Por Dias Campos (São Paulo, SP)
Eu e Leonardo crescemos no mesmo bairro, na pacata Santa Clara do Cerro
Azul, uma cidadezinha achada à lupa, no interior de Minas Gerais.
Era uma época boa, em que as crianças brincavam despreocupadas na rua,
empinavam pipa sem a maldade do cerol, e chupavam cana recém-descascada.
E porque estudássemos na mesma (e única) escola, eu o esperava passar por
minha casa para irmos juntos conversando sobre os assuntos mais importantes do
dia anterior – geralmente, o estimulante comprimento da saia da nossa bela
professorinha.
Mas se éramos como irmãos, fosse na
aparência, fosse nas estripulias, nossos gostos eram bem diferentes. Enquanto
eu adorava uma boa moda de viola, Léo ficava deslumbrado quando, passando em
frente à bodega do seu Carlos, conseguia ouvir um rouco solo de piano, que saía
do seu rádio caixa de madeira.
Eu não conseguia entender como alguém da nossa idade, que adorava comer
goiaba no pé, nadar no ribeirão e correr atrás das galinhas podia gostar
daquelas músicas chatas, tão de gente velha.
Mas Leonardo não dava a mínima para as minhas críticas. E toda vez que
arranjava uma folguinha, lá estava ele a pedir para seu Carlos que sintonizasse
o antigo aparelho.
Ele até chegou a se oferecer para ajudar na bodega, só para poder ficar
mais perto do rádio, pois se dependesse da pobreza de seus pais, desse luxo ele
jamais se aproximaria.
E tanto insistiu ao dono, e aos pais, que acabou sendo aceito em meio
período, uma vez que sua mãe jamais abriria mão das poucas letras que
aprendíamos.
É claro que o patrão ficava atento. Do contrário, os trinados do piano
enfeitiçavam o aprendiz mais do que os meneios da flauta de um encantador fazem
dançar as serpentes.
Mas se seu Carlos ficava contente, já que Léo tinha o mesmo apreço que
ele pelo piano, ficava, também, entristecido. Afinal, salvo um milagre, o
máximo que a vida emprestaria ao meu amigo seriam as poucas horas que a estação
de rádio dedicava àquele instrumento.
É bom mencionar que o tipo de música não era o que mais importava a
Leonardo. Deliciava-se da mesma forma se ouvisse uma sonata de Mozart, uma Polonaise de Chopin ou um maxixe de
Ernesto Nazareth, porquanto o que realmente tocava o seu espírito eram a
sonoridade, as melodias, os inúmeros recursos que só são possíveis ao Rei da
Orquestra.
Assim, mais e mais pessoas passaram a perceber que Léo não amava o piano.
Era pura paixão, verdadeira dependência! Tanto que no dia em que entrou na
bodega para trabalhar e soube que o aparelho tinha pifado, levou tamanho choque
que os soluços irromperam.
Não adiantava seu Carlos afirmar que era coisa simples – uma válvula
queimara –, e que o mandaria consertar na primeira oportunidade, pois ele
simplesmente não o ouvia!
Foi comovente, relembra seu Carlos, ver Leonardo tombando devagar,
chorando ajoelhado e com a cabeça apoiada sobre as mãos.
Mas o pior ainda viria...
O baque foi tão grande que ele acabou desfalecendo.
Diante dessa inusitada reação, alternativa não teve o bodegueiro senão a
de mandar chamar sua mãe às pressas, que o carregou para a casa como se fosse
um bebê.
Só fui desconfiar que algo acontecia na manhã seguinte, quando ele não
apareceu para irmos à escola.
E bastou a professora encerrar a última aula para que chispasse em
direção à sua casa.
Tomei um baita susto quando sua mãe me contou que ele estava de cama.
O diagnóstico? Adoentado dos nervos, garantiram o boticário e a parteira
da cidade.
O motivo? Confessava-o nos delírios febris...
Era imperioso, portanto, que seu Carlos fosse avisado para que
providenciasse o conserto do rádio o mais rápido possível!
Nesse meio tempo, a notícia já tinha se espalhado pela cidade. E dada à
lucratividade do fato, o presidente da Câmara dos Vereadores não perdeu a
oportunidade de ir oferecer os seus préstimos à família do meu amigo.
Ao chegar à casa de Leonardo, porém, o vereador sentiu repugnância. Não
porque a humildade do local o agredisse, mas, sim, porque o prefeito já tinha
se antecipado na solicitude.
Neste exato momento, a mãe do Léo começava a contar a cena que seu Carlos
presenciara.
E quando ouviram que Leonardo, delirante de febre, balbuciava as palavras
rádio e piano, o prefeito, astuto que era, além de oferecer-se para custear as
despesas com o transporte e com a internação no hospital mais próximo, disse
que o rapaz levaria consigo, emprestado, um rádio muito mais moderno, e que
comprara na última viagem que fizera à capital.
Ora, se o problema era de fundo nervoso, como disseram, o prefeito
deduziu, e não sem pouca razão, que Leonardo ficaria curado mais depressa se
aos remédios se somasse a magia do piano.
E como os pais de Léo só faltaram se
prostrar diante do prefeito, graças à alegria e à gratidão que inundaram suas
almas, o vereador não teve sequer coragem de levantar um único senão. E se
somou aos sorrisos – mesmo que amarelo – e às palmas endereçados ao seu
arquirrival.
O tempo urgia, contudo, pois se as
compressas de água fria e as mezinhas ajudavam, não acabavam totalmente com a
febre, que ia e vinha em intervalos cada vez mais curtos.
Ultimaram-se os preparativos em
menos de uma hora. E Leonardo e sua mãe seguiram com o prefeito e um assessor
(que dirigiria) rumo ao hospital da cidade mais próxima.
Léo foi atendido e medicado com o mesmo zelo dispensado a qualquer
parente de figurão.
E tão logo ele começou a recobrar a lucidez, o médico responsável – por
sinal, apadrinhado daquela “solícita” autoridade – ligou o rádio e começou a
procurar uma estação que estivesse transmitindo música de piano.
Seja por obra da sorte, seja graças à Providência, o fato é que o dial
acabou parando exatamente na estação que seu Carlos e Leonardo escutavam. E o
quarto se encheu de um delicioso chorinho de Chiquinha Gonzaga, tocado com
maestria ao piano.
Pois foi visível a sua reação! Assim que reconheceu o som característico,
o semblante do meu amigo mudou completamente, corando-se de um espontâneo e
vívido sorriso.
Léo adormeceu pouco depois, e em paz.
Ao abrir os olhos, já sem febre,
Leonardo identificou sua mãezinha, que, com voz maviosa, perguntava sobre como
se sentia.
Como dissesse que estava bem, ela indicou o criado-mudo...
E se os olhos de Leonardo arregalaram-se quando viram o rádio do
prefeito, seus ouvidos maravilharam-se quando o aparelho foi religado, pois uma
rapsódia de Liszt preencheu todo o quarto.
Léo teve alta na mesma tarde, e todos retornaram para Santa Clara.
O prefeito fez questão de dizer aos quatro ventos o resultado da
“caridosa” caravana ao hospital, sem deixar de mencionar, é claro, a
importância decisiva que o seu rádio teve na recuperação. Além disso, mandou
publicar toda a história no jornaleco da cidade.
O vereador adversário ficou mordido! Era preciso desse a volta por cima
perante os seus eleitores. Caso contrário, todo um projeto político poderia
rolar ladeira abaixo.
Pois não é que ele apresentou à Câmara dos Vereadores uma moção
objetivando arrecadar fundos para a compra de um piano?
Assim, sua ideia não só fomentaria a cultura do município, o que a muitos
agradaria, como, também, faria de Leonardo o seu mais valioso cabo eleitoral, já
que lhe seria eternamente grato. – A contratação de um professor de piano
ficaria para bem mais tarde.
E como atitude de “absoluto desprendimento”, ele ainda propôs que o piano
fosse instalado na própria prefeitura, o que por certo afastaria qualquer
objeção do seu desafeto.
Desta vez, quem ficou furioso foi o prefeito, que não teve escolha senão
a de aderir a tão auspiciosa proposta.
Quando Léo soube dessa novidade, só
faltou explodir de tanto júbilo!
Confesso que fiquei com uma pontinha
de inveja. Até porque, se soubesse que ficar doente me transformaria no rapaz
mais popular da cidade, não pensaria duas vezes em passar alguns minutos sem
camisa sob a chuva.
Mas aquele sentimento logo se
transformou em admiração, sobretudo depois que os repórteres das outras cidades
começaram a me entrevistar. Afinal, quem daria o depoimento mais sincero sobre
Leonardo senão o seu melhor amigo?
E por falar em sinceridade, até hoje me emociono quando relembro Leonardo
me contando sobre os sonhos que passou a ter. Mais de uma vez ele se viu
sentado à frente de um piano, tocando como virtuose, e até chorando com as
nuanças que conseguia alcançar.
Tão confiante estava o meu amigo que
não era incomum vê-lo na sala de aula executando uma escala musical sobre a
carteira, como se ao piano estivesse. Aliás, como qualquer tampo servia de
teclado, mais de uma vez seu Carlos teve que trazê-lo à realidade, pois que era
pego de olhos fechados, imitando o virtuosismo dos concertistas sobre o balcão
da bodega, enquanto permanecia hipnotizado pela música que escutava no velho
rádio.
Mas esses “treinos” não demorariam
muito mais. E Leonardo ficou radiante quando o próprio prefeito revelou que, se
não houvesse nenhum imprevisto, o piano chegaria à cidade na próxima
sexta-feira.
Haveria fogos de artifício, banda de coreto, discurso e a bênção do
vigário.
Ademais, afirmou que a chave que tranca a ribaltina, o tampo protetor do
teclado, seria oferecida a ele, Leonardo, com a mesma pompa que envolve a
entrega da chave da cidade para uma pessoa ilustre.
A ele, e somente a ele seria dada a suprema honra de destravar o piano, e
de ser o primeiro a premir as teclas de marfim!
Mas que o garoto não revelasse esse último segredo para ninguém, pois
seus assessores já tinham sido incumbidos de preparar uma solenidade de
recebimento, e não convinha ao povo que se estragasse a surpresa. – É claro que
o meu amigão acabou me contando.
Na data marcada, a praça amanheceu toda enfeitada. E foi logo ocupada
pela população.
A banda mantinha-se a postos. E no palanque já estavam o prefeito, sua
família, um bando de assessores e o sacerdote.
E todos aguardavam Leonardo e o piano; mais a este do que àquele, é bem
verdade.
Léo e sua família não tardaram a chegar. Vinham com roupas de domingo,
como se fossem à missa.
Foram conduzidos ao palanque, onde um lugar especial já estava reservado
– entre o prefeito e o vigário.
Esse privilégio irritou o vereador da oposição. Não por isso que ele
escalou o palanque, e foi se esgueirando até conseguir chegar atrás de
Leonardo. E se todo esse esforço valeu a pena, visto que também sairia na foto
oficial, quase disse adeus à sua carreira, pois por pouco não derrubou o sacerdote.
Quando a caminhonete chegou à praça central, o motorista e o ajudante até
brecaram por causa do susto que tomaram. Afinal, os fogos explodiram, a banda
disparou estrepitosos acordes e a população bateu palmas e caprichou na
gritaria.
A expectativa sufocava! E se os semblantes estavam inquietos, era visível
que o do homenageado a todos se sobressaía. Léo podia ser comparado a um balão
muitíssimo cheio, em que bastaria um leve toque de aspereza para que
explodisse.
O veículo estacionou a poucos metros
do palanque e o prefeito fez sinal para que a banda sustasse a fanfarra.
Era um piano de armário e de segunda
mão. Estava embrulhado por um tecido grosso que bem o protegia, e preso por
cordas à carroceria aberta e de madeira.
Conforme o combinado entre o
prefeito e o ex-proprietário, a pequenina chave que trancava a ribaltina
deveria ser entregue devidamente acondicionada a uma caixinha de veludo, dessas
em que se guardam anéis.
E antes que começassem a desembrulhar o piano, o motorista aproximou-se
do palanque e entregou ao prefeito aquela preciosidade.
O prefeito, então, pediu ao povo que
fizesse silêncio.
Levantou a caixinha acima da cabeça, o que aumentou a curiosidade dos
munícipes, abaixou-a segundos depois, e retirou o discurso do bolso do paletó.
Para a felicidade geral, a falação
não iria além de três páginas.
Apesar da brevidade, todos ficaram
emocionados, pois Sua Excelência, além de incensar o orgulho dos cidadãos, que
passaram a se sentir condôminos de um símbolo de erudição, sua eloquência
acabou tocando fundo aos corações, haja vista a ênfase que reservou ao
sofrimento por que passou Leonardo.
Mas os semblantes logo se alegraram, e ufanou-se o público, quando o
prefeito, em tom solene, afirmou que a Leonardo caberia a honra de ser o guardião
da chave do piano.
E na maior teatralização, abriu a
caixinha, mostrou a pequena chave ao público, e a entregou para o meu amigo. –
Fomos todos ao delírio!
Instado a que desse umas poucas
palavras, Léo, bastante sem jeito, agradeceu a honraria, e prometeu que se
esforçaria ao máximo para ser um grande pianista, o que traria respeito e
orgulho para toda a gente da cidade. – Os hurras e as palmas estouraram!
Em seguida, o prefeito deu ordem
para que descarregassem o piano.
As cordas foram soltas e o tecido,
removido, o que gerou várias interjeições.
O ajudante desceu da carroceria, abaixou a proteção traseira, e ficou
aguardando que o parceiro empurrasse o instrumento.
O motorista, graças às quatro rodinhas fixadas na base inferior do piano,
passou a empurrá-lo com facilidade, mas com o máximo cuidado.
A operação seria simples. Quando as duas rodinhas da sua base não mais se
apoiassem sobre a carroceria, o ajudante, que estava no chão, teria que segurar
essa extremidade e levantá-la, a fim de não danificar a parte inferior do
instrumento.
O motorista, por sua vez, teria que fazer o mesmo com o outro lado.
E ambos iriam carregando o piano até que fosse colocado em segurança no
solo.
Ocorre que o ajudante, indo para trás, acabou pisando em falso. E numa
fração de segundo, perdeu o equilíbrio e caiu de costas.
O piano despencou como fazem os frutos maduros... – Por sorte não atingiu
o ajudante.
E como a praça fora pavimentada com paralelepípedos, nada pôde amortecer
o forte impacto.
Daí que a caixa de ressonância se quebrou, o mecanismo interno ficou
comprometido, e muito do verniz foi danificado, pois ele tombou para o lado em
seguida ao choque.
Houve um grande alvoroço! E a maioria dos presentes acercou o que sobrara
do instrumento.
Eis que um deles comentou sobre como Leonardo estaria se sentindo...
E um a um, fomos todos nos virando para o palanque.
O que vimos foi de apertar o coração – Uma mãe em pranto, de joelhos, e
agarrada ao próprio filho; cujos olhinhos nunca mais se abririam.
Léo foi enterrado no sábado à tarde, em cerimônia simples, mas muito
comovente.
No epitáfio, a seguinte inscrição: “Ao nosso eterno pianista”.
Por ordem do prefeito, desapareceriam com o piano, pois não convinha aos votantes
lembrarem-se da tragédia. As más línguas, no entanto, garantem que, antes do
sumiço, as teclas de marfim passaram para as mãos do vereador, que as revendeu
a preço de ouro para um antiquário.
E passados mais de trinta anos do seu sepultamento, ainda me pergunto por
que Deus não permitiu que Léo se tornasse um exímio solista?...
Talvez tenha permitido. Mas só os anjos e os eleitos podem chorar com os
seus recitais.
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