segunda-feira, 1 de maio de 2023

E OUVIRAM O PUNGENTE CROCITAR

 Por Dias Campos (São Paulo, SP)

 

            Não é incomum que uma criança tenha um amigo imaginário. Paulinho tinha o seu, e chamava-se Ruy.

            Seus pais, se não o repreendiam, também não o estimulavam; até porque, tinham a certeza de que essa amizade acabaria com o passar dos anos.

            No entanto, um acontecimento fez estremecer a normalidade que reinava no lar dos Pereira...

Certa noite, quando o casal assistia à TV e Paulinho pintava com lápis de cera a obra de arte que rabiscara, Ruy apareceu e começou a conversar.

O casal entreolhou-se, sorriram, e André pediu que conversassem à baixa voz para que não atrapalhassem o filme.

Mas quando o garoto virou-se e disse que Ruy tinha um pedido a fazer à dona da casa, Bianca, com toda a paciência do mundo, abaixou o som do aparelho e quis saber do que se tratava.

Paulinho, mesmo com as dificuldades impostas à pronúncia dos sete anos, passaria a repetir o que o recém-chegado ditaria.

Só que, ao contrário do que pudessem imaginar – queria batatinhas fritas no jantar –, Ruy pedia a Bianca, que era diretora de escola e quem decidia sobre o texto impresso nos diplomas dos formandos, para que respeitasse o bom cunho português, pois a linguagem neutra de gênero nada mais era do que a maior tolice que a ociosidade humana poderia um dia produzir.

Não se precisaria dizer que as bocas entreabriram-se, que os olhos arregalaram-se, e que nenhum dos pais conseguiria pôr a cabeça no travesseiro e dormir o sono dos justos.

Passados alguns segundos de completa mudez, Bianca acabou aceitando o que Ruy pedira; se bem que só convencesse o próprio filho.

Desta noite em diante, quando Ruy vinha ter com Paulinho, se algum de seus pais estivesse próximo, parava o que fazia, apurava o melhor dos ouvidos, e não desgrudava os olhos do guri, na esperança de compreender o que de fato acontecia.

Mas o nível dessas conversas não mais os impressionava, já que não se afastava do previsível e limitado mundo infantil.

E isso deixava André e Bianca cada vez mais incomodados. Afinal, como explicar aquele pedido, cujo conteúdo seria impensável a qualquer criança, mesmo que dotada de grande inteligência?

O incômodo chegou a tal ponto que o casal decidiu testar o menino e perguntaram se poderiam falar com Ruy, caso ele estivesse presente.

A criança relanceou os olhos pela sala e viu seu amigo sentando na cadeira de balanço que pertencera à nonna.

Mas antes que Paulinho repetisse a pergunta, Ruy respondia que estava à disposição.

É claro que André e Bianca ficaram como que travados; não sabiam por onde começar.

Percebendo a inibição, Ruy resolveu antecipar-se, porquanto o que falaria era muito mais importante do que qualquer comprovação.

Disse que Bianca, com a concordância do marido, desprezou a oportunidade que recebera, e que, por força disso, a beleza da língua portuguesa continuava a ser maculada. Assim sendo, ele, Ruy, não perderia o seu tempo tentando passar-lhes bons conselhos, pois, pelo que percebera, não cuidavam ser pessoas em quem pudesse investir. Daí limitar-se a entreter, a preparar e a apostar no futuro do seu mais novo e sincero amiguinho.

Também seria desnecessário esclarecer que, desta vez, os queixos caíram, os olhos esbugalharam-se, e que o casal passaria uma longa noite em claro.

André ainda ensaiou um ou outro comentário, mas só conseguiu gaguejar; Bianca permanecia calada, sem saber se piscava ou se corria; e Paulinho sorria, como se Ruy estivesse brincando de fazer caretas.

De repente, o garoto pediu atenção aos pais, uma vez que seu amigo queria dar-lhes uma última chance. Se soubessem aproveitá-la, muito que bem. Mas se a desperdiçassem, mais cedo ou mais tarde acabariam sofrendo as consequências da sua escolha. E perguntava se poderia seguir adiante.

Os Pereira entreolharam-se... interrogaram-se... voltaram-se para o filho... e, meneando as cabeças, responderam que sim.

            Sendo assim, Ruy pediu que anotassem ou gravassem o que ele iria dizer, não só por ser o texto um pouco extenso, mas, em particular, para que não entrasse por uns ouvidos e saísse por outros.

            André e Bianca estavam perplexos! E por mais que se orgulhassem da sua racionalidade, tarimba e ceticismo, não imaginavam como um garotinho que ainda gostava de mamadeiras pudesse embrenhar-se em assuntos absolutamente estranhos ao seu universo, nem como conseguia expressar-se por meio de palavras e frases que só seriam aprendidas daqui a vários anos.

Mesmo sem os necessários esclarecimentos, era indubitável que não poderiam atribuir Ruy a uma imaginação fértil ou superexcitada. Havia, sim, uma grande inteligência que se expressava por meio do guri. E se se diziam amigos, longe estava de ser imaginário.

            E como não enxergasse nenhuma alternativa, André pegou o celular e ligou o gravador.

Ruy disse que repetiria um excerto de um célebre discurso que proferira no Senado Federal, em 1914. Pedia para que ponderassem sobre os “considerandos” e sobre as suas consequências. E que, depois de muito refletirem, fizessem a escolha certa.

            André e Bianca mal sabiam o que dizer, o que pensar! Seu filhinho estava de pé diante deles, e repassava mensagens de um homem feito e culto. E como se não bastasse, discursaria como um orador do século retrasado! Era demais até mesmo para pessoas que sempre se gabaram do seu agnosticismo e que, por isso mesmo, nunca se deixaram embromar pela mais sutil das artimanhas.

            E porque o silêncio dava licença, Ruy prosseguiu: “De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto.” 

            Atônitos talvez fossem os adjetivos que melhor caracterizariam os semblantes de André e Bianca.

Como permaneciam mudos, Ruy interveio e insistiu para que refletissem sobre o que acabavam de ouvir. E que se esforçassem para não mais compactuarem com o erro, seja contribuindo com tolices, seja fechando os olhos para os abusos, seja, enfim, aplaudindo o erro em detrimento do que é correto. E despedia-se de todos.

O menino retribuiu acenando com a mão direita. Logo depois, trançava as pernas e pedia para ir ao banheiro.

Mesmo sendo mãe, Bianca demorou bons segundos para reaprumar-se e atender o aperto do filho.

            Quando voltaram, ela perguntou ao marido para quem escrevia.

            André respondeu que o trecho que ouviram não lhe era estranho; que volta e meia lia essa mensagem no Facebook ou a recebia em grupos de WhatsApp. Por isso, pesquisava no Google.

            Com efeito, o resultado não tardou a aparecer, e vinha ilustrado com a fotografia do seu autor. Tratava-se de ninguém menos que Ruy Barbosa, o Águia de Haia!

            Boquiaberto, André mostrou a tela para a esposa, que o acompanhou em espanto.

            Ato contínuo, Bianca mostrou a imagem para o filho, perguntando se era esse o senhor com quem conversava.

            É claro que a criança não teve nenhuma dificuldade em reconhecê-lo. Apenas que estava... diferente.

            Apreendendo a dúvida do garoto, André esclareceu que a foto era muito antiga e que não tinha sido colorizada.

            O final do sábado seria dividido entre os cuidados dispensados ao guri e os hiatos dedicados à autorreflexão. Na verdade, não viam a hora que Paulinho fosse para cama a fim de que pudessem conversar, questionarem-se, e acharem uma explicação que os satisfizesse; além de um norte por onde pudessem caminhar.

            Era todo um mundo que desabava, um castelo de cartas que não se aguentara ao sopro de realidades até então ridicularizadas e desprezadas.

E essa constatação incomodava demais os seus espíritos...

            Fosse como fosse, o que André e Bianca não suspeitavam é que Ruy não tinha partido. Na verdade, tornara-se invisível para o menino a fim de melhor observar os pais, auscultando-lhes os pensamentos, lendo em seus corações.

            Pois foi colocarem a criança para dormir, e eles retornaram à sala, sentaram-se no sofá, encararam-se, e puseram-se a conversar.

            Reviram cenas... levantaram hipóteses... examinaram convicções... afastaram conclusões apressadas. E meditaram à exaustão sobre o fragmento escrito pelo emérito jurista.

Verificaram a atualidade das causas e que os efeitos eram corolários inexoráveis. E deduziram que se o sofrimento acontecido no passado não foi suficiente para impedir um presente mal talhado, por certo que o futuro seria ainda pior, caso os governados continuassem desculpando a bandalheira, aceitando a corrupção, e menosprezando a impunidade.

E porque não se pode mudar um povo de uma hora para outra, compreenderam que deveriam começar por si mesmos, esforçando-se dia a dia por melhorarem, na certeza de que, se não estavam sós, seriam os seus exemplos que tocariam, atrairiam e modificariam a multidão na retaguarda.

            Neste meio tempo, o garoto aparecia.

            Sua mãe foi a primeira a estender os braços.

            Mas tão logo se sentou entre ambos, Paulinho avisava que Ruy quereria falar.

            As sobrancelhas de André alevantaram-se; a testa de Bianca frisou-se; e Ruy pediu para o guri continuar sentado.

            Disse que ouvira tudo o que eles conversaram. E que leu em seus corações uma vontade honesta de contribuírem para o bem geral. Advertiu-os de que se mantivessem firmes, pois não seria fácil lutar contra hábitos arraigados há séculos. Mas que, se perseverassem, não apenas eles seriam mais felizes, como, também, as futuras gerações só teriam a agradecer. – os olhos dos pais já se umedeciam.

            Como o tempo urgia, desejava a todos muita paz e serenidade. Afirmava que jamais os abandonaria, e esclarecia que o crescimento do menino não seria empecilho a que continuassem interagindo.

Por fim, estimulava-os a irem conhecer o Houston Livestock Show and Rodeo, um dos mais tradicionais rodeios do mundo.

André surpreendeu-se com a falta de privacidade em sua casa. Bianca já não se admirava de mais nada; e perguntou se ele os acompanharia.

Ruy respondeu que não. No entanto, avisava que um veterinário conhecido internacionalmente iria acompanhá-los, pois a ocasião seria propícia para auxiliar os seus colegas de profissão. Além do que, graças ao dom de que fora investido e, sobretudo, à ajuda de Paulinho, ele poderia dialogar com um grande número de animais.

Os pais não entenderam patavina. Esse tal veterinário, de quem se tratava? E como a criança poderia ajudá-lo a conversar com os animais?!

Mas se é verdade que André e Bianca ficaram bastante apreensivos ao imaginarem o próprio filho batendo-papo com touros e cavalos, também é correto afirmar que o Dr. Dolittle enxergaria em Paulinho um aprendiz mais que promissor.

 

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