quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

CLARISSE CRISTAL E O MERGULHO NA ESCURIDÃO

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

 

Talvez não seja um sonho.

Enfim...

E ela esteja lá...
Na alcova minha

À meia luz!
Esperando por mim...
Enquanto na vitrola...
Toca o mais puro lamento negro,
A mais cristalina negra dor.

 

            ‘’Nunca me interessei por revisitar cenários’’ — disse Clarisse Cristal para si mesma, mas com uma enorme vontade de gritar ao máximo do impossível e para além do provável, para quem quisesse e não quisesse ouvir. A frase feita, que não era dela e sim um batido clichê que ela nem lembrava de onde tirou tal frase. Pois ao chegar no terraço todos os elementos, que podia lembrar, estavam todos lá disposto bem diante dela. O balcão de mármore Carrara, o bar com vários tipos de bebidas, copos e taças para todos os gostos, marcas e preços, as cadeiras espreguiçadeiras de praia gêmeas as famosas outdoor dubbele chaise lounge, a mureta com o peitoril com detalhes artesanais, as mesas e cadeiras distribuídas simetricamente. E por fim uma pequena piscina e a bela vista para o mar. Em uma olhada rápida no quiosque do terraço e Clarisse notou um grande retrato em preto e branco, com a assinatura de um fotografo famoso da atualidade. Era o professor Muteia elegantemente trajado, como de costume, mas de maneira casual, ladeado de uma jovem e bonita jovem mulher elegantemente vestida, também de maneira casual. Ele sentado em uma imponente poltrona e ela em pé e com as mãos em volta do pescoço do africano em terno carinho: — Então esta é famosa Agnela a misteriosa esposa de Muteia! — Pensou Clarisse em um lampejo.

            Belo local de trabalho, professor Mutéia!

            É Muteia sem acento, há um enorme hiato, no meu sobrenome e que se estende na minha vida cotidiana também. Podes de me chamar pelo meu prenome que é Adérito. Vamos sentar logo e começar a entrevista, pois não tenho muito tempo menina/mulher.

            Foram andando lentamente se afastando do quiosque e indo em direção de uma mesa a poucos metros da pequena amurada de frente para o mar. O emérito professor luso-africano afastou uma cadeira de forma cavalheiresca e ofereceu para a jovem dama. Adérito ocupou uma cadeira em frente de Clarisse, depois dela se sentar, o luso-africano ergueu a não esquerda e estalou os dedos e um mordomo apareceu para atendê-los. Clarisse deu uma olhada melhor no homem e viu que era mais que um mordomo era um mordomo vitoriano que os servia.

            Secretário me traga uma chávena de chá de menta gelado e os meus charutos, o que queres, minha querida Clarisse Cristal?

            O chá de menta gelado para mim está bom, mas dispenso os charutos!

            Sim senhor e madame! Vou trazer duas chávenas de chá de menta gelados e os charutos!

            O homem desapareceu tão rápido, como surgiu e por fim os dois estavam em um lugar reservado e sozinhos novamente. Clarisse tinha preparado muitas perguntas, como boa profissional que era, para fazer fugir dos muitos óbvios, pois ali quem estava diante dela não era uma pessoa qualquer. E com pessoas extraordinárias, os roteiros prévios raramente funcionam bem.

            Então como é mesmo o nome do veículo em que trabalhas miúda?

            Revista Astro-domo, de literatura, estética, comportamento e artes em geral!

            Interessante, já a conheço de fato. É bem pós-moderna por sinal, pois estão em todas nas plataformas digitais, pelo que sei. Diferentes de algumas revistas e jornais que eu colaboro.

            Então o professor conhece a nossa pequena revista então?

            Liga o gravador miúda e vamos logo começar a trabalhar!

            A repentina pressa do emérito luso-africano fez um alarme disparar em Clarisse Cristal, as pessoas como a formação dele não tendem a ter muita pressa quando estão trabalhando. Adérito foi forjado em parte pela velha e refinada escola europeia. Esperaram, por um tempo sem saber o motivo, e entreolharam-se com uma profundidade abissal. O clima só foi quebrado com a volta do secretário. Ele voltou com uma bandeja de prata recoberta por um delicado pano branco de linho egípcio, os serviu de forma solene e sem nada dizer e se retirou também de forma solene. A jovem entrevistadora achou tudo muito exagerado e por demais refinado para uma simples entrevista.

            Então professor, o senhor quer estabelecer alguns parâmetros a entrevista antes de começarmos de fato?

            Creio que não, minha cara e jovem amiga. Fico mais que contente em poder ser entrevistado por alguém mais próximo de mim. Quase não se vê muitos negros atuando, aqui no novo mundo, na literatura e no jornalismo cultural para ser mais exato. Está é na verdade a primeira vez que dou uma entrevista para outra pessoa da minha raça neste belo país, que me acolheu tão bem.

            Então como é ser escritor nos dias de hoje, para o professor? — Clarisse usou um clichê logo de entrada, logo após ligar o gravador digital que estava em cima da mesa.

            Eu não posso discorrer em belas letras, e em arte no geral, nos dias de hoje sem olhar profundamente para o passado, para que possamos compreender o tempo presente. Se no passado, não muito distante de nós, os escritores escreviam usando então somente municiados de penas, o tinteiro, o mata-borrão e eram iluminados pela luz de velas ou por enfumaçados candeeiros. E tendo a geração seguinte a máquina de escrever, a luz elétrica e a máquina a vapor, dando um ritmo bem mais acelerado para a nova sociedade menos agrária em mais urbana. Isso se refletiu e ainda reflete na escrita e no mundo das artes como um todo. Estamos é claro falando do início do século passado e do fim da anterior a este. A extrema velocidade dos dias de hoje, com o advento da escrita digital, acelerou muito mais a que a dita escrita mecanizada do século passado. Mas estou sendo muito enfadonho e academicista demais minha cara?

            Não mesmo professor, não mesmo! Prossiga por favor— Ela queria bem dizer sim para com academicismo exacerbado do professor.  

O escrever é sobretudo o transcender para o além do infinito! É fugir dos óbvios que a realidade nos impõe no dia-a-dia e é não conhecer e ter limites algum! E já antecipando a tua segunda pergunta, minha jovem Clarisse Cristal jornalista da revista astro-domo: O que é a realidade afinal? No conturbado mundo de hoje, a realidade é o que a gente quer que ela seja! — Clarisse Cristal ouve um alto ranger de uma antiga e pesada porta se abrindo atrás dela — E também antecipando a tua terceira e inevitável pergunta eu respondendo que eu navego, ou melhor flano, entre os movimentos literários do neo-simbolista e do neossurrealismo. Eu trafego livremente por estes dois movimentos literários, mesmo que esteja fora de moda falar em movimentos literários, no tempo presente. E vós digo que para os padrões da atualidade, estes dois movimentos literários e estéticos são os movimentos literários e estéticos que mais poderia representar a pós-modernidade! — Clarisse Cristal então ouviu passos, eram o barulho típico de salto alto quinze batendo no chão frio e duro do terraço de forma compassada. — Se a pouco me perguntasse sobre a Agnes. Então vós digo, minha querida jovem jornalista entrevistadora da revista Astro-domo, que ela é fruto da minha imaginação fértil então somente. Uma filha dileta e querida na verdade da minha irrequieta mente imaginativa. — Uma sombra surge por detrás de Clarisse e se agiganta — Ela como outras personagens que vem e vão ao sabor do vento e da ocasião. — A mulher passa ao lado de Clarisse e a jovem entrevistadora e a reconhece é a mesma mulher que outrora acompanhava Adérito Muteia na livraria — E é assim, que as personagens do meu fértil mundo imaginativo vão surgindo minha querida amiga, aos pedaços, nevoentos, nebulosos, lânguidos, turvos. — Ela se posta ao lado do professor Muteia e sussurra no ouvido dele e este sorriu — São personagens rebeldes por natureza minha querida amiga — A mulher se afasta lentamente, sobe na mureta, olha para trás, encara bem nos olhos  de Clarisse Cristal, a mulher sorriu para a jovem entrevistadora e então mergulhou. Clarisse atônita e em prantos corre até a mureta, olha para baixo, eram muitos andares até o chão, e Clarisse viu a si mesma, seu próprio corpo sem vida estendido no chão. As pessoas passando ao largo do corpo sem vida sem se importarem-se. Clarisse recuou em choque e decidiu olhar de novo, os muitos andares sumiram e ela não vê mais nada, somente a calçada a beira. E sem nada entender voltou a si, a olhar para Adérito Muteia, que estava estático sentado diante dela no mesmo lugar — Então é isto miúda, em tempos de realidade fluída, nada é de verdade e vivemos em um mundo de muitas mentiras, mundo fugaz, nasce, cresce e evanesce em poucas horas, minutos e até segundos! — Ela estava de volta sentada em frente ao professor, tinha a cabeça pesada, Clarisse não sabe o que pensar e dizer naquela hora. O emérito professor luso-africano sorriu para ela, não de forma sarcástica e sim com terno carinho.

            — A entrevista acabou miúda! Quem sabe um dia possamos nos aprofundar mais sobre estas questões! Qualquer dúvidas que possam surgir depois, entre em contato diretamente comigo como tu bem prover. Sou sim uma pessoa bem ocupado e raramente dou entrevistas, mas para tu posso rever este meu conceito estático. Pelo menos até agora!

            — Claro professor! Sim tenho muitas dúvidas e várias incertezas! — Era sonolento o tom de voz de Clarisse Cristal e nem parecia que era ela que estava falando naquele momento.

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