Por Clarisse Cristal (Balneário Camboriú, SC)
‘’Foi
assim que me encontrei...
E me
perdi, nunca mais olhei para cima!’’
Fabiane Braga Lima
— Gorete, meu anjo da janela, tu
pareces um urubu na carniça! — Falei para a dona da casa, que estava pendurada
na janela, estarrecida com a movimentação atípica no Beco do Brooklyn. Cena que
remete há tempos sombrios e eras remotas.
Gorete deixou o espetáculo tétrico,
pois as luzes da ambulância, que se misturavam com as luzes das viaturas do
aparato de segurança. Sons de rádios portais e uma falação de populares
chocados e repórteres era um amálgama, pois os muros altos e os edifícios
jorravam para os interiores dos apartamentos acima. Pois não eram sempre que
uma celebridade, que se rebaixou para subcelebridade e a um fulano qualquer
morto em um beco outrora sombrio e agora revitalizado. O morto em questão era
Molina, um surfista que saiu da obscuridade do amadorismo local, para o
estrelato internacional dos esportes marítimos.
Mas que fez o atleta padecer ao
final de um dia ameno de outono? Era o que Clarisse Cristal estava fazendo
naquele momento e Gorete a dona do apartamento onde a bibliotecária estava. E
lentamente a eficiente governanta aposentada se moveu lentamente até a mesa da
sala de estar, onde a compenetrada Clarisse Cristal olhava para a tela de um
notebook.
— Como? — Disse Gorete como quem
fala com uma criança que acabou de cometer uma falta.
— Como o que? — Devolvi e me
arrependendo depois — Como eu sabia que o Molina estava morrendo?
— Para começar! Mas antes vou
buscar uma garrafa de café e avisar a tua mãe que tu vais ficar aqui em casa um
pouco mais de tempo! — Falou Gorete e se pondo a caminho da cozinha e voltando
com uma garrafa térmica e duas canecas de café. Pegou o telefone que estava em
cima da mesa e mandou um vídeo áudio para a minha mãe dando conta do meu atraso.
— Vamos até o sofá para pôr o nosso
papo mulherzinha em dia! — Sugeri imitando o palavreado e o tom de voz da minha
mãe. Ao caminhar até o sofá da sala de estar, parecia que o apartamento de
Gorete tinha se expandido, ficando maior. A caminhada foi lenta e difícil
demais, algo de ruim pairava no ar e então vi o que estava de errado, olhei
para a pequena estante de livros de Gorete e vi um exemplar de um livro, a peça
O rei de amarelo. E tive a impressão que a Gorete tinha sussurrado: ‘’— Eu não li
a peça O rei de amarelo! ’’ — Mas não era a voz de Gorete de hoje e sim jovem.
Assim que chegamos no confortável
sofá, uma outra Gorete apareceu na minha frente, sofisticada, elegante e
austera. Não me espantei com o sumiço da serviçal submissa. Ela se revelou
quando nos sentamos e ficamos frente a frente, aquele brilho gélido e cheio de
poder, não intimidou em nada
— Então senhora! Vamos ao ponto...
— Disse e olhei para a mesa de centro e vi um sofisticado aparelho de chá,
alemão ou austríaco, calculei — Então a senhora quer saber o que vi a pouco lá
embaixo?
— Para começar! — A voz poderosa de
Gorete inundou todo o ambiente, mesmo assim agi naturalmente.
— Simples, um conclave de uma seita
ou de uma célula de uma seita ou algo assemelhado! — Parei e olhei para ver
melhor a pessoa desconhecida na minha frente — E queres saber como eu
identifiquei os elementos?
— Creio que sim! — Respondeu Gorete
de forma inumana.
— Começamos do mais simples ao mais
complexo, Molina foi famoso e apesar disso eu não o reconheci de imediato.
Estamos à beira mar e por aqui pululam esses ratos de praia, mas reconhece,
mesmo que esfarrapadas as roupas que ele vestia. Exclusivas e mais exclusivas
são os adornos que estava usando...
— Queres dizer que, daqui de cima,
a senhorita viu os finos detalhes das pulseiras, colar e brincos daqui de cima?
— Perguntou Gorete incorporando uma outra pessoa.
— Sim! Vi o calor e aquelas
imitações de ebúrneos dentes de felino, de um famoso artesão Wagiman, um
australiano, que passou por aqui brevemente!
— Simples assim! — Trovejou Gorete na
minha mente.
— Já o Fumaça é um típico policial
civil! Conheci alguns, firme demais, sóbrio demais para um morador de rua
desalentado, da ponta do pé até o alto da cabeça, tudo ali soava falso —
Sentencie triunfante
— Simples assim! — Disse Gorete com
candura.
— Agora o professor Gilberto, com
aquele terno puído, sapatos baratos, o tom professoral como gesticulava, fala
compassada é um clichê ambulante! Gorete, tu leste o Rei de amarelo?
Fragmento do livro: Do diário
de uma louca, texto de Clarisse Cristal, poetisa, contista, novelista e
bibliotecária em Balneário Camboriú, Santa Catarina.
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