segunda-feira, 1 de maio de 2023

MANDI: NO CÁRCERE (SEGUNDA PARTE)

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

 

                        Uma das mais formosas borboletas nascem nos galhos do limoeiro,                     

                                 Em seu ciclo de mutação ninguém suporta seu cheiro.

                                  Os mais belos pássaros que encontramos no sertão,

                                                       Ninguém pega nas mãos!

                                      Os felinos gigantes estão junto aos elefantes!                                                      

                                                             Longe, muito longe,                                                                                               

              Onde encontramos os reis negros dos horizontes                                                       Estas são algumas belezas da natureza, 

que o homem branco com seu orgulho destrói sem realeza!

 Sem saber das suas riquezas.

João Carlos Pereira

Para Renan Fillipi da Costa e Andrea Samara de Oliveira  

Ele caminhava com o sol abrasador, demolindo em definitivo, o mito do sul gelado e chuvoso. Missael estava bem alinhado e impecável, de terno e calça social de cor preta, gravata vermelha, sapatos pretos bem engraxados, usava um perfume unissex caro e discreto. Usava óculos solar de grife e um broche pequeno, da ordem dos advogados, na lapela esquerda, banhado em ouro e no pulso um relógio importado, também banhado a ouro. Segurava uma maleta zero, zero, sete no braço esquerdo. Missael, se perguntava diversas vezes, para si mesmo, como teria ido parado ali, naquele fim de mundo. De repente, a lembrança da frase proferida por um de seus professores, surge com toda força: ‘’Início de carreira é assim mesmo, a gente encara cada coisa’’. Ouvira diversas versões da mesma frase, assim que entrou na faculdade e quando se formou também. Parou, diante da delegacia, tomou fôlego e, por fim, recomeçou a marchar. Enfim o primeiro caso, como advogado constituído e juramentado, enfim o primeiro voo solo, da carreira e rumo ao sucesso. 

*** 

O prédio estava em ruínas, com vidros quebrados, pintura descascando e uma folhagem rasteira, seca e morta em volta do prédio. O pior para o jovem advogado, foi olhar para cima e constatar que os mastros, da frente do prédio, estavam enferrujados e sem bandeiras nas hastes. Missael então avistou, um policial militar, fazendo a sentinela do lugar. A sentinela estava, na frente da delegacia, no que parecia ser uma varanda. Estava sentado complacentemente, em uma cadeira de balanço de vime, uma arte Xocleng. Missael a reconheceu assim que pôs os olhos nela. O policial militar estava, ladeado por uma antiga carabina enferrujada e desmuniciada. O jovem advogado, tirou o óculo escuro da face, antes de encarar o policial militar de frente. Missael queria olhar bem nos olhos do policial militar, antes de falar qualquer coisa. O policial militar, de cabelo louro, olhos verdes, pele clara queimada pelo sol, baixo e gordo, vestia um uniforme em desalinho. O policial militar, mais parecia um personagem, saído de um filme antigo, um filme mudo, uma comédia de Carlito, pensou Missael. O policial militar, ao notar a presença do jovem advogado, levantou-se em um rompante. Missael pensou, que o policial militar iria bater os cascos, quando se aproximou do mesmo. 

— Doutor Da Maia! ’’Me avisaram’’ que o senhor vinha, o prisioneiro lhe aguarda ‘’preso’’ na cela. — O policial militar falava alto e com tamanha intimidade, como se conhecesse Missael Da Maia há anos.

— O delegado de plantão por favor? Queria falar com o ele em primeiro lugar, tenho o Habeas Corpus em mãos, quero ver o meu cliente fora dessa delegacia agora mesmo, policial. — O jovem advogado falava, com todo vigor e rigor possível, mas, não sabia se estava agindo corretamente, gastando aquele palavrório, com uma simples sentinela. Mas, o seu instinto estava lhe dizendo para agir dessa maneira. Uma coisa que o seu velho pai, Aristo, e seu avô viviam repetindo para Missael, para seguir os seus instintos. Fato que fazia parte da natureza de ambos, pois, foi assim que eles viveram e sobreviveram, por longos anos, em ambientes hostis.

— O delegado de plantão não está, na verdade passou mal e foi ‘’pro’’ hospital hoje no início da manhã! Mas, estou instruído para soltar o preso, assim que o doutor chegasse, como o alvará de soltura. — Missael fez um esforço para não rir diante do policial militar, estava sendo mais fácil do que pensava que seria. O próximo passo, era seguir com a coisa toda, e Missael lhe entregou o Habeas Corpus para o policial militar. Ele leu o documento, Missael teve a ligeira impressão, que o policial não sabia ler. Missael entregou a maleta, para o policial militar fazer a revista rotineira, antes de entrar na delegacia, após o policial conferir o Habeas Corpus. O mesmo se assustou como o ato do advogado.

— Não precisa doutor Da Maia, pode entrar!

Missael recolocou o óculo de novo no rosto de forma teatral. Ao adentrar no prédio, ladeado pelo militar, Missael levou um susto, o mesmo era pior por dentro, do que por fora. A comédia pastelão, agora tomava ares de filme de terror, um filme gótico à moda europeia dos anos vinte. Pintura descascando, lixeiras atulhadas e pedindo para serem esvaziados, móveis de escritório velhos e enferrujados, material de limpeza espalhados pelo chão, umidade e mofo em toda parte, banheiro sem portas e torneiras pingando podiam ser ouvidas de longe. Uma onda gélida, pairava no ar, contrariando o calor elevado de fora do prédio. Não havia quadros ou murais de avisos nas paredes, ou, qualquer outra coisa, que denunciasse que ali seria uma repartição pública. Missael não viu mais ninguém, na delegacia, o lugar parecia um deserto árido e sem vida. Missael pensou em perguntar: — O que poderia ter feito de errado, o policial militar, para parar em um lugar tão decadente? Mas, ficou calado, não sabia como aquela figura folclórica e caricata, poderia reagir a uma pergunta desse tipo: —Deus do céu! Esse maldito corredor parece não ter fim disse Missael para si mesmo.

— Sabe de uma coisa doutor, gostei do senhor. Eu gostaria de dizer uma coisinha ‘’pro’’ doutor, se o senhor assim me ‘’permita’’ tal intimidade e atrevimento da minha parte! — Nesse momento, Missael queria que o policial militar ficasse calado, mas, achou melhor ficar com os ouvidos e olhos bem abertos, tinha que ouvir o militar. Tinha que ouvir e digerir, o que aquela figura cômica tinha para dizer, seu alarme estava disparado, Missael estava em alerta total, desde que aceitou aquele caso. A frase muitas vezes proferida pelo seu pai, lhe invadiu a cabeça, naquela hora extrema: ‘’— Meu filho, antes de tudo, procure entender as pessoas, e só assim meu filho, vás encontrar o teu lugar nesse mundo. Senão compreenderes as outras pessoas, não compreenderas a si mesmo, meu filho!’’ — Como Missael gostaria, de se livrar daquela figura lendária, de uma vez por todas, como aquela figura mitológica o angustiava. Missael ficaria contente, em ter um pai de carne e osso, não um mito como progenitor. Uma figura, que o esmagava e o anulava por completo, todos os dias de sua vida. Missael gostaria, de dizer algumas verdades para o pai, mas, não poderia e também não tinha coragem para tanto, o pai e sua história de vida o esmagava por completo.

— Pelo que posso ver, o senhor é japonês, estou certo? Estou? — Disse isso enquanto segurava o braço do advogado com força, forçando-o a parar de andar. Missael Da Maia preferiu o silêncio, como resposta, para aquela pergunta tão constrangedora e despropositada. Missal pensou nas histórias, que seu avô materno contava, quando Missael ainda era uma criança e vivia no norte. Há séculos, os Macuxis invadiram as áreas de pesca e caça dos Wapichanas. Os Macuxis vieram do norte, vieram do litoral caribenho, foram expulsos pelos espanhoes recem chegados ao Novo mundo. Os Macuxis vieram, e disputaram, de forma violenta, espaços de caça e pesca, com a tribo dos Wapichanas, a tribo de Missael. Foram séculos, de disputas sangrentas entre as duas etnias, até a paz reinar, entre as duas tribos rivais. Mesmo assim, ressentimentos de vez em quando vinham à tona, afloravam de tempos em tempos para lembrar, quem é quem, para marcar as diferenças entre as duas tribos. Agora vinha este homenzinho ridículo, metido em um uniforme roto, com uma conversa racista.

            — Sabe doutor Da Maia, vim parar aqui no meio dessa indiarada vagabunda e ordinária, porque briguei com um Coronel que queriam, ‘’porque queriam’’, que eu obedecesse. Um negro, sabe doutor, se meu pai ‘’tevesse’’ vivo, para ver um troço assim, um negro mandando e desmandando, pra cima de mim. Acho que ele morria na hora, doutor. Daí sabe doutor, me mandaram pra cá, pra esse inferno de lugar, quente igual ‘’aos infernos’’. — Missael percebeu nos olhos do militar, o desespero típico dos fracos. Ele queria que o jovem e influente advogado, o ajudasse a sair dali, e voltar a conviver com as pessoas ditas ‘’civilizadas’’, pensou o jovem advogado.

            — O que posso fazer pelo senhor... — Missael olhou de relance e leu, no uniforme do militar o nome ‘’do infeliz’’— Cabo Van Peter! O que posso faz pelo senhor, Cabo Van Peter, a final de contas? 

             — Sei que o senhor é uma pessoa distinta, só quero sair deste lugar ‘’dos infernos’’, e ver a luz do dia ‘’di’’ novo. Só isso doutor Da Maia. — Missael tira os óculos de grife do rosto, encarou a sentinela bem nos olhos, não sabia onde estava se metendo, mas, de uma coisa ele sabia bem, que os corredores escuros, como aquele, exigem olhos bem atentos, mente aberta e um senso de oportunidade, que não é para qualquer um. Teria que agir assim, se pretendia sobreviver e vencer nesses tipos de ambiente. Tinha que proceder como se estivesse em uma guerra, como se sua vida estivesse em jogo em cada lance que dava. 

— Quando me encontrar com o Coronel Alencastro novamente, vou falar do seu caso. O Coronel é uma pessoa razoável e pode rever o caso do senhor. Ele é uma boa pessoa, muito amigo do meu pai, são amigos pessoais. Foi com ele, que o senhor se desentendeu? Não foi Cabo Van Peter?

 O jovem advogado pensou nas conversas, entre Alencastro e Aristo, na varanda da casa da praia. Eram longas conversas, geralmente regadas a vinho ou cerveja, dependendo muito da estação do ano. Às vezes chimarrão, bebida que o pai de Missael só apreciava na companhia do Coronel. O velho soldado vivia dizendo, para todo mundo e para quem quisesse escutar, que Alencastro era muito parecido, fisicamente e no jeito de ser, com seu antigo comandante de campo, quando servia na guerrilha angolana, tempos atrás. Muitas vezes, Missael viu o pai se comportar, como se fosse um soldado, na presença do Coronel Alencastro: Para alguma coisa, aquela estranha, amizade poderia ser útil afinal de contas, pensou Missael.

— Obrigado doutor Da Maia, muito obrigado doutor! — O Cabo a princípio ficou impressionado com as palavras do advogado, achava estranha a amizade do pai de Missael com um negro, mesmo que fosse um Coronel. Van Peter esqueceu de quem era e de onde estava, e beijou ambas as mãos de Missael com veemência. O advogado pensava, estar em uma cena de um filme B, uma comédia ou teatro bufo de quinta categoria, era patética a atitude do policial militar, na visão de Missael.

— Cabo Van Peter, onde fica a cela do meu cliente afinal de contas? — Disse Missael, ao retirar as mãos do Cabo de forma brusca, se livrando do assédio constrangedor. O jovem advogado teve, a estranha, percepção que os corredores tinham diminuídos em comprimento e largura. O lugar literalmente parecia ter encolhido, pelo menos aos olhos de Missael.

— Fica bem ali! — apontou a sentinela para uma cela a poucos metros de onde estavam. Missael estranhou à luz, que emanava do lugar apontado pelo Cabo Van Peter. A sentinela fica parada, enquanto o advogado caminhava para a cela, Missael só notou a falta de Van Peter quando chegou à frente da cela. 

— Cabo Van Peter! Abra a cela, por favor! — Era evidente a irritação na voz de Missael, com o Cabo que permaneceu estático, Missael notou o olhar petrificado do Cabo. Os olhos estavam perdidos, em algum lugar que Missael não identificou bem onde. O advogado ficou em dúvida sobre o olhar do Cabo, se era de medo, horror ou de estupefato.

— A cela está aberta doutor Da Maia, se o senhor quiser conversa com o ‘’meliante’’ a sós, o senhor pode usar a sala do doutor delegado. Ele autorizou, caso o senhor quisesse falar com o meliante em outro lugar. — As palavras saiam da boca do Cabo sem vida, mecanizadas, o Cabo parecia um zumbi. Missael, não gostou da tom de voz do militar, ele mais parecia de uma criança assustada. O que mais irritava, o jovem advogado, era essa coisa tudo, uma irregularidade atrás da outra. Na verdade, ele, só queria tirar o seu cliente dali rápido e voltar ao litoral o quanto antes. Não viera para aquele lugar, para fiscalizar qualquer irregularidade que fosse. Bastou uma olhada, para dentro da cela e uma sensação estranha, tomou Missael de assalto. Ver aquele índio deitado na cama, de costa olhando para a parede, Missael teve a impressão de já ter vista essa cena antes. Um passado muito distante, gritos de desespero e dor vieram juntos como uma torrente, na mente do advogado. Missael abriu a cela, sem dificuldade, mas, percebeu que as barras estavam enferrujadas: - Como podem deixar as coisas chegarem a esse ponto! Missael, também, se perguntou como ele, ainda não fugiu de um lugar como aquele. O que prendia ali, o advogado sabia que é simples para um índio, como aquele, sumir no mundo, como se jamais existisse. De repente. Missael sente uma estranha presença, ele desejava estar armado naquela hora. Da Maia queria uma arma para poder se defender, de uma coisa que ele não sábia o que era, nem onde estava. Não queria estar vulnerável, alguma coisa estranha pairava no ar, para Da Maia era angustiante estar ali.    

— José Maria...

— Mokanã! É este, o meu nome, primo! — O Xocleng, nem se deu ao trabalho de olhar para Missael, enquanto proferiu essas palavras. Pois ainda estava deitado e de cara para a parede.

— Primo? Não sou seu parente! — Missael então percebeu, o que se passava ali — Sou do norte, nasci longe daqui, mas, quem te contou quem sou, Mokanã? — A voz de Missael sai embargada.

 — E isso importa?

           — No pé que está à coisa, isso não importa mesmo! Consegui a sua liberdade provisória, mas, creio que você vai passar um tempo curto no presídio agrícola, por uns meses apenas. ‘’Me diz’’ uma coisa primo, por que atirasse naquele homem desarmado afinal de contas? — Mokanã, virasse para encarar Missael de frente, o olhar do Xocleng, deixou-o sem palavras. Jamais vira um olhar daquele em toda sua vida. Um olhar selvagem e cheio de ira.

            — Aquele chucrute maldito, veio com uns vinte homens, tomaram o nosso gado. Fui buscar de volta, eles devolveram, mas, quando todo o gado já estava de volta na nossa aldeia, aquele palmito dos infernos, quis bancar o engraçadinho, e sacou o revólver da cintura. O que eu ‘’podia’’ fazer, com uma arma apontada pra mim? Desarmado? Essa é boa! Acho que ele deve ser o pior atirador do mundo, por isso não estou morto, se o teuto não está morto, é porque não quis que morresse!              

— Não tem nada disso nos autos do processo, nem no inquérito, que eu li e reli várias vezes! — Missael não disse nada sobre o fato do homem, que era de descendência italiana e não teuta. Mas, para aquele índio, era a mesma coisa pensou Missael. Branco é sempre um branco, e se comportam da mesma maneira, desde há séculos, agem como se a terra fosse deles por direito, sem ter na consciência de quem por aqui já vivia. Era assim que o jovem advogado pensava.

— Quando saio daqui? — Esbravejou o índio com fúria.   

— Agora mesmo, mas, que cheiro forte é esse. É florada de mangueira?

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