Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)
‘’Hoje
sou errante, sem destino certo. O vento me guia.
Sofri
muito no passado, mas, afinal, o que o passado nos reserva?
Nada,
ao ser apenas passado.
Exceto
pelas boas lembranças, que ainda doem muito.’’
Fabiane
Braga Lima
A caneta tinteiro Parker,
percorria a ebúrnea folha de papel, com muita delicadeza e uma muita severidade
segura, era um fazer notívago, silencioso e metódico, Estela invariavelmente
escrevia dez páginas por dia, por noite, a bem da verdade. E depois de compor o
texto, o abandonava e partia para os seus afazeres laborais. Verificar a lista
de hóspedes instalados, os que partiram e os que estavam para chegar, verificar
os relatórios dos estoques de víveres, de bebidas, de charutos e cigarros,
inventários repassados pelo subgerente da tarde. Depois, Estela, escreveu as
instruções para as camareiras, os seguranças, os carregadores de malas, garçons
e os concierge. Pois Estela foi verificar as correspondências, as mensagens via
telefone, rádio e os telegramas vindos de toda a parte e em vários idiomas.
Trabalhos que deveriam ser feitos pelo gerente do hotel e os dois subgerentes e
Estela sendo uma simples recepcionista e fazia no plantão noturno, acabou
absorvendo essas demandas de forma natural e sem ganhar a mais por isso.
O hotel Reno, onde Estela
estava dando o seu plantão noturno, era de fato, uma extensão de um hotel maior
e mais estruturado, localizado a poucos metros da versão reduzida do irmão
maior. A priori, aquela versão menor do hotel principal, fora idealizado para
abrigar os capitães dos navios mercante, mestres e contramestres de barcos da
pesca industrial, pilotos e copilotos dos hidroaviões e trabalhadores
portuários especializados e deslocados de outros portos de outras regiões. Não
era propriamente um público abastado, comum na versão principal do Hotel Reno,
também não faziam parte da massa trabalhadora desprovida de recursos. Com o
passar do tempo, a versão reduzida do hotel Reno, começou a ser frequentado
pelas confrarias e clubes exclusivos da localidade e região. Eram grupos
fechados e predominantemente masculino, reuniões reservadas de políticos e
grandes homens de negócios, eram reuniões fechadas e informais de ricos homens
e poucas mulheres da elite endinheirada local, clubes fechados de jogos de cartas,
confrarias de degustadores de bebidas e charutos.
E não demorou muito, para
aquela extensão do hotel Reno, passou a ser usado para encontros clandestinos
na calada da noite e depois em horários variados. A extensão do hotel Reno, era
um local que na prática as mulheres não eram bem-vindas, exceto as
trabalhadoras, damas da noite e amantes afins. E Estela, que vinha do interior,
se adaptou bem rápido às muitas particularidades e estranhezas daquele pequeno
hotel Reno próximo de grandes, médias e de pequenas embarcações e o grande rio
transformado em pista de pouso e decolagem de hidroaviões.
Hotel que recebia uma gama
variada de estrangeiros, e Estela oriunda de uma região de tríplice fronteira e
várias colônias europeias, ela era falante de espanhol, italiano e alemão, ela
jovem, solteira, sem filhos e sem laços com a cidade. Estela encontrou no hotel
Reno, um lugar ideal para recomeçar a vida. Estela não demorou para conhecer as
subterrâneas dinâmicas peculiares do local onde passou a trabalhar. A começar
pela entrada exclusiva para os funcionários, os fornecedores e os prestadores
de serviço nos fundos do hotel Reno. Onde duas ruas laterais, cedidas por duas
casas vizinhas, localizadas na rua de trás do hotel Reno, então se
transformaram em um beco estreito e escuro, dando acesso direto aos fundos do
hotel. Logo o beco do hotel Reno passou a ser um lugar mal afamado e a ser
evitado pelo povo da localidade.
— Vais ficar aí parada, me
olhando por muito tempo? — Disse a recepcionista Estela, enquanto revisava um
texto.
— Eu só queria saber por que,
não usas a máquina de escrever, minha querida? — A voz pausada e gélida,
percorreu a curta distância e encontrou a entediada recepcionista, farta da
situação insólita resolveu não responder de imediato.
Estela, reviu as tarefas
feitas e as medidas que teriam que ser feitas, tocou uma sineta, e um jovem
mensageiro, surgiu rapidamente, pela lateral esquerda do balcão onde Estela
trabalhava. A recepcionista, passou as ordens de serviço para o mensageiro, que
por sua vez repassava as ordens de serviço para o restante do staff do hotel
Reno, assim como as variadas correspondências e mensagens para os hóspedes. O
jovem mensageiro, devidamente uniformizado, recebeu a papelada e se retirou sem
nada dizer! A recepcionista, ligou para o hotel principal, para confirmar as
reservas e os cancelamentos delas, atualizou os check-in e os checkout e por
fim, colocou o telefone no gancho, ergueu a cabeça. Em encarou a outra, na
frente dela, esperando não haver ninguém ali. Mas havia um outro alguém, no
outro lado do balcão.
— Olha onde estou minha cara!
Por que não escrevo à máquina? Eu inundaria este lugar tranquilo, com barulhos
desnecessários. Nós, os do andar debaixo, devemos ser invisíveis. Mas, a
pergunta não é bem esta! A pergunta que fica no ar, não é bem uma pergunta e
sim um fato, depois que vocês apareceram por aqui, começaram a aparecer muitos
corpos sem vida, por toda a parte! — Disse de forma glacial, estala a
recepcionista, que tirou do bolso um maço cigarros e um isqueiro, tirou um
cigarro levou a boca e o acendeu.
— Nada escapa dos teus olhos
de lince, não é verdade!? — Disse a desconhecida, ela trajada como uma dama à
noite e continuou! — Morre gente todos os dias minha cara amiga!
— Falo dos cães, gatos, peixes
dos rios, riachos, nas fontes das praças, dos aquários em casas particulares e
pássaros silvestres e nas gaiolas! Depois os animais de porte grande, cavalos,
bois, vacas e ovinos e caprinos! — Disse Estela, de forma mecânica.
— De fato! Eu não nego...
— Depois os suicídios, mortes
súbitas e acidentais! Aquele senhor negro idoso, o escriturário que morreu de
forma súbita aqui a frente do hotel, teve a morte do jardineiro particular do
governador, caiu do alto de uma árvore, o filho do prefeito e os amigos dele
morreram em um trágico acidente de carro, a dama da noite, que estava hospedada
aqui, foi encontrada morta, com os pulsos cortados em uma banheira. Todos
ligados, de uma forma ou outra a este hotel. Tudo isto, depois da hecatombe dos
animais, que começou a vossa chegada e dos teus amigos, nesta recepção. Estou
indo bem até agora? — Disse a angustiada Estela, ainda com o cigarro na mão.
— Morre gente todos os dias,
minha cara amiga! — Repetiu sorrindo a outra no outro lado do balcão.
Fragmento do livro: Em perpétuos ciclos, por Samuel da Costa, escritor, novelista, poeta e contista em Itajaí, Santa Catarina.
Argumento de Clarisse Cristal, bibliotecária, contista, novelista e poetisa em Balneário Camboriú, Santa Catarina.
Nenhum comentário:
Postar um comentário