quinta-feira, 1 de setembro de 2022

EM PERPÉTUOS CICLOS 2

 Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)


Em memória de João Carlos Pereira

 

 

‘’Eu prefiro as certezas do sim!

  Do que a incertezas do talvez.’’

Clarisse da Costa

           

Uma vaga e leve fragrância de flores de laranjeiras misturado com um forte olor almiscarado estava pairando no ar, de forma nada sutil. E uma explosão de fortes e vívidas cores irritou muito o agente de segurança, que vagava a esmo pelo salão de eventos, ele era o único caucasiano no recinto.

O vai e vem de uma pequena multidão de pessoas negras, de gente latino e vários tons de peles escuras, repletos de adornos nos pescoços, nos pulsos reinavam argolas e pulseiras reluzentes, enormes brincos nas orelhas, expressivos lenços nas cabeças, turbantes variados e as roupas berrantes e chamativas. Todos conversando de forma discreta.

E o som baixo e discreto de eufônicas e variadas línguas estrangeiras que falavam simultaneamente e que se lançavam no ar e intercambiavam entre as pessoas que ocupavam os espaços como se fosse uma perfeita sinfonia. O agente de segurança, de idade avançada, sentiu um frio percorrer a espinha como nunca tinha sentido antes. Ele ligou o sinal de alerta total!

            — Aquieto-me para recomeçar um novo ciclo professor Muteia. O texto soa, com o de uma pessoa a muito tempo falecida, uma autora obscura, uma escritora desconhecida do grande público, é claro. Mas a obra em si é minha com toda a certeza, compus com o meu sangue! — O rascunho estava na mesa, Adérito Muteia relutava em pegar o manuscrito para ler, pois sentia vibração que vinha dele. O literato africano, já tinha recebido e lido uma cópia em mídia digital do texto. Algo gritava, urrava dentro do texto, para além do texto e, de forma desesperada. Aquela mulher na frente dele deixava-o nervoso, como nunca antes.

            — Senhorita Fabiana de Lima, veja bem, no momento eu não creio que posso satisfazer os vossos anseios literários, da senhorita, não neste exato momento.

            O palavrório afetado, com um leve sotaque luso, irritou a jovial escritora, vestida sobriamente como uma aluna de pós-graduação diante de uma banca avaliadora para apresentar uma tese, com seu tailleur Chanel azul limão, cabelo preso, acessório discreto e maquiagem leve. Os vibrantes olhos castanhos, que ardiam em chamas, dela cravaram profundamente na mente de Muteia, o africano devolveu semicerrando os olhos negros profundos. Seria uma reunião e tanto pensou Muteia àquela hora extrema.

            O agente de segurança passou ao lado da mesa onde Fabiana e Muteia foram se alojar. O homem da lei, muito idoso para um agente de campo, parou abruptamente e voltou os olhos de para o casal a poucos centímetros dele. Mil vozes mínimas, em puro desespero, urraram dentre dele, o casal impassível sequer deu pela existência do homem idoso, impecavelmente vestido como um europeu. O agente de segurança que andava com a ajuda de uma bengala de cedro, usava óculos escuros feitos sobre medidas. Atônito  e muito cansado o homem idoso saiu do salão de festas, assim como quem foge para salvar a própria vida, ele cambaleou e com seus pés lânguidos. 

            — Então irá fazer as mudanças necessárias no texto? Olha o miúda, eu não tenho muito tempo para aspirantes a escritores, és ambiciosa demais e não creio que...

            — Balela professor Muteia! — Falou erguendo a voz e em tom de desafio, mesmo ela sabendo que era uma figura menor diante de um gigante — Não vim de tão longe, somente para ter a sua aprovação pessoal!

            — Não me interrompa de novamente ò miúda! Não vou e não quero te dar aprovação alguma, não é este o meu papel, entenda logo!

Muteia, estava falando com a jovem adulta, na frente dele como se estivesse de novo em campo de batalha. O experiente adido militar, já tinha visto isso antes, bem falantes e corajosos aspirantes a carreira militar, jovens combatentes, recém saídos de academias e campos de treinamento, sempre apressados para enfrentar o oponente, com muita fome e muita sede de ação. No calor da batalha, em meio aos estrondos de explosões, rajadas de artilharias, o cheiro de carne calcinada, o olor de pólvora queimada, corpos arremessados ao longe e jatos de sangue. Desesperados, os jovens combatentes choravam, gritavam e se escondiam quando os combates começavam de fato. Adérito pensou nela diante do conselho, diante do ciclo interminável que estava adentrando

   — Não queria ser grosseira com o professor, me desculpe, eu vim de muito longe e quero ser publicada, eu também quero ser mais útil! — O tom conciliador de Fabiana não comoveu o experiente professor. Não quero ser uma célula dormente.  

            Muteia sentiu um zumbido que crescia e crescia, um drone pensou, dois drones na verdade calculou o experiente professor africano, um bem perto e outro um pouco mais longe, calculou o comandante de campo. E o emérito literato africano, ficou relaxado e pensou em um charuto, ele sentia a extrema necessidade de um bom charuto a bem da verdade.       

          E não demorou muito, um jovem secretário indiano bem alinhado com seu multicolorido traje típico, veio com uma bandeja de madeira, com as bordas artesanalmente decoradas. Nela uma caixa de madeira pintada a mão de charutos caribenhos, uma chávena de cristal artesanalmente decorado nela havia chá de lima-da-pérsia gelado. O jovem de cabelos negros reluzentes, um pequeno piercing no nariz e olhos negros vivazes serviu o casal e desapareceu tão rápido quanto chegou. 

            — Miúda, não é somente o querer, pensar ou mesmo desejar! Na verdade, é tudo isto junto, temperado com as casualidades que a vida nos impõe! E temos que viver e conviver não somente com as nossas escolhas, mas também temos que viver e conviver com as escolhas alheias, que não são nossas. És uma célula adormecida e não és tu que decide o quando ou o como!

            O zumbido ficou mais alto e o literato esperou e esperou enquanto dentro da caixa deixada pelo secretário, Muteia pegou o cortador de charutos Don Emmanuel e o isqueiro à querosene com tanque de óleo transparente. O professor, literato e adido militar preparou e acendeu o charuto cubano que tinha levado à boca e deu uma demorada baforada.

            A jovem escritora levantou a mão, com a palma da mão aberta, de forma abrupta ela fechou na frente do Muteia, abriu e fechou novamente! O drone parado a poucos metros dos dois se esmigalhou, caiu no meio da rua, caiu na calçada sem fazer barulho e não atingiu ninguém e o aparelho retorceu diante dos transeuntes. Muteia dá uma segunda baforada seguida de um discreto sorriso de marfim e bate palmas.

            — És uma jovem e impulsiva! E nada discreta pelo que vejo!

            O segundo drone parado a quilômetros de distância caiu lentamente, foi parar em uma densa mata fechada, do que seria um jardim de uma luxuosa casa, um suntuoso solar de um potentado, muito abandonado. Muteia, muito tempo se acostumou em lidar com alunos deste naipe, estes jovens impulsivos.

            — Vamos ver com mais cuidado o que temos aqui. — Muteia pegou o manuscrito em cima da mesa e leu em voz alta: — Eu não falo com estátuas! Eu vivo no além dos astros-mortos! — Promissor miúda, espere, somente espero. Aguarde o nosso chamado.

 

Samuel da Costa é contador e funcionário público em Itajaí, Santa Catarina.

Contato: samueldeitajai@yahoo.com.br 

 

 

 

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