Por Dias Campos (São Paulo, SP)
Não é incomum que uma criança tenha
um amigo imaginário. Paulinho tinha o seu, e chamava-se Ruy.
Seus pais, se não o repreendiam,
também não o estimulavam; até porque, tinham a certeza de que essa amizade acabaria
com o passar dos anos.
No entanto, um acontecimento fez
estremecer a normalidade que reinava no lar dos Pereira...
Certa noite, quando o casal assistia à TV e Paulinho pintava com lápis de
cera a obra de arte que rabiscara, Ruy apareceu e começou a conversar.
O casal entreolhou-se, sorriram, e André pediu que conversassem à baixa
voz para que não atrapalhassem o filme.
Mas quando o garoto virou-se e disse que Ruy tinha um pedido a fazer à
dona da casa, Bianca, com toda a paciência do mundo, abaixou o som do aparelho
e quis saber do que se tratava.
Paulinho, mesmo com as dificuldades impostas à pronúncia dos sete anos, passaria
a repetir o que o recém-chegado ditaria.
Só que, ao contrário do que pudessem imaginar – queria batatinhas fritas no
jantar –, Ruy pedia a Bianca, que era diretora de escola e quem decidia sobre o
texto impresso nos diplomas dos formandos, para que respeitasse o bom cunho português,
pois a linguagem neutra de gênero nada mais era do que a maior tolice que a ociosidade
humana poderia um dia produzir.
Não se precisaria dizer que as bocas entreabriram-se, que os olhos
arregalaram-se, e que nenhum dos pais conseguiria pôr a cabeça no travesseiro e
dormir o sono dos justos.
Passados alguns segundos de completa mudez, Bianca acabou aceitando o que
Ruy pedira; se bem que só convencesse o próprio filho.
Desta noite em diante, quando Ruy vinha ter com Paulinho, se algum de
seus pais estivesse próximo, parava o que fazia, apurava o melhor dos ouvidos,
e não desgrudava os olhos do guri, na esperança de compreender o que de fato
acontecia.
Mas o nível dessas conversas não mais os impressionava, já que não se
afastava do previsível e limitado mundo infantil.
E isso deixava André e Bianca cada vez mais incomodados. Afinal, como
explicar aquele pedido, cujo conteúdo seria impensável a qualquer criança,
mesmo que dotada de grande inteligência?
O incômodo chegou a tal ponto que o casal decidiu testar o menino e
perguntaram se poderiam falar com Ruy, caso ele estivesse presente.
A criança relanceou os olhos pela sala e viu seu amigo sentando na cadeira
de balanço que pertencera à nonna.
Mas antes que Paulinho repetisse a pergunta, Ruy respondia que estava à
disposição.
É claro que André e Bianca ficaram como que travados; não sabiam por onde
começar.
Percebendo a inibição, Ruy resolveu antecipar-se, porquanto o que falaria
era muito mais importante do que qualquer comprovação.
Disse que Bianca, com a concordância do marido, desprezou a oportunidade
que recebera, e que, por força disso, a beleza da língua portuguesa continuava
a ser maculada. Assim sendo, ele, Ruy, não perderia o seu tempo tentando
passar-lhes bons conselhos, pois, pelo que percebera, não cuidavam ser pessoas
em quem pudesse investir. Daí limitar-se a entreter, a preparar e a apostar no futuro
do seu mais novo e sincero amiguinho.
Também seria desnecessário esclarecer que, desta vez, os queixos caíram,
os olhos esbugalharam-se, e que o casal passaria uma longa noite em claro.
André ainda ensaiou um ou outro comentário, mas só conseguiu gaguejar;
Bianca permanecia calada, sem saber se piscava ou se corria; e Paulinho sorria,
como se Ruy estivesse brincando de fazer caretas.
De repente, o garoto pediu atenção aos pais, uma vez que seu amigo queria
dar-lhes uma última chance. Se soubessem aproveitá-la, muito que bem. Mas se a
desperdiçassem, mais cedo ou mais tarde acabariam sofrendo as consequências da
sua escolha. E perguntava se poderia seguir adiante.
Os Pereira entreolharam-se... interrogaram-se... voltaram-se para o
filho... e, meneando as cabeças, responderam que sim.
Sendo assim, Ruy pediu que anotassem
ou gravassem o que ele iria dizer, não só por ser o texto um pouco extenso,
mas, em particular, para que não entrasse por uns ouvidos e saísse por outros.
André e Bianca estavam perplexos! E por
mais que se orgulhassem da sua racionalidade, tarimba e ceticismo, não imaginavam
como um garotinho que ainda gostava de mamadeiras pudesse embrenhar-se em assuntos
absolutamente estranhos ao seu universo, nem como conseguia expressar-se por
meio de palavras e frases que só seriam aprendidas daqui a vários anos.
Mesmo sem os necessários esclarecimentos, era indubitável que não
poderiam atribuir Ruy a uma imaginação fértil ou superexcitada. Havia, sim, uma
grande inteligência que se expressava por meio do guri. E se se diziam amigos,
longe estava de ser imaginário.
E como não enxergasse nenhuma
alternativa, André pegou o celular e ligou o gravador.
Ruy disse que repetiria um excerto de um célebre discurso que proferira
no Senado Federal, em 1914. Pedia para que ponderassem sobre os “considerandos”
e sobre as suas consequências. E que, depois de muito refletirem, fizessem a
escolha certa.
André e Bianca mal sabiam o que
dizer, o que pensar! Seu filhinho estava de pé diante deles, e repassava
mensagens de um homem feito e culto. E como se não bastasse, discursaria como
um orador do século retrasado! Era demais até mesmo para pessoas que sempre se gabaram
do seu agnosticismo e que, por isso mesmo, nunca se deixaram embromar pela mais
sutil das artimanhas.
E porque o silêncio dava licença, Ruy
prosseguiu: “De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a
desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os
poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da
honra e a ter vergonha de ser honesto.”
Atônitos talvez fossem os adjetivos
que melhor caracterizariam os semblantes de André e Bianca.
Como permaneciam mudos, Ruy interveio e insistiu para que refletissem
sobre o que acabavam de ouvir. E que se esforçassem para não mais compactuarem
com o erro, seja contribuindo com tolices, seja fechando os olhos para os
abusos, seja, enfim, aplaudindo o erro em detrimento do que é correto. E
despedia-se de todos.
O menino retribuiu acenando com a mão direita. Logo depois, trançava as
pernas e pedia para ir ao banheiro.
Mesmo sendo mãe, Bianca demorou bons segundos para reaprumar-se e atender
o aperto do filho.
Quando voltaram, ela perguntou ao
marido para quem escrevia.
André respondeu que o trecho que ouviram
não lhe era estranho; que volta e meia lia essa mensagem no Facebook ou a
recebia em grupos de WhatsApp. Por isso, pesquisava no Google.
Com efeito, o resultado não tardou a
aparecer, e vinha ilustrado com a fotografia do seu autor. Tratava-se de
ninguém menos que Ruy Barbosa, o Águia de Haia!
Boquiaberto, André mostrou a tela
para a esposa, que o acompanhou em espanto.
Ato contínuo, Bianca mostrou a imagem
para o filho, perguntando se era esse o senhor com quem conversava.
É claro que a criança não teve
nenhuma dificuldade em reconhecê-lo. Apenas que estava... diferente.
Apreendendo a dúvida do garoto,
André esclareceu que a foto era muito antiga e que não tinha sido colorizada.
O final do sábado seria dividido
entre os cuidados dispensados ao guri e os hiatos dedicados à autorreflexão. Na
verdade, não viam a hora que Paulinho fosse para cama a fim de que pudessem
conversar, questionarem-se, e acharem uma explicação que os satisfizesse; além
de um norte por onde pudessem caminhar.
Era todo um mundo que desabava, um
castelo de cartas que não se aguentara ao sopro de realidades até então
ridicularizadas e desprezadas.
E essa constatação incomodava demais os seus espíritos...
Fosse como fosse, o que André e
Bianca não suspeitavam é que Ruy não tinha partido. Na verdade, tornara-se
invisível para o menino a fim de melhor observar os pais, auscultando-lhes os
pensamentos, lendo em seus corações.
Pois foi colocarem a criança para
dormir, e eles retornaram à sala, sentaram-se no sofá, encararam-se, e puseram-se
a conversar.
Reviram cenas... levantaram
hipóteses... examinaram convicções... afastaram conclusões apressadas. E meditaram
à exaustão sobre o fragmento escrito pelo emérito jurista.
Verificaram a atualidade das causas e que os efeitos eram corolários inexoráveis.
E deduziram que se o sofrimento acontecido no passado não foi suficiente para
impedir um presente mal talhado, por certo que o futuro seria ainda pior, caso
os governados continuassem desculpando a bandalheira, aceitando a corrupção, e menosprezando
a impunidade.
E porque não se pode mudar um povo de uma hora para outra, compreenderam
que deveriam começar por si mesmos, esforçando-se dia a dia por melhorarem, na
certeza de que, se não estavam sós, seriam os seus exemplos que tocariam,
atrairiam e modificariam a multidão na retaguarda.
Neste meio tempo, o garoto aparecia.
Sua mãe foi a primeira a estender os
braços.
Mas tão logo se sentou entre ambos,
Paulinho avisava que Ruy quereria falar.
As sobrancelhas de André
alevantaram-se; a testa de Bianca frisou-se; e Ruy pediu para o guri continuar sentado.
Disse que ouvira tudo o que eles
conversaram. E que leu em seus corações uma vontade honesta de contribuírem
para o bem geral. Advertiu-os de que se mantivessem firmes, pois não seria
fácil lutar contra hábitos arraigados há séculos. Mas que, se perseverassem,
não apenas eles seriam mais felizes, como, também, as futuras gerações só
teriam a agradecer. – os olhos dos pais já se umedeciam.
Como o tempo urgia, desejava a todos
muita paz e serenidade. Afirmava que jamais os abandonaria, e esclarecia que o
crescimento do menino não seria empecilho a que continuassem interagindo.
Por fim, estimulava-os a irem conhecer o Houston Livestock Show and
Rodeo, um dos mais tradicionais rodeios do mundo.
André surpreendeu-se com a falta de privacidade em sua casa. Bianca já
não se admirava de mais nada; e perguntou se ele os acompanharia.
Ruy respondeu que não. No entanto, avisava que um veterinário conhecido
internacionalmente iria acompanhá-los, pois a ocasião seria propícia para
auxiliar os seus colegas de profissão. Além do que, graças ao dom de que fora
investido e, sobretudo, à ajuda de Paulinho, ele poderia dialogar com um grande
número de animais.
Os pais não entenderam patavina. Esse tal veterinário, de quem se
tratava? E como a criança poderia ajudá-lo a conversar com os animais?!
Mas se é verdade que André e Bianca ficaram bastante apreensivos ao
imaginarem o próprio filho batendo-papo com touros e cavalos, também é correto
afirmar que o Dr. Dolittle enxergaria em Paulinho um aprendiz mais que
promissor.
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