegando ondas, deitadas em esteiras, sentados
em cadeiras de praia. Mas o surreal, não era a cena em si, mas a quantidade, a
pluralidade de banhistas, naquela parte da cidade, tão carente de
infraestruturas turísticas. Os veranistas de idade avançada, eram ativos, bem
vestidos, vívidos, agitados, conversavam animadamente, riam, bebiam coquetéis
coloridos, cervejas e vinhos. Usavam típicos trajes praianos, sem quaisquer
medos, temores ou vergonhas. Já outros eram mais discretos, vestidos de forma
simples, pareciam doentes, decrépitos e até macambúzios, alguns com sorrisos
contidos, simplesmente estavam contemplando o oceano Atlântico. Todos e todas
estavam trajados de peças típicas de turistas à beira mar. Um agito deste, com
este público em especial, não ocorria nesta parte, tão remota e desassistida da
cidade.
Em meio a enorme turba de simpáticos e simpáticas,
sobreviventes de guerras, crises econômicas, avalanches tecnologias, pandemias,
imigrações, migrações, divórcios, perdas de todas as ordens! Alguém se
destacou, o que me parece uma coisa natural, em meio a tantas pluralidades.
Aqui, eu não vou confidenciar como nos aproximamos, pois o fato é que
simplesmente, nos aproximamos. Ela se apresentou com o nome de
Charlotte, pelo menos é assim que eu vou apresentá-la, uma senhora idosa, muito
bem vestida, com roupas e acessórios exclusivos, logo notei e Charlotte
confirmou. Eram presentes de uma sobrinha-neta, uma sobrinha-neta estilista de
profissão bem conceituada, que transitava pelos grandes centros, no novo mundo
e no velho mundo. Usava uma diáfana saia verde-oceano que lhe cobriam até os
joelhos, as sandálias afro-caribenhas, o colete amarelo claro, uma delicada
aliança estilizada no dedo da mão esquerda, as guias afro-brasileiras no
pescoço e um doce e leve perfume a alfazema. Era um amálgama, bem equilibrado
de elementos europeus, afro-caribenhos, afro-brasileiros, um leve sotaque
afrancesado parisiense, denotava que, Charlotte parecia ser alguém que se
lançara no mundo, que não perderá a sua própria identidade ou lutava para não
perder. Coisa que ficou claro mais tarde.
De costas para o mar, Charlotte, estava diante um
cavalete de alumínio, outra peça exclusiva soube mais tarde, ela pintava um
quadro impressionista, uma pintura difusa, uma bailarina dançando na chuva.
Reconhecia o cenário retratado, pelas pinceladas seguras e firmes de Charlotte,
era um retrato instantâneo pouco, de um fotógrafo obscuro e anônimo, do final
do século XIX. O rosto amorfo, da bailarina adolescente retratada, me
apavorou, sem eu saber o motivo de tal fato. Lembro-me de perguntar para
Charlotte, o que de fato estava ocorrendo ali. A pintora parou de dar as suas
pinceladas, olhou em volta e me disse que a vida é assim, um dia gente está
morrendo de tédio em um buraco qualquer. E no outro dia estamos felizes fazendo
loucuras, na beira mar em uma praia esquecida por Deus. Não engoli bem aquela
resposta e Charlotte olhou de forma abissal e um sorriso sinistro brotou
naquela face enrugada.
Então, ela me convidou de forma afetada, para irmos
até a tenda, que estava ao lado da gente, nas palavras dela, irmos até o que
ela nomeou, de humilde residência temporária. Logo eu pensei que iriamos sentar
em confortáveis poltronas sofisticadas, com taças de cristal das Boemias em
mãos, beber champanhe francesa. Debater os artistas plásticos Mary Cassatt,
Édouard Manet e Camille Pissarro ou mesmo as poesias de Charles Baudelaire e de
Edgar Allan Poe. Mas não, Charlotte me convidou a sentar em uma cadeira barata
de plástico, me convidou a se juntar a ela, e assim eu o fiz. Charlotte,
simplesmente sentou, levou a não até um cooler, sacou de uma lata de uma
cerveja popular nacional, jogou na minha direção.
A pintora, me confidenciou que me conhecia, pois
seguíamos a mesma tendência, mas em áreas diferentes, eu não discordei e
Charlotte me disse que os seus antepassados viviam se metendo em confusões lá
no distante velho mundo. E que parte da família paterna e materna, andaram
aprontando das suas, na segunda grande guerra, lá no velho. Claro que os
detalhes indigestos, ficaram de fora da nossa conversa. E então eu insisti o
fato estava ocorrendo ali, ela me respondeu de forma vaga, ela vivia em uma
casa de repousos para idosos, perto da agitada rodovia que ligava as duas
cidades. Uma casa ao pé do morro, que na verdade era a casa da família dela,
projetado para ser uma clínica, onde idosos, acidentados, doentes graves e
tratamentos de paciente de pós-operados ficariam por pouco tempo. Tempo
suficiente para fazer exames, tratamentos, testes psicológicos e tratamentos
psiquiátricos.
Ousado disse eu, e ela me disse que era paciente
seletos, que logo a clientela se afunilou para pacientes idosos, o tempo curto,
passou para pacientes permanentes e que ficavam em dias de semana. Como a
família de Charlotte era quase toda ligada às áreas da saúde, não era difícil
manter o projeto. Mas nada disto explicava a invasão da praia agreste. Então,
Charlotte me olhou nos olhos, eu os olhos dela se acinzentaram, a voz dela
ficou um tanto gutural e ela me falou do grupo triângulo vermelho. Perguntou mesmo,
se ela queria saber do que ela tinha para falar. O sussurro astral, dos relatos
de Charlotte chegaram a mim de forma avassaladora, aterradora, eu estava
perplexa e não poderia me levantar, o mais que tentasse.
Era o cair da noite, quando me foi permitido sair
daquele lugar, então eu ouvi o vento gélido, a sombra projetada do morraria nas
areias da praia. Senti os fortes cheiros putrefatos de peixe podre, os
banhistas idosos, estavam decrépitos, vi as dentições destruídas eles e elas
riam, apontavam para mim. Sai dali e me voltei, a praia estava vazia, a noite
não tardava e eu tinha que voltar para casa, pois tinha uma história para
escrever.
Fragmento
do livro: Do diário de uma louca, de Clarisse Cristal, poetisa, contista,
novelista e bibliotecária em Balneário Camboriú, Santa Catarina.
Nenhum comentário:
Postar um comentário