Por Clarisse Cristal (Balneário Camboriú, SC)
Tell me why you look at me in the dark
In the shadows in fluid modernity
And the reasons for not fully unveiling what's inside of me
Não sou
uma pessoa apegada ao passado e também não gosto de começar os meus textos e
falas com as palavras que eu escrevo neste relato. Mas aqui estou eu mirando um
terreno vazio, mais um passo à frente na corrida da especulação imobiliárias.
Só posso lembrar, rememorar no meu palácio das memórias o que tinha ali antes,
uma casa simples de madeira, coisa brega mesmo casa de madeira branca na beira
mar. Congelada no tempo, tinha uma senhora de cabelos brancos, muito idosa que
ficava na janela e às vezes no portão falando em um dialeto que eu não
entendia.
Pois bem, a minha história se cruza com a história da Gioconda,
vamos chamá-la pois Macabéa e Margaridas já estão por aí faz tempo, foi destes
trabalhos escolares estúpidos. Pois bem, mais uma vez, ter que entrevistar
moradores antigos da minha cidade, cidade de veraneio amorfa, na verdade uma
colônia de pescadores artesanais não a muito tempo.
Pois bem, mais uma vez, eu legítima cidadão das nuvens, fiz o que qualquer
pessoa normal faria, fui buscar informações com o porteiro do meu prédio.
Depois das telefonistas e frequentadoras de qualquer salão de beleza, todo
mundo sabe que porteiros são os que melhores sabem e comentam das vidas
alheias. Já ia me esquecendo dos ascensoristas de elevadores, mas deixa pra lá.
Foi ter com Roberval, chamamos
eles assim, foi ter com Roberval um papo sobre a mulher idosa e a nossa
vizinha. Roberval com seu uniforme impecável e sandálias de couro nordestina,
que estava lendo um jornal. Pois os porteiros de prédios residenciais, quando
não estão no hall de entrada ou estão escutando música brega em um pequeno
rádio a pilha barato ou estão lendo um jornal.
Pois bem, Roberval que estava sempre lendo jornais e revista, levantou os olhos
para me atender. Engraçado que nunca tinha escutado uma só palavra da boca,
nada para além de bons dias e boas noites, com aquele sotaque agudo nordestino.
Roberval se abaixou para trás do balcão e sacou de um
arquivo, eram recortes de jornais e revistas. O cretino tinha um pequeno
arquivo da Gioconda, foi difícil tirar o arquivo das mãos dele, nem dinheiro
ele aceitou, foi bom ele não ter aceitado, pois não tinha dinheiro. Sai dali do
hall, segurando firme nas minhas mãos de criança, o arquivo de Roberval, o
clipeiro, sai dali quase correndo.
O clipping do porteiro era de primeiro, trabalho de profissional, o sujeito só
pode ser um jornalista de profissão, expatriado da terra seca por algum coronel
interiorano qualquer. Mas deixamos o porteiro de lado e vamos nos ater na
Gioconda
Típica filha e neta de imigrantes, expatriados exilados pela fome ou pela
guerra. Gente que sai da terra mãe forçosamente e não consegue se desligar de
onde veio para uma terra estranha para nunca mais voltar. Lá estava a senhora
idosa e mais velha nascida e criada na velha colônia de pescadores, vivenciou
de longe as guerras e distúrbios políticos e econômicos. A mulher sobreviveu a
urbanização e elitização da cidade com uma bravura ímpar. E lá estava ela ora
bem vestida ora trajando roupas simples em fotografias, ganhando prêmios de
prefeitos e do parlamento local e dando entrevistas, dando entrevistas para
rádios e tvs.
Pois bem, o que colhi foi que era uma típica mulher empobrecida e sofrida,
filha e neta de europeus do mediterrâneo do sul da Europa. Gente ligada ao mar,
pescadores, piratas e marinheiros e toda a malta de gente litorânea ao sul da
velha Europa. Parole era a dialeto que dominava, era a última de uma grande
família, que ou morreu ou emigrou para outras paragens.
Fui para a internet, fui buscar as entrevistas em áudios e vídeos, com a voz
firme e lúcida a atração turística da cidade, os turistas gostavam de tirar
fotografias dela quando estava na janela. E ela falando o dialeto estranho, na
frente da casa para turistas variados, que comovidos, sorriam e choravam diante
da mulher.
Triste? Não sei, só sei que fui ver o terreno onde era a casa dela, e tinha
algo a mais, o entre linhas, entre textos falados e escritos. Tinha algo errado
ali, tinha e tem algo a mais, sempre tem algo ou alguém nas entrelinhas. Fui
buscar, fui procurar.
Parti para a lateralidade, comecei no óbvio, no café colonial perto de casa,
onde as fofocas rolam soltas, onde a Gioconda faz suas compras do dia a dia.
Onde a dona, vamos chamá-la de Maria, simples assim, ela sabe de todos os
babados, do que rola na cidade. E não foi difícil arrancar preciosas
informações da mulher de ascendência portuguesa, bastou perguntar se era
verdade que ela ainda tinha seu uniforme do movimento integralista bem guardado
e bem passado.
E era verdade, com brilho nos olhos ela me falou com muito orgulho que conheceu
o Plínio Salgado em sua breve e tumultuada passagem pela região e a
confraternização entre nazistas e integralistas no hotel Muller. Estavam
festejando a partida do então filho do Herr Muller para front de guerra, o
jovem promissor aviador Carl Muller, vamos chamá-lo assim. O jovem com a
patente de tenente aviador da Luftwaffe fora convocado para lutar nos céus
europeus, para defender a grande pátria ariana.
Mas o que tem a ver e haver esta digressão com a Gioconda? A nossa
Gioconda que vivia tranquila na então pacata vila de pescadores! A inauguração,
na verdade reforma do hall do hotel Muller, vamos chamá-lo assim. Vários
quadros foram expostos ali, de vários artistas teutos-italos-latinos. Segundo a
afável portuguesa de quatro costado, dona da casa colonial, ela me confidenciou
entre pedaços de pedaços de bolos e xícaras de café, ou chávena de café como a
dona da casa colonial gosta de falar.
As Valquírias, tendo como modelo central, a nossa jovem Gioconda de longos
cabelos alourados e de olhos azuis, ela foi contratada como modelo para os
vários artistas para expressar a bela ideal do nazifascismo. E eu pedi provas,
na verdade eu exigi provas e é claro e a dona Maria estalou os dedos e
chamou um secretário, chamou com o olhar. Um jovem negro, de pela bem escura, a
dona do café falou em francês com o seu funcionário, que desapareceu. Ele
voltou com clipping bem robusto e ela mandou em francês que o submisso
empregado abrisse e o arquivo mostrasse para mim.
E lá estava ela em meios a ensaios, posando para artistas variados, em cenas de
bastidores, tomando café com os pintores, músicos, escritores, atores,
dramaturgos e fotógrafos, servindo-se de vinhos, champanhes, cafés, fumando
charutos e cigarros. A dona Maria não deixou que eu tocasse no precioso
arquivo. E arrebatou: — Ora pois, é pouco miúda? Vá ao hotel, a
exposição é permanente! E quem sabe podemos te convidar para o nosso evento
anual. — Disse isso e lentamente levou a chávena de café até os lábios.
Sai dali correndo, foi até o hotel, que não era muito longe dali, foi mesmo ver
a exposição permanente As Valquírias. No pequeno e aconchegante hotel a beira
mar, logo percebi que li todos os funcionários eram negros e negras. Vi também
homossexuais também trabalhando no local. Quem me atendeu foi um solicito jovem
teuto, um subgerente muito bem vestido, eu me apresentei como estudante do
ensino fundamental que estava fazendo uma pesquisa escolar.
O jovem falou em alemão para um funcionário com trajetos afeminado, ele me
conduziu até uma parte do hall. E lá estava o envelhecido Carl Muller, com seu
charuto entre a mão esquerda e um copo de uísque na outra, dando atenção a um
pequeno grupo. Estavam falando em alemão, logo vi que eram jornalistas
estrangeiros, falavam baixo e olhavam os retratos expostos. Eram várias versões
da Gioconda, na verdade tinham um quadro que evocava uma heroína amazona, outra
no meio da mata brasileira em meio a antas, capivaras e aves. Outras ela
nórdica, eram quatro formando um círculo, uma enorme fotografia em preto e
branco mostrando os seios com uma lira nas mãos. Outra em um coreto segurando
uma corneta como se fosse um arauto anunciando a nova ordem. Bati umas boas
fotografias de todas as obras, quando o dono do hotel me notou e sorriu, acenou
com a cabeça. O jovem subgerente tocou no meu ombro e fez menção para que eu me
retirasse. Perguntei se poderia olhar os arquivos do hotel, solicito o subagente
me deu alguns livros. Dois de fotografias do hotel, um contando da construção
do hotel, até a última grande reforma, outro das festas e eventos que ali
ocorreram, outro de uma grande reportagem contando sobre o dia a dia do hotel,
com depoimentos de funcionários, donos e frequentadores do hotel. E por último
uma biografia romanceada dos donos do hotel.
Todos com um enorme vazio, As valquírias, nada, coisa alguma. Agora caminhando
para o fim. Estou olhando do alto do meu apartamento para o terreno vazio, com
máquinas pesadas terraplanando o lugar a especulação imobiliária seja tragando
o pesado em vista de lucros altos futuros. Lembrando de quando entreguei o meu
trabalho na escola, a diretora chamou os meus pais para uma conversa franca. A Gioconda
descansa em paz em um simples jazigo discreto no cemitério local.
Clarisse Cristal é
poetisa e bibliotecária em Balneário Camboriú, Santa Catarina.
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