quinta-feira, 1 de setembro de 2022

AS VALQUÍRIAS

Por Clarisse Cristal (Balneário Camboriú, SC)

 

Tell me why you look at me in the dark

In the shadows in fluid modernity

And the reasons for not fully unveiling what's inside of me

 

       Não sou uma pessoa apegada ao passado e também não gosto de começar os meus textos e falas com as palavras que eu escrevo neste relato. Mas aqui estou eu mirando um terreno vazio, mais um passo à frente na corrida da especulação imobiliárias.

       Só posso lembrar, rememorar no meu palácio das memórias o que tinha ali antes, uma casa simples de madeira, coisa brega mesmo casa de madeira branca na beira mar. Congelada no tempo, tinha uma senhora de cabelos brancos, muito idosa que ficava na janela e às vezes no portão falando em um dialeto que eu não entendia.

        Pois bem, a minha história se cruza com a história da Gioconda, vamos chamá-la pois Macabéa e Margaridas já estão por aí faz tempo, foi destes trabalhos escolares estúpidos. Pois bem, mais uma vez, ter que entrevistar moradores antigos da minha cidade, cidade de veraneio amorfa, na verdade uma colônia de pescadores artesanais não a muito tempo.

       Pois bem, mais uma vez, eu legítima cidadão das nuvens, fiz o que qualquer pessoa normal faria, fui buscar informações com o porteiro do meu prédio. Depois das telefonistas e frequentadoras de qualquer salão de beleza, todo mundo sabe que porteiros são os que melhores sabem e comentam das vidas alheias. Já ia me esquecendo dos ascensoristas de elevadores, mas deixa pra lá.

          Foi ter com Roberval, chamamos eles assim, foi ter com Roberval um papo sobre a mulher idosa e a nossa vizinha. Roberval com seu uniforme impecável e sandálias de couro nordestina, que estava lendo um jornal. Pois os porteiros de prédios residenciais, quando não estão no hall de entrada ou estão escutando música brega em um pequeno rádio a pilha barato ou estão lendo um jornal.  

      Pois bem, Roberval que estava sempre lendo jornais e revista, levantou os olhos para me atender. Engraçado que nunca tinha escutado uma só palavra da boca, nada para além de bons dias e boas noites, com aquele sotaque agudo nordestino.

         Roberval se abaixou para trás do balcão e sacou de um arquivo, eram recortes de jornais e revistas. O cretino tinha um pequeno arquivo da Gioconda, foi difícil tirar o arquivo das mãos dele, nem dinheiro ele aceitou, foi bom ele não ter aceitado, pois não tinha dinheiro. Sai dali do hall, segurando firme nas minhas mãos de criança, o arquivo de Roberval, o clipeiro, sai dali quase correndo.

         O clipping do porteiro era de primeiro, trabalho de profissional, o sujeito só pode ser um jornalista de profissão, expatriado da terra seca por algum coronel interiorano qualquer. Mas deixamos o porteiro de lado e vamos nos ater na Gioconda

       Típica filha e neta de imigrantes, expatriados exilados pela fome ou pela guerra. Gente que sai da terra mãe forçosamente e não consegue se desligar de onde veio para uma terra estranha para nunca mais voltar. Lá estava a senhora idosa e mais velha nascida e criada na velha colônia de pescadores, vivenciou de longe as guerras e distúrbios políticos e econômicos. A mulher sobreviveu a urbanização e elitização da cidade com uma bravura ímpar. E lá estava ela ora bem vestida ora trajando roupas simples em fotografias, ganhando prêmios de prefeitos e do parlamento local e dando entrevistas, dando entrevistas para rádios e tvs.

      Pois bem, o que colhi foi que era uma típica mulher empobrecida e sofrida, filha e neta de europeus do mediterrâneo do sul da Europa. Gente ligada ao mar, pescadores, piratas e marinheiros e toda a malta de gente litorânea ao sul da velha Europa. Parole era a dialeto que dominava, era a última de uma grande família, que ou morreu ou emigrou para outras paragens.

      Fui para a internet, fui buscar as entrevistas em áudios e vídeos, com a voz firme e lúcida a atração turística da cidade, os turistas gostavam de tirar fotografias dela quando estava na janela. E ela falando o dialeto estranho, na frente da casa para turistas variados, que comovidos, sorriam e choravam diante da mulher.

       Triste? Não sei, só sei que fui ver o terreno onde era a casa dela, e tinha algo a mais, o entre linhas, entre textos falados e escritos. Tinha algo errado ali, tinha e tem algo a mais, sempre tem algo ou alguém nas entrelinhas. Fui buscar, fui procurar.

       Parti para a lateralidade, comecei no óbvio, no café colonial perto de casa, onde as fofocas rolam soltas, onde a Gioconda faz suas compras do dia a dia. Onde a dona, vamos chamá-la de Maria, simples assim, ela sabe de todos os babados, do que rola na cidade. E não foi difícil arrancar preciosas informações da mulher de ascendência portuguesa, bastou perguntar se era verdade que ela ainda tinha seu uniforme do movimento integralista bem guardado e bem passado.

        E era verdade, com brilho nos olhos ela me falou com muito orgulho que conheceu o Plínio Salgado em sua breve e tumultuada passagem pela região e a confraternização entre nazistas e integralistas no hotel Muller. Estavam festejando a partida do então filho do Herr Muller para front de guerra, o jovem promissor aviador Carl Muller, vamos chamá-lo assim. O jovem com a patente de tenente aviador da Luftwaffe fora convocado para lutar nos céus europeus, para defender a grande pátria ariana.

        Mas o que tem a ver e haver esta digressão com a Gioconda? A nossa Gioconda que vivia tranquila na então pacata vila de pescadores! A inauguração, na verdade reforma do hall do hotel Muller, vamos chamá-lo assim. Vários quadros foram expostos ali, de vários artistas teutos-italos-latinos. Segundo a afável portuguesa de quatro costado, dona da casa colonial, ela me confidenciou entre pedaços de pedaços de bolos e xícaras de café, ou chávena de café como a dona da casa colonial gosta de falar.

        As Valquírias, tendo como modelo central, a nossa jovem Gioconda de longos cabelos alourados e de olhos azuis, ela foi contratada como modelo para os vários artistas para expressar a bela ideal do nazifascismo. E eu pedi provas, na verdade eu exigi provas e é claro e a dona Maria estalou os dedos e chamou um secretário, chamou com o olhar. Um jovem negro, de pela bem escura, a dona do café falou em francês com o seu funcionário, que desapareceu. Ele voltou com clipping bem robusto e ela mandou em francês que o submisso empregado abrisse e o arquivo mostrasse para mim.

       E lá estava ela em meios a ensaios, posando para artistas variados, em cenas de bastidores, tomando café com os pintores, músicos, escritores, atores, dramaturgos e fotógrafos, servindo-se de vinhos, champanhes, cafés, fumando charutos e cigarros. A dona Maria não deixou que eu tocasse no precioso arquivo. E arrebatou:  — Ora pois, é pouco miúda? Vá ao hotel, a exposição é permanente! E quem sabe podemos te convidar para o nosso evento anual. — Disse isso e lentamente levou a chávena de café até os lábios.

       Sai dali correndo, foi até o hotel, que não era muito longe dali, foi mesmo ver a exposição permanente As Valquírias. No pequeno e aconchegante hotel a beira mar, logo percebi que li todos os funcionários eram negros e negras. Vi também homossexuais também trabalhando no local. Quem me atendeu foi um solicito jovem teuto, um subgerente muito bem vestido, eu me apresentei como estudante do ensino fundamental que estava fazendo uma pesquisa escolar.

       O jovem falou em alemão para um funcionário com trajetos afeminado, ele me conduziu até uma parte do hall. E lá estava o envelhecido Carl Muller, com seu charuto entre a mão esquerda e um copo de uísque na outra, dando atenção a um pequeno grupo. Estavam falando em alemão, logo vi que eram jornalistas estrangeiros, falavam baixo e olhavam os retratos expostos. Eram várias versões da Gioconda, na verdade tinham um quadro que evocava uma heroína amazona, outra no meio da mata brasileira em meio a antas, capivaras e aves. Outras ela nórdica, eram quatro formando um círculo, uma enorme fotografia em preto e branco mostrando os seios com uma lira nas mãos. Outra em um coreto segurando uma corneta como se fosse um arauto anunciando a nova ordem. Bati umas boas fotografias de todas as obras, quando o dono do hotel me notou e sorriu, acenou com a cabeça. O jovem subgerente tocou no meu ombro e fez menção para que eu me retirasse. Perguntei se poderia olhar os arquivos do hotel, solicito o subagente me deu alguns livros. Dois de fotografias do hotel, um contando da construção do hotel, até a última grande reforma, outro das festas e eventos que ali ocorreram, outro de uma grande reportagem contando sobre o dia a dia do hotel, com depoimentos de funcionários, donos e frequentadores do hotel. E por último uma biografia romanceada dos donos do hotel.

        Todos com um enorme vazio, As valquírias, nada, coisa alguma. Agora caminhando para o fim. Estou olhando do alto do meu apartamento para o terreno vazio, com máquinas pesadas terraplanando o lugar a especulação imobiliária seja tragando o pesado em vista de lucros altos futuros. Lembrando de quando entreguei o meu trabalho na escola, a diretora chamou os meus pais para uma conversa franca. A Gioconda descansa em paz em um simples jazigo discreto no cemitério local.      

 

 Clarisse Cristal é poetisa e bibliotecária em Balneário Camboriú, Santa Catarina.

         

         

      

                                                                                                       

       

 

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