segunda-feira, 1 de julho de 2024

PESSOAS NA PESSOA

Por Leandro Bertoldo Silva (Padre Paraíso, MG)

Era o mesmo ritual todas as manhãs. Ao acordar e logo depois do desjejum, se preparava para ir à biblioteca. Lá o recebia o bibliotecário com um olhar inquiridor como se esperasse sempre outra pessoa.

— O que vai ser hoje, Seu…

Nunca terminava a frase. Já se passavam meses e não lhe sabia o nome.

Seu… estranhava esse comportamento e essa maneira de ser recebido como se fosse sempre outro alguém. Com o tempo passou a compreender o homem, pois a cada dia sentia-se diferente. Passou a olhar-se no espelho e a cada vez era como se sua imagem se desfocasse antes de se firmar quase imperceptivelmente alterada. Não era apenas uma ruga a denunciar a passagem do tempo ou outro indício físico a marcar-lhe mudanças, mas algo a metamorfosear os sentidos e desejos da natureza de sua alma.

Gostos culinários se alternavam, certezas e convicções desmoronavam e transfiguravam em outras antes rejeitadas. Os cabelos outrora partidos ao meio ganhavam dia a dia um penteado inédito. É como se já não tivesse filosofias, tivesse sentidos… tudo transformava, menos o gosto pela poesia.

As mudanças se sucediam e o bibliotecário já não sabia quem recebia, embora nunca o soubera. Um dia, Seu… ao devolver um dos livros tomado por empréstimo deixou esquecido dentro dele um papel escrito à lápis- nunca usava canetas -, onde se lia:

Um certo poeta
sempre viverá em mim.
Ou melhor, em mins…

Abaixo dos versos estava escrito um nome:

Bernardo Soares.

Descobrira enfim.

 


Nenhum comentário:

Postar um comentário