domingo, 1 de maio de 2022

DE TUDO QUE DEVERIA ESTAR MORTO, MAS NÃO ESTÁ!

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

 

Para a poetisa Fabiane Braga Lima

 

‘’ Se eu soubesse o que é o pecado propriamente dito

 talvez eu tentaria procurar controlar os meus impulsos.’’

Clarisse da Costa

 

            Aldo deveria estar morto! Mas não estava! Simples assim, aquela figura que vira a pouco era outra coisa não poderia ser a mesma pessoa. Não poderia ser Aldo, não era Aldo, pois Aldo estava morto.

            Foi com este pensamento andando trôpego a toda a velocidade possível pelo salão de exposição, a bengala que usava para se firmar a cada passo que dava tinha desaparecido. Mas ao passar por uma mesa que não estava ocupada, algo mandou ele voltar e ver o que não existia. Mas não havia nada, só puro ódio concentrado que emanava do vácuo.

            A porta, as escadas, descer as escadas, era uma sequência lógica, mas naquele lugar nada naquele lugar era lógico.

            — O que procurar senhor? — Alguém pegou nos ombros dele, fazendo-o parar. Era um secretário, polido no falar — Não sei o que procura, mas tenho isto que o senhor provavelmente precisa — Era a bengala que tinha perdido, o homem de aparência indiana estava segurando na altura do queixo a bengala perdida.

            — Eu preciso sair daqui, não há nada neste lugar pra mim! — Uma profusão de cósmicos olhares recaíram sobre o ancião que gritava alto. Um senhor afro-caribenho que conversava animadamente com um cigano calon. O homem de pele amendoada, de sandálias de couro nos pés, finas roupas multicoloridas segurou o braço esquerdo o homem pele reluzente. Uma austera mulher hispânica um pouco, mas afastada reconheceu o que gritava. Ela teve o ímpeto de interpelá-lo, mas se conteve, ela teve curiosidade de como as coisas terminariam. Assim as demais pessoas que ali estavam procederam, do curador da exposição, passando pelo adido militar eslavo, indo terminar nos cincos assistentes da exposição.

            Um dos assistentes da exposição ligou o gramofone, e um disco de acetato começa a girar. Árvores do sul produzem uma fruta estranha, que canta uma voz melancólica depois de sola de sanfone. O som soa cristalino e atual, nem chora ou sorri, ninguém fala ou murra nada, pensa ou lamente dores e alegrias perdidas.

            — A saída fica bem atrás de mim senhor! Espero que tenha gostado da estada aqui!

            O homem se recompôs e partido, estava atônito, e as palavras de Aldo vieram com toda a força do mundo: — Vocês vão morrer aos poucos e várias vezes! Eu juro!

            Sim fazia tempo que ele ouvira estas palavras, Aldo está suspenso no ar, acorrentado, sangrando e sentindo dores atrozes. Era um fato da vida, Aldo estava ao lado das trincheiras e ele no outro. Mesmo sendo um simples burocrata, simples datilógrafo, era somente transcrever os depoimentos dos detidos, compilar os relatórios e mais nada.

Despido de qualquer talento aparente e de família abastada, depois de se meter em enrascadas e encrencas juvenis. O velho pai descartou o exército e o sacerdócio e por fim o oligarca acabou de colocar o filho rebelde no funcionalismo público como solução do problema familiar. Conseguiu um emprego na polícia: — Quem sabe depois de ver um pouco o que é a vida, esta inutilidade possa crescer e deixar de me fazer passar vergonha! O velho pai disse isso no almoço de família, onde tinha convidado sócios e amigos para também brindarem não só no novo emprego do filho mais novo e sim o novo regime que acabara de assumir o poder.

A célula de Aldo operava nas universidades, foram todos presos em um aparelho, na casa de Aldo, estavam recitando poesias, tocando violão e debatendo filosofia e política. Logo foram recolhidos para interrogatórios, os discos, livros e manuscritos apreendidos. E todos foram submetidos a um severo interrogatório, as sessões foram prolongadas e duraram semanas.

Aldo presenciou todos os interrogatórios, todas as sessões e todas as mortes. As ordens vieram de cima, eram enfáticos nas ordens e quando Aldo começou a ser interrogado algo aconteceu, um delegado veio recolher Aldo, sem mais explicações, junto o delegado um major da polícia militar. O major era responsável pelas operações de infiltração e repressão contra os opositores do regime.

Resgataram Aldo e o levaram em direção à zona portuária, mas antes de partir do cárcere ele disse: — Vocês vão morrer aos poucos e várias vezes! Eu juro! Anos depois, amigos de repartição falaram em um cerimonial militar em um navio eslavo. Aldo fora recebido com honras militares antes de subir no navio e que um coronel enorme e de aparência latina o recebera antes de embarcar no navio.

Rumores dando conta de Aldo, que fora professor de literatura espanhola e conhecedor do teatro espanhol, operava células em países de língua espanhola e portuguesa. Eram rumores apenas, lendas e mitos, a rede de Aldo operava a partir de portos e zonas costeiras. Tais rumores nunca foram confirmados, o que havia de fato eram as cinzas de Aldo que vieram do leste europeu, viram em um caixa junto com um anel de formatura.   


Samuel da Costa é contista, cronista e funcionário público em Itajaí, Santa Catarina. 

Contato: samueldeitajai@yahoo.com.br 

 

 

 

 

 


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