Por Clarisse da Costa (Biguaçu, SC)
- No meu mundo particular eu não era
uma negra, eu era pessoa e isso as pessoas não entendem. Fui para dentro de mim
não como negra e sim como pessoa. Na minha visão de menina, independentemente
de qual era minha cor eu era um ser humano como tantos. Talvez uma ideia
ideológica do cristianismo. Mas eu só tinha sete anos, como discernir as
coisas?
E como vemos essa história não é tão
fofa. Eu poderia começar com ‘’era uma vez’’, mas a realidade é bem mais pés no
chão do que um simples conto de fadas e não têm ‘’felizes para sempre’’ é
apenas a dura realidade de uma menina negra e o seu cabelo crespo.
Uma menina de trança amarrado com
laço de fita de cetim branco. Nenhuma Rapunzel. Apenas uma estudante negra na
sala com 29 alunos brancos. O garoto teimava falar no meu ouvido ‘‘sua negra’’
repetidamente até eu me irritar. E por que eu me irritaria? Eu era realmente
negra. Só que acima de tudo existia ali a Clarisse pessoa. Até eu entender tudo
isso que se passava comigo levou tempo.
Ora, ser negra nesse país é trilhar
caminhos difíceis. Para mim, ser negra era um detalhe, para o outro algo de
muito errado. Praticamente muito louco. Ora, que louco é algo muito relativo.
Com base no ser diferente, somos todos loucos. Nem perfeitos, nem iguais!
No meu imaginário, onde eu o ser
diferente, eu fui a princesa, mas nenhumas dessas princesas que eu e tantas
outras meninas conhecíamos eram negras. Enquanto a Cinderela era despertada com
um beijo eu recebia pedrinhas de um garoto nas costas por ser negra. E eu não tinha
um príncipe para me defender ou sequer a ajuda do ‘‘Super Homem’’.
Ora, nem ‘’Super Homem’’ era negro.
Triste, nem representatividade eu tinha! Eu em Santa Catarina no berço da
solidão do excluído. Um detalhe, solidão é uma prisão que te leva para dentro
de si e a exclusão o martírio que a sociedade te faz passar. Mas não aceitei o que queriam para mim, eu
fui subindo degraus da minha vida. Com a perda da minha mãe aos meus 35 anos de
idade fui buscar minhas raízes, me posicionar como mulher negra e entender tudo
que se passou na minha infância até a adolescência.
Eu encontrei o meu lugar? Ainda não.
Mas achei o mundo onde eu me encaixava e podia me defender com todas as armas,
a escrita. A literatura hoje é o meu reino encantado. E por incrível que pareça
na minha velha juvenil idade, onde meu ser mulher aflora todos os dias, nas
redes sociais eu sou a princesa. Para o poeta negro de Santa Catarina, uma
deusa negra. E eu que sempre me achei o patinho feio da história.
Quando
menina eu ouvi dizerem que eu era ‘’esquisita’’ e de repente nada mais se
encaixava. Eu não fazia parte desse mundo. Eu queria ser uma refugiada, meu
lugar seria a lua. Acreditava que lá eu podia ser sempre quem eu era sem alvo
de críticas e julgamentos.
Às vezes tenho a impressão que devo
jogar meus cachos pela janela para o belo príncipe me resgatar da rotina
maçante que toda mulher vive. Resgatar-me do meu passado. Mas eu não acredito
em príncipe e ultimamente tem sido difícil crer que o homem sabe amar. Não me
leve a mal, mas foram tantas desilusões...
Nesse meio tempo meu cabelo passou
por muitas transformações. Ele embolou enrolou cacheou volumou. E agora com
toda certeza posso dizer que eu amo meu crespinho. Quantas histórias ele tem
para contar! Ele ouviu que a negra aqui era preta suja e fedida. Seria meu
primeiro amor.
Meus cachos ouviram que meu cabelo é
palha de aço. Meus cachos sentiram a mão do menino tocando com nojo e me
olhando com cara feia. Mas no meio disso tudo a gente tira uma lição, porque no
fundo essa é a dádiva da vida, ensinar para aprender. E por mais difícil que
seja uma hora a gente dá um basta em tudo.
Limitei-me a ser feliz e hoje eu sei
quem eu sou. Posso ser até maior que o mundo, que tantas vezes eu me senti
pequena diante dele. Que me desculpe a Rapunzel, mas eu prefiro o meu
crespinho, tem o balanço suave como uma poesia!
Como crespa tive que enfrentar o preconceito mesmo sem ter a noção do
que aquilo causaria na minha vida, com a minha pessoa.
Porque o preconceito para nós
mulheres negras surge em nossas vidas a partir da nossa relação com o cabelo
afro. Na verdade tudo do que é mais doloroso para um jovem começa na infância.
Só não se tem o percebimento dos pais.
Muitos não sabem o que se passa na
cabeça de seus filhos. Muitas vezes eu fiquei calada no meu profundo silêncio
dentro de mim. Eu tenho o dom de bloquear certas coisas, o que às vezes pode
parecer bom tem o risco de nos colocar numa prisão. Aprisionados dentro da
gente não levamos em conta a nossa capacidade de driblar todas as dificuldades.
A vida não é fácil e nunca será. Se
fosse fácil todo sapo no brejo seria príncipe. Irônico! É como muitas coisas na
vida são. Com relação ao meu refúgio para a lua... A ideia inicial e de
imediato era me refugiar na lua. Ela foi à protagonista da minha vida durante
muito tempo. O meu poema singular e o meu refugio madrigal! Mas chega a hora
que a gente tem que crescer e encontrar a felicidade dentro da gente. Não dá
para fugir de tudo e de todos.
Virei mulher. Eu me tornei poetisa. A Rapunzel
simplesmente jogou suas tranças e foi salva por um príncipe. Eu fui resgatada
da minha prisão por mérito da minha luta e resistência ao sistema. Na minha adolescência eu era como ‘’Benê’’.
Ele seguia perdido e de certa forma eu também. Aquele não era o seu mundo,
tinha que se adaptar e ainda de alguma forma ser aceito pelas crianças do
bairro.
A cor da sua pele parecia fazer
muita diferença naquele que seria seu novo lar. Um negro em meio há tantas
crianças brancas, perdido tal como eu mesma nos meus sete anos de idade sem uma
amiga sequer na primeira série do ensino fundamental. Benê não quis aquela
situação, mas as condições da vida levaram para este novo lugar.
O que a vida fez com ele fez comigo
também, me levando para a poesia e depois para todos os caminhos da literatura.
Eu era uma estranha na sala de aula com 29 alunos brancos. Eu entrei na
história de Benê e fui Benê. Eu era feliz quando no meu mundo particular não
havia ofensas, preconceitos...
Luiz Galdino nem imagina que eu fui
dantes, na infância, o personagem do seu livro ‘’Saudade da Vila’’. Essa
história eu quis ter escrito e foi a partir daí que a poetisa e a negra
Clarisse da Costa nasceram. Aos 15 anos sem acesso a leitura. Com o livro em
mãos vi possibilidades de vencer. Por essa razão te convido a encantar outras
crianças com um livro.
E só para deixar bem claro no país
da desigualdade, somos todos Benê. Quando comecei a escrever diários _ porque
nossa relação com a escrita vem a partir daí as pessoas me questionavam e riam da
minha cara.
- O que você tanto escreve aí? Que
você brincou de bonecas? – como se eu não tivesse vida. Como se eu não tivesse
minhas alegrias, minhas dores. Pois é
assim a vida da mulher negra, cheia de questionamentos, preconceitos e
julgamentos. No mundo real somos a plebeia.
Clarisse
da Costa é poetisa e cronista em Biguaçu, SC
Contato:
clarissedacosta81@gmail.com
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