domingo, 1 de maio de 2022

EM PERPÉTUOS CICLOS

 Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)


Em memória de João Carlos Pereira

 

‘’Eu prefiro as certezas do sim!

  Do que a incertezas do talvez.’’

Clarisse da Costa

          

 Uma vaga e leve fragrância de flores de laranjeiras misturado com um forte olor almiscarado estava pairando no ar. E uma explosão de fortes e vívidas cores irritou muito o agente de segurança, que vagava a esmo pelo salão de eventos. O vai e vem de pessoas negra, de gente latino e vários tons de peles escuras, nos pulsos argolas e pulseiras reluzentes, enormes brincos nas orelhas, expressivos lenços nas cabeças, turbantes variados e as roupas berrantes e chamativas.

E o som baixo e discreto de eufônicas de variadas línguas estrangeiras que falavam simultaneamente e que se lançavam no ar e intercambiavam entre as pessoas que ocupavam os espaços como se fosse uma perfeita sinfonia. O agente de segurança, de idade avançada, sentiu um frio percorrer a espinha como nunca tinha sentido antes. Ele ligou o sinal de alerta!

            — Aquieto-me para recomeçar um novo ciclo professor Muteia. O texto parece, com o de uma falecida, autora escritora desconhecida do grande público. Mas a obra é minha com toda a certeza, compus com o meu sangue! — O rascunho estava na mesa, Adérito Muteia relutava em pegar o manuscrito para ler. O literato africano, já tinha recebido e lido uma cópia em mídia digital. Algo gritava dentro do texto, para além do texto e, de forma desesperada. Aquela mulher na frente dele deixava-o nervoso.

            — Senhorita Fabiana de Lima, não creio que posso satisfazer os vossos anseios literários, da senhorita, não neste exato momento.

            O palavrório afetado, com leve sotaque luso, irritou a jovial escritora, vestida sobriamente como uma aluna de pós-graduação a apresentar uma tese, com seu tailleur Chanel azul limão. E os olhos castanhos em chamas dela, cravaram profundamente na mente de Muteia, o africano devolveu semicerrando os olhos negros profundos. Seria uma reunião e tanto pensou Muteia àquela hora extrema.

            O agente de segurança passou ao lado da mesa onde Fabiana e Muteia foram se alojar. O homem da lei, muito idoso para um agente de campo, parou abruptamente e voltou os olhos de para o casal.  Mil vozes mínimas, em puro desespero, urraram dentre dele, o casal impassível sequer deu pela existência do homem idoso, impecavelmente vestido, que andava com a ajuda de uma bengala e de óculos escuros. Cansado o homem sai da salão de exposição, assim como quem foge para salvar a vida cambaleando e lânguido. 

            — Então irá fazer mudanças no texto? Olha o miúda, eu não tenho muito tempo para aspirantes a escritores, és ambiciosa demais e não creio que...

            — Balela professor Muteia! — Falou em tom de desafio — Não vim de tão longe, para ter a sua aprovação pessoal!

            — Não me interrompa de novamente ò miúda! Não vou e não quero te dar aprovação alguma, não é este o meu papel, entenda logo!

Muteia, estava falando com a jovem adulta, na frente dele como se estivesse de novo em campo de batalha. O adido militar já tinha visto isso antes, bem falantes e corajosos, aspirantes jovens combatentes, recém saídos de campos e academias de treinamento, sempre apressados, com fome e sede de ação. Desesperados, os jovens combatentes choraram, gritavam e se escondiam quando os combates começavam de fato. 

             — Não quero ser grosseira com o professor, me desculpe, eu vim de muito longe e quero ser publicada, eu também quero ser mais útil! — O tom conciliador de Fabiana não comoveu o experiente professor. 

            Muteia sentiu um zumbido que crescia e crescia, um drone pensou, dois drones na verdade calculou o professor africano, um bem perto e outro um pouco mais longe. E o literato africano, ficou mais relaxado e pensou em um charuto, sentia a necessidade de um charuto a bem da verdade.       

          E não demorou muito, um jovem secretário indiano bem alinhado com seu multicolorido traje típico, veio com uma bandeja de madeira, com as bordas artesanalmente decoradas. Nela uma caixa de madeira pintada a mão de charutos caribenhos, um de copo de cristal artesanalmente decorado, nela havia chá de lima-da-pérsia gelado. O jovem de cabelos negros, um pequeno piercing no nariz e olhos negros vivazes serviu o casal e desapareceu tão rápido quanto chegou. 

            — Miúda não é somente querer, pensar ou mesmo desejar! Na verdade, é tudo isto junto, temperado com as casualidades que a vida nos impõe! E temos que viver e conviver não somente com as nossas escolhas, mas também temos que viver e conviver com as escolhas alheias, que não são nossas.

            O zumbido ficou mais alto, e o literato esperou e esperou enquanto pegou o cortador de charutos Don Emmanuel e o isqueiro à querosene com tanque de óleo transparente. O professor, literato e adido militar preparou e acendeu o charuto cubano que tinha levado à boca e deu uma demorada baforada.

            A jovem escritora levantou a mão fechada em punho na frente do Muteia, abriu e fechou! O drone parado a poucos metros dos dois se esmigalhou e caiu no meio da rua, caiu na calçada e não atingiu ninguém. Muteia dá uma segunda baforada seguida de um discreto sorriso de marfim e bate palmas.

            — És uma jovem e impulsiva! E nada discreta pelo que vejo!

            O segundo drone parado a quilômetros de distância caiu lentamente, foi parar em uma densa mata fechada, do que seria um jardim de uma luxuosa casa, muito abandonada. Muteia, muito tempo se acostumou em lidar com alunos deste naipe, estes jovens impulsivos.

            — Vamos ver com mais cuidado o que temos aqui. — Muteia pegou o manuscrito em cima da mesa e leu em voz alta: — Eu não falo com estátuas! Eu vivo no além dos astros-mortos!

Samuel da Costa é contista, poeta e funcionário público em Itajaí, Santa Catarina

Contato: samueldeitajai@yahoo.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário