quinta-feira, 1 de setembro de 2022

PONTO NULO NO CÉU: EU VEJO ESTRELAS NO CHÃO

Por Clarisse Cristal (Balneário Camboriú, SC)

 

            Fá Rodrigues Butler estava sozinha novamente, mas ainda detinha na cabeça a imagem dos dois homens da lei, que acabaram de esvaecer porta afora, tragados pela noite. Desde de a entrada deles e a posterior saída, um forte cheiro acre de traição pairava no ar e ela sentiu no seu âmago mais profundo. A mulher sentiu o ar pesar, ela queria vê-los agonizando em morte lenta, não somente as suas pobres alma miúdas, mas sim o que eles representavam por debaixo dos moribundos mantos apodrecidos dos códigos, das leis, a hierarquias escravizantes que eles representavam por si. Gente pequena, interligada e ligada em minudências apenas, incapazes de cosmos visões, do ver além do limitado mundo material e cotidiano em que viviam.

            Fá levou a mão até a bolsa e pegou um isqueiro de bronze alemão, e em cima do balcão pegou mais um cigarro, a chama do isqueiro azul clareou a semiescuridão do lugar. As sombras esculpidas nas paredes fizeram com que ela lembrasse que tinha passado da hora de voltar para casa.

            — Ponto nulo no céu, que coisa mais ridícula, não faltava mais nada nesta vida! Audácia dessa gente miúda de vir até aqui me importunar com minudências! — Falou em voz alta como se existisse alguém ali para dividir as suas angústias e continuou. — Passou da hora de ir, de ganhar as ruas e ver o que a noite me traz afinal, chega de gente pequena! — Fá olhou com profundidade abissal, para a floricultura e de deixar, o seu sagrado refúgio da fullgás realidade líquida. Ela tragou o cigarro com prazer, como se fosse a última tragada da vida, antes de enfrentar um pelotão de fuzilamentos, antes de enfrentar o mundo real.

            Ao atravessar a porta da floricultura, o álgido vento notívago tocou-lhe o corpo incorpóreo por inteiro como um alento avassalador. Ao longe o piar de uma coruja soou como uma sinfonia aos ouvidos de Fá. E o bailar frenético dos morcegos no ar, na busca de presas fáceis, para saciarem a fome noturna a deixaram em êxtase completo. Todo o espetáculo noturno encheu a negra alma de Fá Rodrigues Butler de entusiasmo.

            — Mil olhos postados em mim? — Disse ela em um tom bem baixo, quase um sussurro, então acenou com a mão direita, em sentido anti-horário, para uma câmera instalada na loja de roupas femininas no outro lado da rua. — Não hoje meus queridos! Não hoje! E nem nunca meus amores! — Fá começou a sua marcha sem pressa alguma, ia para casa, seu sacrossanto lar, tinha uma festa para organizar, amigos para saudar e uma família para cuidar. Tendo as ruas desertas, como únicas testemunhas, ela então entra em ação, o que não seria mais uma rotineira volta para casa depois do trabalho, seria algo mais além.

            Não era uma distância muito longa do trabalho de Fá até a casa onde vivia, mas a fauna e flora notívaga era abundante e muito variada naquela hora extremada. E se a avenida principal, aonde ela andava, era muito bem iluminada, as ruas, as ruelas, os becos e as travessas vicinais eram mal iluminadas e mal frequentadas. Era onde a vida noturna marginal realmente ocorria. Um relâmpago rasgou o céu da negra noite, e o forte estrondo que se seguiu, em três segundos a posteriori, assustou muita gente, menos Fá.

            Andando a poucos passos, ela viu pequenos clarões em uma via escura, Fá pensou nas efêmeras estrelas cadentes, e também logo a imagem em preto e branco de criaturas esquálidas e semi mortas alvoroçaram a tétrica imaginação da paisagista.

            — Quem sabe algum dia meus ufanos amores! Hoje não dá, preciso de uma mão de obra um pouco mais robusta e qualificada! — As duas mulheres e os três homens esquálidos e de olhos vermelhos injetados escutaram a profunda voz de Fá, como se ela estivesse a poucos centímetros deles, todos foram ao chão de forma abrupta e violenta. Fá sorriu com o que ocorrido, parecia uma criança travessa, que acabara de ganhar um brinquedo novo.

            — A noite é só uma criança! — E ela prosseguiu sua sombria marcha, estava cheia de si novamente. E só foi andar uns poucos metros adiante, que Fá avistou em outra ilha degredo, na escuridão abissal, duas criaturas andróginas se beijavam. Dois transgêneros estavam se se beijando lascivamente, em um ponto de ônibus decadente. Era início da função e as duas criaturas notívagas se davam ao luxo de se divertirem, antes dos clientes fiéis e ocasionais chegarem em busca, de prazeres efêmeros e clandestinos em pequenas aventuras marginais. Fá não gostou nada da falta de glamour das duas criaturas noturnas, mas era quase isso, ela pensou que estava perto de encontrar o que tanto precisava. Ao passar pelas duas pessoas, ela sentiu o forte olor de perfume barato e de cigarro de quinta no bolso de uma delas.

            — Hoje não amores! Hoje não para mim, então divirtam-se na função! — A voz de Fá cheia de malícia cravou nas mentes das duas criaturas da noite. As duas pararam de se beijar, viram, olharam e sorriram cheias de desejo para Fá. Ela simplesmente devolveu o olhar lascivo e o sorriso malicioso para as duas. Elas voltaram para si e recomeçaram o que estavam fazendo. As luzes do ponto de ônibus acendem, expondo as duas criaturas noturnas, uma segurava o sexo da outra, o caixa de som instalado no alto do abrigo do ponto do ônibus tocaram uma música, uma antiga canção romântica francesa, era um sucesso obscuro, do meio do século XX, ambos os equipamentos estavam quebrados há meses.

            Então ela voltou para a sua marcha, como se nada tivesse ocorrido. Fá sentiu o vento álgido da noite outonal trazer, um olor forte no ar, era sangue jorrando em rios, medos, desesperos e a iminência da morte por fim. Um negro oceano de infindas possibilidades se descortinou diante dela, e um grito primal ecoou na mente da dama da noite. Fá sorriu mais uma vez, mas dessa vez foi por dentro. Andou mais alguns metros, ela sentiu o cheiro de sangue e puro desespero aumentar mais e mais. Em uma via vicinal escura, cinco homens grandes e musculosos chutavam violentamente três homens no chão. Os homens de pé eram brancos, tatuados, usavam camisas brancas, calças sociais pretas, suspensórios, coturnos bem engraçados e eram totalmente carecas. Eles sorriram e gritavam eufóricos enquanto espancavam os homens que estavam no chão. Os homens, que apanhavam ao chão, eram usuários de drogas, maltrapilhos e moradores de rua. Para os agressores, eles cruzaram uma linha geográfica imaginária proibida, onde negros, judeus, índios, gays e toda a sorte de minorias não deveriam passar, segundo o ideário dos agressores. Os cinco homens, que promoviam a surra monumental, estavam cansados, suados e felizes de repente pararam para contemplar a obra que realizaram, com sorrisos largos olhavam nas caras os três homens decrépitos no chão frio que sangravam, choravam e se lamuriam pela má sorte na vida.

            Foi como se uma explosão tivesse atingido os neonazistas, os corpos dos quatro agressores foram projetados contra o muro da casa atrás deles, de forma violenta, estavam mortos quando chegaram ao chão e em cima das suas três vítimas. O quinto elemento do bando, que liderava o massacre, nada sofreu e sentiu uma pequena e frágil mão de mulher, envolver-lhe a garganta, ele foi erguido do chão. Também sentiu um forte cheiro de rosas frescas e um ar álgido que envolveu seu corpo. E diante da morte iminente, todo o orgulho pela superioridade de pertencer a raça ariana desapareceu por completo. E uma face de uma bela mulher, com os seus olhos verdes ficou de frente para ele, ela sorri enquanto a vida se esvai dele.  

 

 Clarisse Cristal, bibliotecária, poetisa e cronista em Balneário Camboriú, Santa Catarina.

 

 

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