Por Clarisse Cristal (Balneário Camboriú, SC)
Fá Rodrigues Butler estava sozinha novamente, mas ainda detinha na cabeça a
imagem dos dois homens da lei, que acabaram de esvaecer porta afora, tragados
pela noite. Desde de a entrada deles e a posterior saída, um forte cheiro acre de traição
pairava no ar e ela sentiu no seu âmago mais profundo. A mulher sentiu o ar
pesar, ela queria vê-los agonizando em morte lenta, não somente as suas pobres
alma miúdas, mas sim o que eles representavam por debaixo dos moribundos mantos
apodrecidos dos códigos, das leis, a hierarquias escravizantes que eles
representavam por si. Gente pequena, interligada e ligada em minudências
apenas, incapazes de cosmos visões, do ver além do limitado mundo material e cotidiano
em que viviam.
Fá levou a mão até a bolsa e pegou um isqueiro de bronze alemão, e em cima do
balcão pegou mais um cigarro, a chama do isqueiro azul clareou a semiescuridão
do lugar. As sombras esculpidas nas paredes fizeram com que ela lembrasse que
tinha passado da hora de voltar para casa.
— Ponto nulo no céu, que coisa mais ridícula, não faltava mais nada nesta vida!
Audácia dessa gente miúda de vir até aqui me importunar com minudências! —
Falou em voz alta como se existisse alguém ali para dividir as suas angústias e
continuou. — Passou da hora de ir, de ganhar as ruas e ver o que a noite me
traz afinal, chega de gente pequena! — Fá olhou com profundidade abissal, para
a floricultura e de deixar, o seu sagrado refúgio da fullgás realidade líquida.
Ela tragou o cigarro com prazer, como se fosse a última tragada da vida, antes
de enfrentar um pelotão de fuzilamentos, antes de enfrentar o mundo real.
Ao atravessar a porta da floricultura, o álgido vento notívago tocou-lhe o
corpo incorpóreo por inteiro como um alento avassalador. Ao longe o piar de uma
coruja soou como uma sinfonia aos ouvidos de Fá. E o bailar frenético dos
morcegos no ar, na busca de presas fáceis, para saciarem a fome noturna a
deixaram em êxtase completo. Todo o espetáculo noturno encheu a negra alma de
Fá Rodrigues Butler de entusiasmo.
— Mil olhos postados em mim? — Disse ela em um tom bem baixo, quase um
sussurro, então acenou com a mão direita, em sentido anti-horário, para uma câmera
instalada na loja de roupas femininas no outro lado da rua. — Não hoje meus
queridos! Não hoje! E nem nunca meus amores! — Fá começou a sua marcha sem
pressa alguma, ia para casa, seu sacrossanto lar, tinha uma festa para
organizar, amigos para saudar e uma família para cuidar. Tendo as ruas
desertas, como únicas testemunhas, ela então entra em ação, o que não seria
mais uma rotineira volta para casa depois do trabalho, seria algo mais além.
Não era uma distância muito longa do trabalho de Fá até a casa onde vivia, mas
a fauna e flora notívaga era abundante e muito variada naquela hora extremada.
E se a avenida principal, aonde ela andava, era muito bem iluminada, as ruas,
as ruelas, os becos e as travessas vicinais eram mal iluminadas e mal
frequentadas. Era onde a vida noturna marginal realmente ocorria. Um relâmpago
rasgou o céu da negra noite, e o forte estrondo que se seguiu, em três segundos
a posteriori, assustou muita gente,
menos Fá.
Andando a poucos passos, ela viu pequenos clarões em uma via escura, Fá pensou
nas efêmeras estrelas cadentes, e também logo a imagem em preto e branco de
criaturas esquálidas e semi mortas alvoroçaram a tétrica imaginação da
paisagista.
— Quem sabe algum dia meus ufanos amores! Hoje não dá, preciso de uma mão de
obra um pouco mais robusta e qualificada! — As duas mulheres e os três homens
esquálidos e de olhos vermelhos injetados escutaram a profunda voz de Fá, como
se ela estivesse a poucos centímetros deles, todos foram ao chão de forma
abrupta e violenta. Fá sorriu com o que ocorrido, parecia uma criança travessa,
que acabara de ganhar um brinquedo novo.
— A noite é só uma criança! — E ela prosseguiu sua sombria marcha, estava cheia
de si novamente. E só foi andar uns poucos metros adiante, que Fá avistou em
outra ilha degredo, na escuridão abissal, duas criaturas andróginas se
beijavam. Dois transgêneros estavam se se beijando lascivamente, em um ponto de
ônibus decadente. Era início da função e as duas criaturas notívagas se davam
ao luxo de se divertirem, antes dos clientes fiéis e ocasionais chegarem em
busca, de prazeres efêmeros e clandestinos em pequenas aventuras marginais. Fá
não gostou nada da falta de glamour das duas criaturas noturnas, mas era quase
isso, ela pensou que estava perto de encontrar o que tanto precisava. Ao passar
pelas duas pessoas, ela sentiu o forte olor de perfume barato e de cigarro de
quinta no bolso de uma delas.
— Hoje não amores! Hoje não para mim, então divirtam-se na função! — A voz de
Fá cheia de malícia cravou nas mentes das duas criaturas da noite. As duas
pararam de se beijar, viram, olharam e sorriram cheias de desejo para Fá. Ela
simplesmente devolveu o olhar lascivo e o sorriso malicioso para as duas. Elas
voltaram para si e recomeçaram o que estavam fazendo. As luzes do ponto de
ônibus acendem, expondo as duas criaturas noturnas, uma segurava o sexo da
outra, o caixa de som instalado no alto do abrigo do ponto do ônibus tocaram
uma música, uma antiga canção romântica francesa, era um sucesso obscuro, do
meio do século XX, ambos os equipamentos estavam quebrados há meses.
Então ela voltou para a sua marcha, como se nada tivesse ocorrido. Fá
sentiu o vento álgido da noite outonal trazer, um olor forte no ar, era sangue
jorrando em rios, medos, desesperos e a iminência da morte por fim. Um negro oceano de infindas
possibilidades se descortinou diante dela, e um grito primal ecoou na mente da
dama da noite. Fá sorriu mais uma vez, mas dessa vez foi por dentro. Andou mais
alguns metros, ela sentiu o cheiro de sangue e puro desespero aumentar mais e
mais. Em uma via vicinal escura, cinco homens grandes e musculosos chutavam
violentamente três homens no chão. Os homens de pé eram brancos, tatuados,
usavam camisas brancas, calças sociais pretas, suspensórios, coturnos bem
engraçados e eram totalmente carecas. Eles sorriram e gritavam eufóricos
enquanto espancavam os homens que estavam no chão. Os homens, que apanhavam ao
chão, eram usuários de drogas, maltrapilhos e moradores de rua. Para os
agressores, eles cruzaram uma linha geográfica imaginária proibida, onde
negros, judeus, índios, gays e toda a sorte de minorias não deveriam passar,
segundo o ideário dos agressores. Os cinco homens, que promoviam a surra monumental,
estavam cansados, suados e felizes de repente pararam para contemplar a obra
que realizaram, com sorrisos largos olhavam nas caras os três homens decrépitos
no chão frio que sangravam, choravam e se lamuriam pela má sorte na vida.
Foi como se uma explosão tivesse atingido os neonazistas, os corpos dos
quatro agressores foram projetados contra o muro da casa atrás deles, de forma
violenta, estavam mortos quando chegaram ao chão e em cima das suas três
vítimas. O quinto elemento do bando, que liderava o massacre, nada sofreu e
sentiu uma pequena e frágil mão de mulher, envolver-lhe a garganta, ele foi
erguido do chão. Também sentiu um forte cheiro de rosas frescas e um ar álgido
que envolveu seu corpo. E diante da morte iminente, todo o orgulho pela
superioridade de pertencer a raça ariana desapareceu por completo. E uma face
de uma bela mulher, com os seus olhos verdes ficou de frente para ele, ela
sorri enquanto a vida se esvai dele.
Clarisse Cristal, bibliotecária, poetisa e cronista
em Balneário Camboriú, Santa Catarina.
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