domingo, 1 de maio de 2022

O GRANDE DEUS RAPTOR DE ALMAS

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)


Para Fabiane Braga Lima

 

 Eu não plantei flores!

E nunca vou plantá-las!

Para não vê-las morrerem...

Abruptamente!

Pisoteadas cruelmente,

Pelas botas asseadas...

E lustradas.

Dos soldados desumanizados!

Fortemente armados,

 Que em descompassados...

E uniformizados!

Passam em marcha.

          

 

            Ao chegar no final da escada, um embrulho de estômago o fez sentir vivo de novamente. A lembrança amarga de receber o trágico relatório, do núcleo de repressão Moreira César, por fim estava em suas mãos. O relatório estava batido na máquina de escrever e estava bem resumido.

Não tinha fotografias dos elementos, só dados básicos, e lá estava o que ele suspeitava. Estavam todos vivos e com as vidas destroçadas por tragédias e mais tragédias. Pequenas e grandes tragédias se abateram nos homens e mulheres que operavam no núcleo de repressão. E as palavras de Aldo gritou bem alto na mente dele: — Vocês vão morrer aos poucos e várias vezes! Eu juro!

Acidentes de trânsito, cânceres, suicídios, desaparecimentos repentinos, prisões, descaminho e falências atingiram as pessoas que gravitavam ao redor dos agentes de repressão. Os parentes e pessoas próximas de quem integrou o núcleo de repressão Moreira César. Os elementos em si registravam-se passagem por clínicas psiquiátricas, centros de recuperação para drogados e alcoólicos, internamentos em hospícios. Estavam todos vivos, mas com as vidas destroçadas.

Fechou o relatório após as leituras e uma coisa martelava na cabeça, ele sabia das atrocidades cometidas pelo núcleo de repressão. E uma vez com a queda do regime autoritário e redemocratização todos e todas do aparato repressivo voltaram para as suas lotações de origem, sem responder pelos abusos. Ele era escrivão da polícia civil, voltou para a burocracia estatal e fez faculdade de direito, os demais elementos dos porões da repressão ele cortou todos os laços.

Agora recobrado a consciência de onde estava e o que deveria fazer, sair dali e relatar tudo que vira e ouvira para seus superiores. Ao olhar para a entrada do prédio surgiu como uma luz ao final de um túnel escuro. E a cada passo que dava uma coisa aconteceu, algo que simplesmente nunca aconteceu, os gritos, choros, soluços e clamores. Os cheiros devastadores de sangue, carne, urina, vômito e fezes, coisas que nunca sentira antes, era como se estivesse de volta aos porões da repressão. Vozes gritando, clamando, chorando e cheiro de carne humana queimada, isto nunca tinha acontecido, preferiu deixar tudo para trás e seguir a vida em frente.

Ao deixar o prédio, se apressou em descer a rua, andou uns bons metros e olhou para cima do prédio, uma luz negra atingiu o último andar, pequenos feixes brancos se destacaram. Atravessou a rua que estava estranhamente vazia àquela hora da manhã, uma viatura da polícia desceu em altíssima velocidade e estava com a sirene desligada. Foi atingido, o frágil corpo voou longe, subiu e caiu na gramada a poucos metros de onde estava.

Acordou no hospital por gritos de horror, choros e lamentos, abriu os olhos e tentou em vão se mover. Foi quando os cheiros dos porões da repressão invadiram o ambiente. Um homem negro, alto, vestido como um diplomata europeu apareceu na porta.

— Hora de ir chefe! O raptor de alma apareceu por fim!

— O quê?

Estava de pé próximo a porta e não entendeu nada! Olhou para trás e se viu deitado no leito de olhos fechados com o rosto contraído. Era como se sentisse dores atrozes.

— E ele? 

— Chefe é hora de partir e deixá-lo para trás.

O homem africano estava falando em italiano com ele, fazia tempo que não falava italiano. O enorme homem negro falava com o polido sotaque de Roma e ele estava falando em dialeto Trentino. Olho para as roupas que estava vestindo, era um terno caro, no pulso um relógio feito por sob medida por um relojoeiro suíço. Nos pés confortáveis, sapatos feitos de couro de crocodilo. O homem negro assentiu com a cabeça e ambos partiram, outros dois homens negros estavam no lado de fora do leito hospitalar.

Ao passar pelos corredores do hospital que estava vazio queria fazer mil perguntas, queria parar, mas não conseguia.

— Onde está o raptor de almas? — Por fim perguntou

— Está no conclave anual! Em um prédio a poucos quilômetros daqui, já identificamos todos que estarão no conclave!

Ao passar pela recepção também vazia, notou um outro homem negro também bem vestido, mas parecia um professor universitário e uma mulher loura de uns trinta anos. Estavam na porta de saída do hospital.

Saíram do hospital, uma limusine estava esperando, a porta se abriu e ele foi tragado pela escuridão luxuriante do carro de luxo.


Samuel da Costa é contista, cronista e funcionário público em Itajaí, Santa Catarina

Contato:samueldeitajai@yahoo.com.br       

 

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