segunda-feira, 1 de julho de 2024

CRÔNICA DO DIA: EU NÃO LI A PEÇA "O REI AMARELO"

Por Clarisse Cristal (Balneário Camboriú, SC)

 

 

‘’Foi assim que me encontrei...

E me perdi, nunca mais olhei para cima!’’ 

Fabiane Braga Lima

 

               — Gorete, meu anjo da janela, tu pareces um urubu na carniça! — Falei para a dona da casa, que estava pendurada na janela, estarrecida com a movimentação atípica no Beco do Brooklyn. Cena que remete há tempos sombrios e eras remotas.

            Gorete deixou o espetáculo tétrico, pois as luzes da ambulância, que se misturavam com as luzes das viaturas do aparato de segurança. Sons de rádios portais e uma falação de populares chocados e repórteres era um amálgama, pois os muros altos e os edifícios jorravam para os interiores dos apartamentos acima. Pois não eram sempre que uma celebridade, que se rebaixou para subcelebridade e a um fulano qualquer morto em um beco outrora sombrio e agora revitalizado. O morto em questão era Molina, um surfista que saiu da obscuridade do amadorismo local, para o estrelato internacional dos esportes marítimos.

            Mas que fez o atleta padecer ao final de um dia ameno de outono? Era o que Clarisse Cristal estava fazendo naquele momento e Gorete a dona do apartamento onde a bibliotecária estava. E lentamente a eficiente governanta aposentada se moveu lentamente até a mesa da sala de estar, onde a compenetrada Clarisse Cristal olhava para a tela de um notebook.

            — Como? — Disse Gorete como quem fala com uma criança que acabou de cometer uma falta.

            — Como o que? — Devolvi e me arrependendo depois — Como eu sabia que o Molina estava morrendo?

            — Para começar! Mas antes vou buscar uma garrafa de café e avisar a tua mãe que tu vais ficar aqui em casa um pouco mais de tempo! — Falou Gorete e se pondo a caminho da cozinha e voltando com uma garrafa térmica e duas canecas de café. Pegou o telefone que estava em cima da mesa e mandou um vídeo áudio para a minha mãe dando conta do meu atraso.

            — Vamos até o sofá para pôr o nosso papo mulherzinha em dia! — Sugeri imitando o palavreado e o tom de voz da minha mãe. Ao caminhar até o sofá da sala de estar, parecia que o apartamento de Gorete tinha se expandido, ficando maior. A caminhada foi lenta e difícil demais, algo de ruim pairava no ar e então vi o que estava de errado, olhei para a pequena estante de livros de Gorete e vi um exemplar de um livro, a peça O rei de amarelo. E tive a impressão que a Gorete tinha sussurrado: ‘’— Eu não li a peça O rei de amarelo! ’’ — Mas não era a voz de Gorete de hoje e sim jovem.

            Assim que chegamos no confortável sofá, uma outra Gorete apareceu na minha frente, sofisticada, elegante e austera. Não me espantei com o sumiço da serviçal submissa. Ela se revelou quando nos sentamos e ficamos frente a frente, aquele brilho gélido e cheio de poder, não intimidou em nada

            — Então senhora! Vamos ao ponto... — Disse e olhei para a mesa de centro e vi um sofisticado aparelho de chá, alemão ou austríaco, calculei — Então a senhora quer saber o que vi a pouco lá embaixo?

            — Para começar! — A voz poderosa de Gorete inundou todo o ambiente, mesmo assim agi naturalmente.        

            — Simples, um conclave de uma seita ou de uma célula de uma seita ou algo assemelhado! — Parei e olhei para ver melhor a pessoa desconhecida na minha frente — E queres saber como eu identifiquei os elementos?

            — Creio que sim! — Respondeu Gorete de forma inumana.

            — Começamos do mais simples ao mais complexo, Molina foi famoso e apesar disso eu não o reconheci de imediato. Estamos à beira mar e por aqui pululam esses ratos de praia, mas reconhece, mesmo que esfarrapadas as roupas que ele vestia. Exclusivas e mais exclusivas são os adornos que estava usando... 

            — Queres dizer que, daqui de cima, a senhorita viu os finos detalhes das pulseiras, colar e brincos daqui de cima? — Perguntou Gorete incorporando uma outra pessoa.

            — Sim! Vi o calor e aquelas imitações de ebúrneos dentes de felino, de um famoso artesão Wagiman, um australiano, que passou por aqui brevemente!        

          — Simples assim! — Trovejou Gorete na minha mente.

            — Já o Fumaça é um típico policial civil! Conheci alguns, firme demais, sóbrio demais para um morador de rua desalentado, da ponta do pé até o alto da cabeça, tudo ali soava falso — Sentencie triunfante

            — Simples assim! — Disse Gorete com candura.

            — Agora o professor Gilberto, com aquele terno puído, sapatos baratos, o tom professoral como gesticulava, fala compassada é um clichê ambulante! Gorete, tu leste o Rei de amarelo?

 

 

Fragmento do livro: Do diário de uma louca, texto de Clarisse Cristal, poetisa, contista, novelista e bibliotecária em Balneário Camboriú, Santa Catarina.

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