terça-feira, 1 de abril de 2025

OPERA MUNDI: RAPTORES DE ALMAS MORTAS (SÉRIE: OS CEIFADORES)

 Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

‘’O vento me guia, sofri muito no passado,

Mas afinal, o que o passado nos reserva?

Nada, ao ser apenas passado.

Exceto pelas boas lembranças, que ainda doem muito.

E como doem! Mas a vida segue, somos instantes.’’

Fabiane Braga Lima

 

            O hall de entrada do Hotel Reno, estava em completo silêncio, um silêncio sepulcral e Estella olhou bem para a outra na frente dela. O qual a recepcionista, não conhecia coisa alguma e mesmo assim a conhecia bem. Estella, que no começo da vida, quando ainda era uma criança bem pequena, ouvia as avós, tias avós, as tias velhas conversando, na sala de estar da casa. Eram conversas estranhas, pois ela percebia que elas conversavam no vazio, com pessoas que não estavam ali, eram conversas ao final da tarde, a maioria das vezes.

            Na vida de Estella, uma criança pouco mais crescida, vieram as visitas inesperadas, eram desconhecidos parentes distantes, amigos e amigas da família e até pessoas mais próximas. Viam conversar com a pequena Estella, eram conversas breves e, na maioria das vezes à tardinha, no final da tarde. Coube a avó materna de Estella a explicar a situação suvenires, dando conta, para a menina moça, que as mulheres da família, segundo anciã, eram portais entre mundos. As mulheres, eram elos astrais entre os vivos com os desencarnados. E com o passar do tempo, Estella a recepcionista noturna do Hotel Reno, se esforçou para ignorar aquela parte obscura da família, para depois passar a negá-la por completo.

            E o ser na frente dela, não era uma alma desencarnada, era uma outra coisa, não era algo a ser ignorado pela recepcionista! E Estella não ouviu as três histórias, que aquele ser desconhecido repassou, a entidade simplesmente projetou as histórias o que ocorreu na mente de Estella. Aiyra, como ela se apresentou, fez a recepcionista noturna, se retorcer em agonia e desespero. Aiyra com os seus negros olhos rasgados sem vida, os negros e longos cabelos lisos brilhantes, a pele amendoada, os pontiagudos dentes ebúrneos, ela usava alvas vestes diáfanas e nenhum adorno para enfeitar a beleza alienígena. 

            — Falta um! Te nomeei quatro passamentos, te contaste três! — Disse Estella um tanto trêmula, para a impassível Aiyra na frente dela.

            — O peso da idade avançada, levou aquele homem, que passou na frente deste Hotel. O peso da idade, junto aos gritos de dores dos Xoclengue clamaram-lhe a alma imortal. Pois o infeliz, interrompeu um sacrossanto ritual, as lamúrias trespassaram o tempo e espaço e cobraram a dívida que o passante, tinha com os silvícolas — Disse Aiyra, sem abrir a boca e Estella demorou para decifrar a história confusa. Estella, ouvira que na juventude de Apolinário, o senhor que caiu morto na frente do Hotel Reno, era conhecido por perseguir as populações indígenas da localidade.  

            — Eu não posso dizer que gosto das vossas companhias, muito menos de saber os detalhes dos passamentos nos vossos desafetos! — Disse Estella um tanto nervosa, que levou a mão, em um compartimento debaixo do balcão da recepção, tirou dali uma garrafa de uísque e um copo, encheu o copo tomou um gole e continuou — O que vocês querem de mim?

            Aiyra sorriu para Estella, e se aproximou bem devagar da recepcionista, que sentou mãos inumanas a lhe esmagar a garganta. Aterrada a recepcionista quis gritar, mas não pode.  

            — Tola criatura, estamos muito além do que a vossa imaginação possa alcançar, és então somente um elo entre mundos! Por hora é somente o que saberá! — Sussurrou Aiyra no ouvido da recepcionista noturna e continuou — Ceifamos as almas que viemos buscar.

            Uma revoada de negras aves more inundou a recepção do hotel, os grasnares das aves agourentas encheriam Estella de pavor. A recepcionista ouviu o som de vidros sendo quebrados e o estridente barulho dos mobiliários da recepção sendo destruídos e papéis esvoaçando. Os bicos e as unhas das patas dos animais rasgaram a pele de Estella, o sangue fresco cobriu o corpo da recepcionista.

            Então tudo parou e a recepcionista voltou a si e o silêncio tomou conta do lugar. Estella apalpou o próprio corpo e descobriu que estava ilesa, olhou ao redor da recepção, notou que Aiyra tinha desaparecido e que a recepção estava em ordem. A recepcionista, alcançou uma resma de papel em branco e uma caneta tinteiro que estavam no balcão. Levou a mão ao bolso do uniforme, pegou um maço de cigarro e um isqueiro, levou o cigarro à boca, ergueu o isqueiro e acendeu o cigarro.

            — Agora isto? Se foram, mas quando essas coisas vão retornar? — Disse Estella em alto e bom som para o vazio. 

                    

 

Fragmento do livro: Em perpétuos ciclos, por Samuel da Costa, novelista, poeta e contista em Itajaí, Santa Catarina.

Argumento de Clarisse Cristal, bibliotecária, contista, novelista e poetisa em Balneário Camboriú, Santa Catarina. 

 

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