terça-feira, 1 de abril de 2025

OPERA MUNDI: O HOTEL RENO (SÉRIE: OS CEIFADORES)

 Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

 

‘’Hoje sou errante, sem destino certo. O vento me guia.

Sofri muito no passado, mas, afinal, o que o passado nos reserva?

Nada, ao ser apenas passado.

Exceto pelas boas lembranças, que ainda doem muito.’’

Fabiane Braga Lima

 

A caneta tinteiro Parker, percorria a ebúrnea folha de papel, com muita delicadeza e uma muita severidade segura, era um fazer notívago, silencioso e metódico, Estela invariavelmente escrevia dez páginas por dia, por noite, a bem da verdade. E depois de compor o texto, o abandonava e partia para os seus afazeres laborais. Verificar a lista de hóspedes instalados, os que partiram e os que estavam para chegar, verificar os relatórios dos estoques de víveres, de bebidas, de charutos e cigarros, inventários repassados pelo subgerente da tarde. Depois, Estela, escreveu as instruções para as camareiras, os seguranças, os carregadores de malas, garçons e os concierge. Pois Estela foi verificar as correspondências, as mensagens via telefone, rádio e os telegramas vindos de toda a parte e em vários idiomas. Trabalhos que deveriam ser feitos pelo gerente do hotel e os dois subgerentes e Estela sendo uma simples recepcionista e fazia no plantão noturno, acabou absorvendo essas demandas de forma natural e sem ganhar a mais por isso.

O hotel Reno, onde Estela estava dando o seu plantão noturno, era de fato, uma extensão de um hotel maior e mais estruturado, localizado a poucos metros da versão reduzida do irmão maior. A priori, aquela versão menor do hotel principal, fora idealizado para abrigar os capitães dos navios mercante, mestres e contramestres de barcos da pesca industrial, pilotos e copilotos dos hidroaviões e trabalhadores portuários especializados e deslocados de outros portos de outras regiões. Não era propriamente um público abastado, comum na versão principal do Hotel Reno, também não faziam parte da massa trabalhadora desprovida de recursos. Com o passar do tempo, a versão reduzida do hotel Reno, começou a ser frequentado pelas confrarias e clubes exclusivos da localidade e região. Eram grupos fechados e predominantemente masculino, reuniões reservadas de políticos e grandes homens de negócios, eram reuniões fechadas e informais de ricos homens e poucas mulheres da elite endinheirada local, clubes fechados de jogos de cartas, confrarias de degustadores de bebidas e charutos.

E não demorou muito, para aquela extensão do hotel Reno, passou a ser usado para encontros clandestinos na calada da noite e depois em horários variados. A extensão do hotel Reno, era um local que na prática as mulheres não eram bem-vindas, exceto as trabalhadoras, damas da noite e amantes afins. E Estela, que vinha do interior, se adaptou bem rápido às muitas particularidades e estranhezas daquele pequeno hotel Reno próximo de grandes, médias e de pequenas embarcações e o grande rio transformado em pista de pouso e decolagem de hidroaviões.

Hotel que recebia uma gama variada de estrangeiros, e Estela oriunda de uma região de tríplice fronteira e várias colônias europeias, ela era falante de espanhol, italiano e alemão, ela jovem, solteira, sem filhos e sem laços com a cidade. Estela encontrou no hotel Reno, um lugar ideal para recomeçar a vida. Estela não demorou para conhecer as subterrâneas dinâmicas peculiares do local onde passou a trabalhar. A começar pela entrada exclusiva para os funcionários, os fornecedores e os prestadores de serviço nos fundos do hotel Reno. Onde duas ruas laterais, cedidas por duas casas vizinhas, localizadas na rua de trás do hotel Reno, então se transformaram em um beco estreito e escuro, dando acesso direto aos fundos do hotel. Logo o beco do hotel Reno passou a ser um lugar mal afamado e a ser evitado pelo povo da localidade.

— Vais ficar aí parada, me olhando por muito tempo? — Disse a recepcionista Estela, enquanto revisava um texto.

— Eu só queria saber por que, não usas a máquina de escrever, minha querida? — A voz pausada e gélida, percorreu a curta distância e encontrou a entediada recepcionista, farta da situação insólita resolveu não responder de imediato.

Estela, reviu as tarefas feitas e as medidas que teriam que ser feitas, tocou uma sineta, e um jovem mensageiro, surgiu rapidamente, pela lateral esquerda do balcão onde Estela trabalhava. A recepcionista, passou as ordens de serviço para o mensageiro, que por sua vez repassava as ordens de serviço para o restante do staff do hotel Reno, assim como as variadas correspondências e mensagens para os hóspedes. O jovem mensageiro, devidamente uniformizado, recebeu a papelada e se retirou sem nada dizer! A recepcionista, ligou para o hotel principal, para confirmar as reservas e os cancelamentos delas, atualizou os check-in e os checkout e por fim, colocou o telefone no gancho, ergueu a cabeça. Em encarou a outra, na frente dela, esperando não haver ninguém ali. Mas havia um outro alguém, no outro lado do balcão.

— Olha onde estou minha cara! Por que não escrevo à máquina? Eu inundaria este lugar tranquilo, com barulhos desnecessários. Nós, os do andar debaixo, devemos ser invisíveis. Mas, a pergunta não é bem esta! A pergunta que fica no ar, não é bem uma pergunta e sim um fato, depois que vocês apareceram por aqui, começaram a aparecer muitos corpos sem vida, por toda a parte! — Disse de forma glacial, estala a recepcionista, que tirou do bolso um maço cigarros e um isqueiro, tirou um cigarro levou a boca e o acendeu.

— Nada escapa dos teus olhos de lince, não é verdade!? — Disse a desconhecida, ela trajada como uma dama à noite e continuou! — Morre gente todos os dias minha cara amiga!

— Falo dos cães, gatos, peixes dos rios, riachos, nas fontes das praças, dos aquários em casas particulares e pássaros silvestres e nas gaiolas! Depois os animais de porte grande, cavalos, bois, vacas e ovinos e caprinos! — Disse Estela, de forma mecânica.

— De fato! Eu não nego...

— Depois os suicídios, mortes súbitas e acidentais! Aquele senhor negro idoso, o escriturário que morreu de forma súbita aqui a frente do hotel, teve a morte do jardineiro particular do governador, caiu do alto de uma árvore, o filho do prefeito e os amigos dele morreram em um trágico acidente de carro, a dama da noite, que estava hospedada aqui, foi encontrada morta, com os pulsos cortados em uma banheira. Todos ligados, de uma forma ou outra a este hotel. Tudo isto, depois da hecatombe dos animais, que começou a vossa chegada e dos teus amigos, nesta recepção. Estou indo bem até agora? — Disse a angustiada Estela, ainda com o cigarro na mão.

— Morre gente todos os dias, minha cara amiga! — Repetiu sorrindo a outra no outro lado do balcão.

 

Fragmento do livro: Em perpétuos ciclos, por Samuel da Costa, escritor, novelista, poeta e contista em Itajaí, Santa Catarina.

Argumento de Clarisse Cristal, bibliotecária, contista, novelista e poetisa em Balneário Camboriú, Santa Catarina. 

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