Por Catarina Denise Rabello Osoegawa (São Paulo, SP)
No espaço do silêncio entre o clique da máquina fotográfica e
a sensação de um silêncio perturbador no divã de análise, alguns paralelos instigam-me
a questões quase indecifráveis. As
narrativas que se descortinam entre um silêncio e outro, entre uma imagem e
outra, ora se desnudam, ora se escondem, ora se fragmentam em uma correnteza de
significantes que se movem em direção a uma nuvem de metáforas.
Assim como na
fotografia, no jogo de luz e sombras, as imagens nos seus contornos se
desvanecem à medida que a luz se divide em diferentes planos e texturas
mantendo-se apenas o foco central com nitidez, no percurso da análise,
coincidindo com o “clique” do inconsciente, irrompe um rojão que explode na
consciência, recuperando um segredo guardado que fora fina e longamente
elaborado, expurgando a sombra que o aprisionava. Libera-se em uma apresentação
potencialmente transformadora o insight. Este pode ser múltiplo, único, rápido
ou mais prolongado, de qualquer maneira conserva a sua característica de
provocar um êxtase a quem o reconhece em seu valor de comunicar algo
surpreendente com a aparência de novo e conhecido ao mesmo tempo.
Começar de novo é uma experiência comum a cada sessão de
análise e a cada sessão fotográfica, como se um condutor se dirigisse sempre ao
mesmo destino comum e apaixonante. Da semiótica ao mundo das narrativas, desde
as mais subjetivas até às documentais, históricas, ficcionais, às mais poéticas,
o humano se aventura a provocar e ser provocado pela linguagem, e trilha sem
saber os caminhos que o levam a realizar sua vida pulsional.
Sem saber como nem porque, aventurei-me ao estudo da
linguagem e somente após uma longa trajetória profissional, passando pela
Fonoaudiologia, Psicologia e Psicanálise pude encontrar-me com o que faria
sentido na intersecção destes campos com a Fotografia. Descobri que algumas
perguntas são capazes de elevar o grau de ansiedade frente a uma ausência de
resposta, enquanto outras, dependendo da forma como se questiona, são capazes
de resgatar caminhos mais criativos e favoráveis à continuidade de uma jornada.
Em Introdução à Psicanálise e as Neuroses de Guerra, texto escrito
em 1918, Freud tratava de um tema dos mais atuais para a época. O resultado
deste trabalho apresentado no Quinto Congresso Psicanalítico Internacional em
Budapest, levou as autoridades à promessa de estabelecerem centros
psicanalíticos para tratar e estudar a natureza dos intrincados distúrbios
produzidos pela guerra. Embora essa proposta se perdesse com o final da
Primeira Guerra Mundial em 11 de novembro de 1918, esse episódio marcou uma grande
influência na difusão da psicanálise.
Alguns dos fatores que a psicanálise havia reconhecido e
descrito ao trabalhar com neuroses em tempos de paz observou-se estarem
igualmente presentes nas neuroses de guerra, como a origem psicogênica dos
sintomas, a importância das pulsões inconscientes e o papel desempenhado pelos
mecanismos da repressão na produção das neuroses.
A teoria da etiologia sexual das neuroses acabara de
testemunhar ao mundo pós-guerra que as neuroses tinham a sua origem em momentos
bem precoces do desenvolvimento psicossexual, e os efeitos das feridas
narcísicas à frustração no amor refletiam-se na vida adulta em forma de
sintomas em resposta às exigências de uma libido insatisfeita.
Na elaboração dos conceitos e fundamentos da teoria
psicanalítica, Freud incluiu em suas descobertas elementos da cultura, da
mitologia, da história das religiões e da literatura. No texto de 1919, intitulado
‘Estranho’ reporta-se ao tema da estética, não somente relacionada à teoria da
beleza, mas à teoria das qualidades do sentir. Relata Freud: “O analista opera
em outras camadas da vida mental que o levam, eventualmente, a recorrer ao
campo da estética para compreender a natureza dos impulsos emocionais. O tema
do ‘estranho’ é um desse tipo”. [1]
Suas buscas no campo da semiologia levaram-no a compreender o
processo da criação de sentido dos termos unheimlich (estranho) e o seu
oposto heimlich (familiar), concluindo após longo e detalhado
estudo, que estas palavras embora opostas, apareciam nos textos literários com
uma raiz semântica muito semelhante. O
estranho que remete ao assustador, esquisito, misterioso e não familiar, é
comum também ao que é familiar capaz de causar estranhamento. A lembrança emocional deste conteúdo oculto
em uma memória distante, ao retornar à consciência, mostra-se como algo incompreensível com
aparente falta de lógica, não familiar, causando espanto e desejo de que
permaneça oculta para sempre. Freud relaciona esta ideia ao retorno do
reprimido inconsciente que irrompe na vida mental em forma de sonhos, chistes,
atos falhos e sintomas incompreensíveis, causando estranhamento, dor e
angústia.
Sob a perspectiva da psicanálise, a arte se coloca como uma
possibilidade de expressão do inconsciente, uma via de acesso ao conteúdo
reprimido, sem necessariamente causar a sensação de estranhamento ou
transformar-se em angústia.
No processo da produção artística a energia pulsional
agressiva e o conflito de forças das vivências traumáticas que poderiam
cristalizar-se em forma de sintoma, passam por um processo complexo de
metamorfose e adquirem um valor estético capaz de serem comunicados e aceitos
socialmente.
Segundo Donald Winnicott (1896-1971), a atividade criativa e
artística está intimamente relacionada ao ato de brincar e ao conceito de
objeto transicional. O brincar torna-se um espaço potencial onde a criatividade
pode emergir, favorecendo a criação do objeto
transicional, o qual desempenha um papel primordial no equilíbrio psíquico,
estruturando a interface entre o mundo interno e o mundo externo. Winnicott
afirma que o desenvolvimento da criatividade é essencial na promoção da saúde,
funcionando como importante recurso terapêutico para a expressão simbólica do
sofrimento nos processos de
ressignificação e elaboração das vivências traumáticas. Especialmente em casos
de psicopatologias severas, a abordagem winnicottiana contribui para a
reorganização psíquica, reduzindo o isolamento e auxiliando a reintegração
social do paciente.
Roland Barthes (1915-1980), filósofo, escritor, crítico
literário, semiólogo francês, expoente da intelectualidade contemporânea, escreveu
um estudo filosófico sobre o processo fotográfico em seu livro A Câmara
Clara-Nota Sobre a Fotografia, publicado no ano de sua morte, em 1980. Barthes
explorou a fotografia não como um mero registro do real, mas como uma linguagem
que veicula sentidos em vários níveis. A fotografia, para Barthes revela uma
dualidade paradoxal: por um lado é um registro quase literal do real, do que
esteve diante da lente, o referente. Por outro lado, é uma construção que, como
toda linguagem, está sujeita a normas e ritos sociais e culturais que podem
desviar do sentido original, incluindo as distorções e mentiras como um
fenômeno social que invade todas as áreas da cultura.
Barthes elabora a tese de que a fotografia, compreendida como
linguagem, não expressa uma correspondência linear entre seus significantes, as
imagens, e seus significados, as interpretações. O fotógrafo, ao selecionar um
objeto ou situação, já estaria criando um mito ao transformar algo que lhe é
íntimo e faz parte da sua subjetividade em algo coletivo e natural. A
fotografia é como um teatro primitivo, cria-se um cenário a partir de um
impulso de vida que evoca ao mesmo tempo o instante da morte. O real não está
na imagem, surge no momento da criação e desaparece da cena com o clique da máquina.
A imagem fotográfica congelada indica um real que se perdeu, que fez parte do
infinito caminho entre o desejo e a lente do fotógrafo.
Ao interpretar o momento do clique da câmera como o momento
da morte, Barthes acentua que a fotografia é única e irreproduzível. Sempre haverá um sujeito com sua história por
detrás de cada registro fotográfico, e aquela imagem que poderia causar algum espanto
ao seu autor por não ter acesso direto ao que o motivou, ao invés disso, proporciona
realização, satisfação e prazer. O trabalho criativo eleva-se à categoria de
arte, e o artista pode expressar sem medo algo que emerge do inconsciente. A criação
revela apenas traços indicativos daquele ‘o que’, que permanece intricado à história
e subjetividade do autor, algo familiar e estranho ao mesmo tempo, porém, não
assustador. Este o “Que” que desponta da criatividade e pode causar surpresa, contempla
um potencial de identificação entre o artista e o espectador, como se uma
comunicação inconsciente se fizesse presente entre ambos. Assim como nos
chistes o riso revela um significado oculto que pode ser compartilhado, na
fotografia algo que aproxima o autor do espectador é revelado entre ambos como
familiar e capaz de extrair daquele momento um flash de surpresa e cumplicidade.
O ‘Que’ do desejo inconsciente recuperado e perdido ao mesmo
tempo, transforma-se em combustível capaz de alimentar as múltiplas faces das narrativas,
algumas passíveis de serem vistas e questionadas, outras de serem admiradas e
sentidas, outras de serem profundamente lidas, refletidas e interpretadas. De
qualquer forma, o fotógrafo estaria sempre diante do seu autorretrato tentando
comunicar algo, qualquer que fosse a intenção da sua fotografia, produzindo
sensações de estranhamento ou contemplação... A fotografia segundo Barthes pode
ser vista como uma autobiografia, e como ele dizia, toda autobiografia é
ficcional e toda ficção, autobiográfica.
Sem esquecer o poder social da linguagem, Barthes permanece
atual nas narrativas de transformação — seja pela psicanálise, pelo jornalismo
ou pela fotografia. A linguagem, em suas variadas formas e códigos, detém
imenso poder de gerar efeitos coletivos. As narrativas fotográficas
contemporâneas, ao abordar temas como injustiça social e desafios ambientais,
propõem um olhar crítico sobre problemas emergentes, afirmando: não deixem de
ver o estranho como verdadeiramente estranho, pois esse o “que” da fotografia
documental que nos impacta e nos assusta — é profundamente real.
Obs.: As fotografias foram tiradas no Parque Nacional "Los Cardones", Argentina.
Referências
·
Barthes, R. A Câmara Clara. Nova Fronteira, 1984
(original: 1980, francês)
·
Freud, S. (1976). Introdução à Psicanálise e as
Neuroses de Guerra. Imago, vol. XVII, pp. 259-265, 1919
·
Freud, S. (1976). Os Chistes e sua Relação com o
Inconsciente. Imago, Volume VIII, 1905.
·
Freud, S. (1976). O Estranho. Imago, v. XVII,
pp. 273–314, 1919.
·
Winnicott, W. D. O Brincar e a Realidade. Imago,
1975.
Sobre a Autora
Catarina Denise Rabello Osoegawa mora
em São Paulo (SP) e em Florianópolis (SC). Psicóloga e psicanalista, membro
efetivo do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae em São
Paulo, atuou como psicóloga na rede pública municipal de São Paulo pela
Secretaria Municipal da Saúde. Graduada em Fonoaudiologia, atuou como fonoaudióloga
do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo. Paralelamente à atuação
clínica, dedica-se à fotografia, sendo reconhecida em exposições como
a Metamorfose III, realizada em Brasília em 2025.