quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

PONTO NULO NO CÉU: A SENTINELA

Por Clarisse Cristal (Balneário Camboriú, SC) 

            O cabo Bruno Marques perdeu a noção da realidade em que vivia, de quanto tempo estava naquele pesadelo vívido, parado, estático, de prontidão, olhando pela fresta da torre de observação para o nada. O fuzil FAL, com mira laser estava na mão esquerda, os óculos de visão noturna ajustados para noite com nevoeiro. Os dois drones, que circundavam no alto do quartel, permitiam a visão clara do que ocorria em volta do batalhão, os aparelhos transmitiam alternadamente as imagens das câmeras instaladas nos drones para os óculos do cabo em tempo real. O militar podia ajustar as câmeras dos drones, ele podia congelar as imagens, dar zoom e mudar para escaneamento térmico.

            Nos seus exatos quinze anos de corporação, ele jamais vira tal coisa, como vinha ocorrendo ultimamente, eram burburinhos aqui e ali, geralmente dito em voz baixa e em tom de confidência em intervalos e horas de folgas. Eram rumores de uma possível volta a um passado não muito distante. Eram tempos de insurgências, de uma guerra subterrânea entre o crime organizado contra as forças de segurança pública. Rumores da quebra da paz armada, negociada pelos dirigentes das forças de segurança, com o comando do crime organizado. Tudo feito nas sombras em tempos passados, mas não muito distante. Tudo mediado por políticos de profissão, tudo em nome do bem-estar da população em geral. Foi bem antes de Bruno Marques entrar na corporação, mas uma sombra se aproximava no horizonte e o militar sentia bem isso no meu âmago mais que profundo.                    

            Os óculos se auto ajustam para modo de neblina mais densa, um dos drones parou de enviar imagens e dados, depois o outro também parou. Cabo Bruno Marques olhou para o céu e viu uma estranha nuvem de pássaros em uma revoada passar por cima do batalhão e depois em direção das duas Torres Kitanda-Xoclengue a poucos quilômetros dali.

            Então começou de novo, eu não estou mesmo maluco ora essa! — O policial militar falou em voz alta, sem se importar com a câmeras ali instaladas, que gravavam tudo que ele falava.

            Ele bem sabia, que dali a pouco tudo, que fosse eletrônico ou elétrico iam parar de funcionar aos poucos. Ele ainda teve o ímpeto de ajustar os óculos e olhar para o portal de entrada de acesso ao quartel e viu dois cães que se aproximavam, mas de repente os óculos pararam de funcionar. A sentinela ainda tentou usar o rádio na mesa ao lado, mas o comunicador analógico não estava funcionando. Como manda o protocolo, ele tentou ligar o telefone móvel no cinturão, que também não estava funcionando. A sentinela tirou os óculos e olhou para fora, a neblina não parava de adensar. A luz do posto de observação se apagou e as luzes de emergência começaram a funcionar automaticamente. Marques lembrou do velho pai e suas histórias de pescador, o velho pescador industrial, filho e neto de pescadores artesanais, contava como de vez em quando, em alto mar surgia essas neblinas do nada, antes de um naufrágio. Marques nunca soube se era verdade ou não esses relatos do velho pai. Foi quando o outro militar apareceu do nada, um sargento, que estava usando uma calça cáqui, botas de soldado bem engraçadas, uma camisa preta e uma toca ninja, Marques ficou em posição de sentido. O cabo viu a patente de sargento no ombro esquerdo do militar, era um policial do serviço de inteligência. O que por si só explicava a falta de nome no uniforme, somente um número que era aleatório.

            — Descansar cabo! O velho quer bater um papo amigo contigo!

            — O velho senhor?

          — O tenente coronel Moreira César, ele que ter a honra de gastar um latim com a vossa senhoria cabo é simples assim. O homem está ansioso te esperando, na sala dele, entre sem bater disso o velho, nada de salamaleques funcionalistas da academia militar hoje meu estimado.

            Sem entender nada, sem saber o que fazer, um silêncio constrangedor se abateu na torre sul de observação. O sargento parado a poucos centímetros levantou a mão para o cabo lhe passar o fuzil, a sentinela passou a arma para o sargento.

            — A pistola também cabo, e faça o obséquio de me passar todas as armas que estiver carregando. É uma ordem cabo, por favor não faça o homem esperar muito, pois nunca vi o velho com tanto bom humor, como vi hoje.

            A sentinela sorriu nervoso, passou as armas para o superior imediato, e sentiu um enorme calafrio na espinha, pois tinha medo do desconhecido, tinha pavor de tudo que não compreendia, o cabo sabia que alguma coisa ruim estava acontecendo naquela hora: Nada de salamaleques? Nada funcionalismo da academia militar? Meu estimado? Era mais que desconhecido, era incompreensível ao extremo. Daí o cabo Bruno pensou que o serviço de inteligência devia operar assim mesmo, de maneira informal, pois eles não só coletam dados aleatórios e sim se trabalhavam infiltraram. O militar bateu continência para seu superior e deu as costas para o outro até ser impedido de continuar a andar, pois a mão do sargento segurou-lhe o ombro com muita força.  

            Eu disse todas as armas para o cabo, tira o colete, a Beretta, a faca e o canivete também. Passa agora para cá! Vamos!

            Passado o desconforto inicial, o cabo passou todo o seu equipamento de serviço para o sargento, por um breve momento, Marques pensou que iria ter que tirar toda a roupa ou ser revistado pelo superior hierárquico como se fosse um marginal qualquer de rua. Depois do constrangimento inicial, o sargento colocou todo o equipamento em cima da pequena mesa e tirou a máscara. O cabo reconheceu o instrutor de tiro do batalhão de imediato, era o melhor atirador de elite do quartel. Homem duro e cumpridor dos seus deveres, atento a todas as normativas militares e todos os protocolos civis. Marques muitas vezes ouviu o sargento dizer que gostava mais das armas do que das pessoas. Segundo o sargento, as pessoas não são confiáveis e em momentos de embates, o seu porto seguro era sempre elas, as armas em suas mãos. Assim pensava o sargento.

            — Cabo! Use as escadas, os elevadores não estão funcionando no momento.

              — Mais alguma recomendação oficial?

              — Sim é claro, tire este desconfiado sorriso besta de civil da cara homem e ande logo. Aqui a ordem unida é lei e o coronel não gosta de esperar.

            Ao descer pelas escadas da torre sul de observação, o cabo teve outra estranha sensação. O corredor que levava a escadaria em caracol parecia mais estreito e as próprias escadas pareciam não ter fim quando ele avançou e olhou para baixo. Ao enfrentar a dura caminhada o militar perdeu a noção de tempo de novo, parecia que as escadarias de fato não tinham fim, o militar pensou que estava ficando louco. Outro fato que chamou a atenção do militar foi que ele não tinha visto o coronel entrar no batalhão. Ele viu quando o homem saiu sozinho e a pé do prédio, como sempre fazia, na mesma hora, antes do cabo perder a noção de tempo. E Marques não viu o militar de alta patente voltar para o prédio. O batalhão, por motivos óbvios, tenha somente uma entrada, e outras três saídas alternativas, que só abriam por dentro. E caso elas fossem abertas, de qualquer forma, Marques e os outros sentinelas postadas nas outras torres de observação seriam informadas de imediato pelo sistema eletrônico que controla os sensores das portas e das janelas do prédio. E se o sistema falhasse os drones os informaram da abertura das portas alternativas e das janelas. E por fim pelas câmeras internas de vigilância, que eram ativadas pelo movimento, também o avisaram das aberturas. O fato era que o cabo Bruno Marques estava mais que curioso, para saber onde aqueles corredores sombrios e seculares o levariam, se é que o levariam a algum lugar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário