Por Leandro Bertoldo Silva (Padre Paraíso, MG)
Era o mesmo ritual todas as manhãs. Ao acordar e logo
depois do desjejum, se preparava para ir à biblioteca. Lá o recebia o
bibliotecário com um olhar inquiridor como se esperasse sempre outra pessoa.
— O que vai ser hoje, Seu…
Nunca terminava a frase. Já se passavam meses e não lhe
sabia o nome.
Seu… estranhava esse comportamento e essa maneira de ser
recebido como se fosse sempre outro alguém. Com o tempo passou a compreender o
homem, pois a cada dia sentia-se diferente. Passou a olhar-se no espelho e a
cada vez era como se sua imagem se desfocasse antes de se firmar quase
imperceptivelmente alterada. Não era apenas uma ruga a denunciar a passagem do
tempo ou outro indício físico a marcar-lhe mudanças, mas algo a metamorfosear
os sentidos e desejos da natureza de sua alma.
Gostos culinários se alternavam, certezas e convicções
desmoronavam e transfiguravam em outras antes rejeitadas. Os cabelos outrora
partidos ao meio ganhavam dia a dia um penteado inédito. É como se já não
tivesse filosofias, tivesse sentidos… tudo transformava, menos o gosto pela
poesia.
As mudanças se sucediam e o bibliotecário já não sabia quem
recebia, embora nunca o soubera. Um dia, Seu… ao devolver um dos livros tomado
por empréstimo deixou esquecido dentro dele um papel escrito à lápis- nunca
usava canetas -, onde se lia:
Um certo poeta
sempre viverá em mim.
Ou melhor, em mins…
Abaixo dos versos estava escrito um nome:
Bernardo Soares.
Descobrira enfim.
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