Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)
Uma das mais formosas
borboletas nascem nos galhos do limoeiro,
Em seu ciclo
de mutação ninguém suporta seu cheiro.
Os mais belos
pássaros que encontramos no sertão,
Ninguém pega nas mãos!
Os
felinos gigantes estão junto aos elefantes!
Longe,
muito longe,
Onde encontramos os reis negros dos
horizontes
Estas são
algumas belezas da natureza,
que o homem branco com seu orgulho destrói
sem realeza!
Sem
saber das suas riquezas.
João Carlos Pereira
Para
Renan Fillipi da Costa e Andrea Samara de Oliveira
Ele caminhava com o sol abrasador, demolindo em definitivo, o mito do sul gelado e chuvoso. Missael estava bem alinhado e impecável, de terno e calça social de cor preta, gravata vermelha, sapatos pretos bem engraxados, usava um perfume unissex caro e discreto. Usava óculos solar de grife e um broche pequeno, da ordem dos advogados, na lapela esquerda, banhado em ouro e no pulso um relógio importado, também banhado a ouro. Segurava uma maleta zero, zero, sete no braço esquerdo. Missael, se perguntava diversas vezes, para si mesmo, como teria ido parado ali, naquele fim de mundo. De repente, a lembrança da frase proferida por um de seus professores, surge com toda força: ‘’Início de carreira é assim mesmo, a gente encara cada coisa’’. Ouvira diversas versões da mesma frase, assim que entrou na faculdade e quando se formou também. Parou, diante da delegacia, tomou fôlego e, por fim, recomeçou a marchar. Enfim o primeiro caso, como advogado constituído e juramentado, enfim o primeiro voo solo, da carreira e rumo ao sucesso.
***
O
prédio estava em ruínas, com vidros quebrados, pintura descascando e uma
folhagem rasteira, seca e morta em volta do prédio. O pior para o jovem
advogado, foi olhar para cima e constatar que os mastros, da frente do prédio,
estavam enferrujados e sem bandeiras nas hastes. Missael então avistou, um
policial militar, fazendo a sentinela do lugar. A sentinela estava, na frente
da delegacia, no que parecia ser uma varanda. Estava sentado complacentemente,
em uma cadeira de balanço de vime, uma arte Xocleng. Missael a reconheceu assim
que pôs os olhos nela. O policial militar estava, ladeado por uma antiga
carabina enferrujada e desmuniciada. O jovem advogado, tirou o óculo escuro da
face, antes de encarar o policial militar de frente. Missael queria olhar bem
nos olhos do policial militar, antes de falar qualquer coisa. O policial
militar, de cabelo louro, olhos verdes, pele clara queimada pelo sol, baixo e
gordo, vestia um uniforme em desalinho. O policial militar, mais parecia um
personagem, saído de um filme antigo, um filme mudo, uma comédia de Carlito,
pensou Missael. O policial militar, ao notar a presença do jovem advogado, levantou-se
em um rompante. Missael pensou, que o policial militar iria bater os cascos,
quando se aproximou do mesmo.
—
Doutor Da Maia! ’’Me avisaram’’ que o senhor vinha, o prisioneiro lhe aguarda ‘’preso’’
na cela. — O policial militar falava alto e com tamanha intimidade, como se
conhecesse Missael Da Maia há anos.
— O
delegado de plantão por favor? Queria falar com o ele em primeiro lugar, tenho
o Habeas Corpus em mãos, quero ver o meu cliente fora dessa delegacia agora
mesmo, policial. — O jovem advogado falava, com todo vigor e rigor possível,
mas, não sabia se estava agindo corretamente, gastando aquele palavrório, com
uma simples sentinela. Mas, o seu instinto estava lhe dizendo para agir dessa
maneira. Uma coisa que o seu velho pai, Aristo, e seu avô viviam repetindo para
Missael, para seguir os seus instintos. Fato que fazia parte da natureza de
ambos, pois, foi assim que eles viveram e sobreviveram, por longos anos, em
ambientes hostis.
— O
delegado de plantão não está, na verdade passou mal e foi ‘’pro’’ hospital hoje
no início da manhã! Mas, estou instruído para soltar o preso, assim que o
doutor chegasse, como o alvará de soltura. — Missael fez um esforço para
não rir diante do policial militar, estava sendo mais fácil do que pensava que
seria. O próximo passo, era seguir com a coisa toda, e Missael lhe entregou o
Habeas Corpus para o policial militar. Ele leu o documento, Missael teve a
ligeira impressão, que o policial não sabia ler. Missael entregou a maleta,
para o policial militar fazer a revista rotineira, antes de entrar na
delegacia, após o policial conferir o Habeas Corpus. O mesmo se assustou como o
ato do advogado.
—
Não precisa doutor Da Maia, pode entrar!
Missael recolocou o óculo de
novo no rosto de forma teatral. Ao adentrar no prédio, ladeado pelo militar,
Missael levou um susto, o mesmo era pior por dentro, do que por fora. A comédia
pastelão, agora tomava ares de filme de terror, um filme gótico à moda europeia
dos anos vinte. Pintura descascando, lixeiras atulhadas e pedindo para serem
esvaziados, móveis de escritório velhos e enferrujados, material de limpeza
espalhados pelo chão, umidade e mofo em toda parte, banheiro sem portas e
torneiras pingando podiam ser ouvidas de longe. Uma onda gélida, pairava no ar,
contrariando o calor elevado de fora do prédio. Não havia quadros ou murais de
avisos nas paredes, ou, qualquer outra coisa, que denunciasse que ali seria uma
repartição pública. Missael não viu mais ninguém, na delegacia, o lugar parecia
um deserto árido e sem vida. Missael pensou em perguntar: — O que poderia ter feito de errado, o policial militar, para parar em
um lugar tão decadente? Mas, ficou calado, não sabia como aquela figura
folclórica e caricata, poderia reagir a uma pergunta desse tipo: —Deus do
céu! Esse maldito corredor parece não ter fim — disse Missael para
si mesmo.
—
Sabe de uma coisa doutor, gostei do senhor. Eu gostaria de dizer uma coisinha
‘’pro’’ doutor, se o senhor assim me ‘’permita’’ tal intimidade e atrevimento
da minha parte! — Nesse momento, Missael queria que o policial militar ficasse
calado, mas, achou melhor ficar com os ouvidos e olhos bem abertos, tinha que
ouvir o militar. Tinha que
ouvir e digerir, o que aquela figura cômica tinha para dizer, seu alarme estava
disparado, Missael estava em alerta total, desde que aceitou aquele caso. A frase muitas vezes proferida pelo seu pai, lhe invadiu a
cabeça, naquela hora extrema: ‘’— Meu filho, antes de tudo, procure
entender as pessoas, e só assim meu filho, vás encontrar o teu lugar nesse
mundo. Senão compreenderes as outras pessoas, não compreenderas a si mesmo, meu
filho!’’ — Como Missael gostaria, de se livrar daquela figura lendária, de
uma vez por todas, como aquela figura mitológica o angustiava. Missael ficaria
contente, em ter um pai de carne e osso, não um mito como progenitor. Uma
figura, que o esmagava e o anulava por completo, todos os dias de sua vida.
Missael gostaria, de dizer algumas verdades para o pai, mas, não poderia e
também não tinha coragem para tanto, o pai e sua história de vida o esmagava
por completo.
—
Pelo que posso ver, o senhor é japonês, estou certo? Estou? — Disse isso
enquanto segurava o braço do advogado com força, forçando-o a parar de andar.
Missael Da Maia preferiu o silêncio, como resposta, para aquela pergunta tão
constrangedora e despropositada. Missal pensou nas histórias, que seu avô
materno contava, quando Missael ainda era uma criança e vivia no norte. Há
séculos, os Macuxis invadiram as áreas de pesca e caça dos Wapichanas. Os Macuxis vieram do norte, vieram do litoral caribenho, foram
expulsos pelos espanhoes recem chegados ao Novo mundo. Os Macuxis vieram, e
disputaram, de forma violenta, espaços de caça e pesca, com a tribo dos
Wapichanas, a tribo de Missael. Foram séculos, de disputas sangrentas entre as
duas etnias, até a paz reinar, entre as duas tribos rivais. Mesmo assim,
ressentimentos de vez em quando vinham à tona, afloravam de tempos em tempos
para lembrar, quem é quem, para marcar as diferenças entre as duas tribos.
Agora vinha este homenzinho ridículo, metido em um uniforme roto, com uma
conversa racista.
— Sabe doutor Da Maia, vim
parar aqui no meio dessa indiarada vagabunda e ordinária, porque briguei com um
Coronel que queriam, ‘’porque queriam’’, que eu obedecesse. Um negro, sabe
doutor, se meu pai ‘’tevesse’’ vivo, para ver um troço assim, um negro mandando
e desmandando, pra cima de mim. Acho que ele morria na hora, doutor. Daí sabe
doutor, me mandaram pra cá, pra esse inferno de lugar, quente igual ‘’aos
infernos’’. — Missael percebeu nos olhos do militar, o desespero típico dos
fracos. Ele queria que o jovem e influente advogado, o ajudasse a sair dali, e
voltar a conviver com as pessoas ditas ‘’civilizadas’’, pensou o jovem
advogado.
— O que posso fazer pelo senhor... — Missael olhou de relance e leu, no
uniforme do militar o nome ‘’do infeliz’’— Cabo Van Peter! O que posso faz pelo
senhor, Cabo Van Peter, a final de contas?
— Sei que o senhor é uma pessoa distinta, só quero sair deste lugar ‘’dos
infernos’’, e ver a luz do dia ‘’di’’ novo. Só isso doutor Da Maia.
— Missael tira os óculos de grife do rosto, encarou a sentinela bem nos
olhos, não sabia onde estava se metendo, mas, de uma coisa ele sabia bem, que
os corredores escuros, como aquele, exigem olhos bem atentos, mente aberta e um
senso de oportunidade, que não é para qualquer um. Teria que agir assim, se
pretendia sobreviver e vencer nesses tipos de ambiente. Tinha que proceder como
se estivesse em uma guerra, como se sua vida estivesse em jogo em cada lance
que dava.
—
Quando me encontrar com o Coronel Alencastro
novamente, vou falar do seu caso. O Coronel é uma pessoa razoável e pode rever
o caso do senhor. Ele é uma boa pessoa, muito amigo do meu pai, são amigos
pessoais. Foi com ele, que o senhor se desentendeu? Não foi Cabo Van Peter?
O jovem advogado pensou nas conversas, entre Alencastro
e Aristo, na varanda da casa da praia. Eram longas conversas, geralmente
regadas a vinho ou cerveja, dependendo muito da estação do ano. Às vezes
chimarrão, bebida que o pai de Missael só apreciava na companhia do Coronel. O
velho soldado vivia dizendo, para todo mundo e para quem quisesse escutar, que
Alencastro era muito parecido, fisicamente e no jeito de ser, com seu antigo
comandante de campo, quando servia na guerrilha angolana, tempos atrás. Muitas
vezes, Missael viu o pai se comportar, como se fosse um soldado, na presença do
Coronel Alencastro: — Para alguma coisa, aquela estranha, amizade
poderia ser útil afinal de contas, pensou Missael.
—
Obrigado doutor Da Maia, muito obrigado doutor! — O Cabo a princípio ficou impressionado
com as palavras do advogado, achava estranha a amizade do pai de Missael com um
negro, mesmo que fosse um Coronel. Van Peter esqueceu
de quem era e de onde estava, e beijou ambas as mãos de Missael com veemência.
O advogado pensava, estar em uma cena de um filme B, uma comédia ou teatro bufo
de quinta categoria, era patética a atitude do policial militar, na visão de
Missael.
—
Cabo Van Peter, onde fica a cela do meu cliente afinal de contas? — Disse
Missael, ao retirar as mãos do Cabo de forma brusca, se livrando do assédio
constrangedor. O jovem advogado teve, a estranha, percepção que os corredores
tinham diminuídos em comprimento e largura. O lugar literalmente parecia ter
encolhido, pelo menos aos olhos de Missael.
—
Fica bem ali! — apontou a sentinela para uma cela a poucos metros de onde
estavam. Missael estranhou à luz, que emanava do lugar apontado pelo Cabo Van
Peter. A sentinela fica parada, enquanto o advogado caminhava para a cela,
Missael só notou a falta de Van Peter quando chegou à frente da cela.
—
Cabo Van Peter! Abra a cela, por favor! — Era evidente a irritação na voz de
Missael, com o Cabo que permaneceu estático, Missael notou o olhar petrificado
do Cabo. Os olhos estavam perdidos, em algum lugar que Missael não identificou
bem onde. O advogado ficou em dúvida sobre o olhar do Cabo, se era de medo,
horror ou de estupefato.
— A
cela está aberta doutor Da Maia, se o senhor quiser conversa com o ‘’meliante’’
a sós, o senhor pode usar a sala do doutor delegado. Ele autorizou, caso o
senhor quisesse falar com o meliante em outro lugar. — As palavras saiam da
boca do Cabo sem vida, mecanizadas, o Cabo parecia um zumbi. Missael, não
gostou da tom de voz do militar, ele mais parecia de uma criança assustada. O
que mais irritava, o jovem advogado, era essa coisa tudo, uma irregularidade
atrás da outra. Na verdade, ele, só queria tirar o seu cliente dali rápido e
voltar ao litoral o quanto antes. Não viera para aquele lugar, para fiscalizar
qualquer irregularidade que fosse. Bastou uma olhada, para dentro da cela e uma
sensação estranha, tomou Missael de assalto. Ver aquele índio deitado na cama,
de costa olhando para a parede, Missael teve a impressão de já ter vista essa
cena antes. Um passado muito distante, gritos de desespero e dor vieram juntos
como uma torrente, na mente do advogado. Missael abriu a cela, sem dificuldade,
mas, percebeu que as barras estavam enferrujadas: - Como podem deixar as coisas chegarem a esse ponto! Missael,
também, se perguntou como ele, ainda não fugiu de um lugar como aquele. O que
prendia ali, o advogado sabia que é simples para um índio, como aquele, sumir
no mundo, como se jamais existisse. De repente. Missael sente uma estranha
presença, ele desejava estar armado naquela hora. Da Maia queria uma arma para
poder se defender, de uma coisa que ele não sábia o que era, nem onde estava.
Não queria estar vulnerável, alguma coisa estranha pairava no ar, para Da Maia
era angustiante estar ali.
—
José Maria...
—
Mokanã! É este, o meu nome, primo! — O Xocleng, nem se deu ao trabalho de olhar
para Missael, enquanto proferiu essas palavras. Pois ainda estava deitado e de
cara para a parede.
—
Primo? Não sou seu parente! — Missael então percebeu, o que se passava ali —
Sou do norte, nasci longe daqui, mas, quem te contou quem sou, Mokanã? — A voz
de Missael sai embargada.
—
E isso importa?
—
No pé que está à coisa, isso não importa mesmo! Consegui a sua liberdade
provisória, mas, creio que você vai passar um tempo curto no presídio agrícola,
por uns meses apenas. ‘’Me diz’’ uma coisa primo, por que atirasse naquele
homem desarmado afinal de contas? — Mokanã, virasse para encarar Missael de
frente, o olhar do Xocleng, deixou-o sem palavras. Jamais vira um olhar daquele
em toda sua vida. Um olhar selvagem e cheio de ira.
— Aquele chucrute maldito, veio com uns vinte homens, tomaram o nosso gado. Fui
buscar de volta, eles devolveram, mas, quando todo o gado já estava de volta na
nossa aldeia, aquele palmito dos infernos, quis bancar o engraçadinho, e sacou
o revólver da cintura. O que eu ‘’podia’’ fazer, com uma arma apontada pra mim?
Desarmado? Essa é boa! Acho que ele deve ser o pior atirador do mundo, por isso
não estou morto, se o teuto não está morto, é porque não quis que
morresse!
—
Não tem nada disso nos autos do processo, nem no inquérito, que eu li e reli
várias vezes! — Missael não disse nada sobre o fato do homem, que era de
descendência italiana e não teuta. Mas, para aquele índio, era a mesma coisa
pensou Missael. Branco é sempre um branco, e se comportam da mesma maneira,
desde há séculos, agem como se a terra fosse deles por direito, sem ter na
consciência de quem por aqui já vivia. Era assim que o jovem advogado pensava.
—
Quando saio daqui? — Esbravejou o índio com fúria.
—
Agora mesmo, mas, que cheiro forte é esse. É florada de mangueira?
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