quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

CLARISSE CRISTAL E O AMANHECER DE UM NOVO DIA

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

 

Olho para trás

Preciso ver o que perdi

Tentar sentir novamente

O que já não existe mais

O que ficou para trás

***

Mas creio que não sobrou muita coisa

Do nosso sacrossanto amor

Minha divina Luna

Não sobrou muita coisa

 Para nós dois meu negro anjo

 

            Clarisse Cristal viu o clarear da luz de um novo dia despontar lentamente no horizonte infinito, o nascer do dia como jamais sentira na jovem vida. Ela olhou maravilhada para o oceano Atlântico, para o astro rei soberano, como só ele sabe ser, impondo a forte luz laranja em meio as nuvens cinzas e as águas verde mar. Sim, aquele era um novo dia de fato, o primeiro de muitos que sucederam dali para frente, foi uma promessa que ela fez para si naquele exato momento. Parada e de pé, na sacada do requintado apartamento de cobertura do emérito professor luso-africano Adérito Muteia.

         Ela estava extasiada e contemplando o esplendor do amanhecer de um novo dia no novo mundo. Ela completamente nua, o perfeito corpo escuro mais parecia uma escultura vivida de ébano, que se confundia e completava harmoniosamente com a decoração estilo neoclássica da casa do luso-africano. E em um olhar mais apurado mais parecia  que era peça que faltava para quebrar o rigor estético e simétrico neoclássica do lugar. Clarisse Cristal escutou o forte ronronar do dono da casa não muito distante dela.

          Ele que estava também nu e deitado na enorme e confortável cama de casal vitoriana ladeado com as imponentes cabeceiras douradas, dois abajures um ligado e outro apagado e capitonê! O ronronar que evolui para balbucios em um dialeto africano de forma brusca. Ela não gostou, nem um pouco, de vê-lo tão angustiado assim, era um pesadelo, ela intuiu o óbvio naquela hora onde os sentimentos bons e ruins se misturavam para o além do imaginável.

          Pois ele era um fruto proibido, que ela acabara de provar e as consequências não tardarão a chegar tão certo quanto o nascer do sol que ela contemplava naquele momento. E as evidências estavam espalhadas por todo o amplo apartamento ricamente decorado e em especial em uma pintura de um retrato de tamanho natural. Uma  reprodução mais que perfeita da fotografia que ela vira a poucas horas passadas na sacada do Café Ivory Tower. Clarisse reconheceu o trabalho, e não tinha como não reconhecer, era uma obra de um jovem artista negro que fora estudar belas artes na Alemanha há tempos atrás, era um conhecido discípulo de Adérito Mutea. O quadro, um produto do movimento do romantismo que detinha um ar mais aristocrático do que a fotografia, o precioso quadro estava postado no hall de entrada do apartamento. E era um poderoso recado, para quem por ali chegasse pela primeira vez, de quem mandava ali.

           A dona da casa era Agnela e aquele homem é só seu. A casa era dela e as marcas estavam em toda parte, das peças caras, raras e artesanalmente produzidas do mobiliário planejado que por fim se misturavam harmonicamente, com as pequenas peças de decoração baratas compradas nas lojinhas ali na esquina. Eram artigos da cultura afro-brasileira e indígena frutos da produção em massa, Clarisse calculou que era para quebrar o rigor neoclássico e aplacar o gosto do homem da casa. Nada de excessos, nada de exageros, nada em demasia, ali reinava a harmonia,  a perfeição, a simplicidade e o bom gosto estavam em toda parte para onde se olhava e por fim o equilíbrio entre o caro e o barato, o artesanal e o fabricado em massa. Clarisse viu a mão leve e talentosa de Agnela em tudo e uma leve supervisão de Adérito, também em pequenos detalhes, nas cores principalmente, vivas e fortes que remetiam à África, aos povos das florestas e nos livros à mostra.

            Clarisse respirou fundo esticou a braço esquerdo foi até a sua bolsa tiracolo bege para notebook, que estava posta em uma cômoda. Ela nem se importou em checar o celular e o tablete as inúmeras mensagens em vários aplicativos e chamadas perdidas, na verdade nem cogitou a possibilidade. Ela divagou um pouco sobre o clube virtual formado só de mulheres e para mulheres, o grupo sutiã vermelho e das longas trocas de mensagens proibidas para homens. Eram tolas reminiscências da outra vida, onde tudo era superficial, fluido e urgente, nada era nada e tudo era tudo. 

          A jovem mulher tirou da bolsa um notebook e foi ocupar uma cômoda não muito longe dali. Sim, ela ocuparia a mesa de trabalho do enigmático literato luso-africano Adérito Muteia por um breve momento. Era um sonho muito distante se  revelou uma perigosa realidade, com infinitas possibilidades e nenhuma delas era boa de fato fosse para quem fosse. 

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