domingo, 1 de junho de 2025

OPERA MUNDI: ERNESTO CACINDA E O BAIRRO PROIBIDO

Por Clarisse Cristal (Balnerário Camboriú, SC) e Samuel da Costa (Itajaí, SC)

 

            Os sons de apitos de trens e de navios, se misturavam com diversos falares em diferentes dialetos e idiomas, impuseram a hirta realidade, para o major-general Ernesto Cacinda. Caminhando para fora da estação de trens monotrilho, segurando uma mala de viagem, na mão esquerda, um chapéu panamá na cabeça que amenizava o forte calor. Um sofisticado terno, a gravata vermelha, lustrosos sapatos nos pés, os óculos escuros, as vestes feitas sobre medida, faziam o agente de um serviço de segurança destoar do ambiente em que se encontrava. O vai e vem de carregadores de malas e bagagens afins, um mar de gente nervosa, indo de um lugar para o outro, ocupando balcões e terminais de computadores abarrotados de gente desesperada em mais um dia normal. Uma voz de mulher, melodiosa, dava informes e partidas e chegadas de trens. Era um falar que alternava em diversos falares e dialetos.  

            Para o major-general Ernesto Cacinda, nada existia ou deveria lhe tirar da missão que tomou para si. Somente a ideia de resgatar o rei Botswana, da terra dos sonhos, ter que ir até a cidade das nuvens, era além de uma missão, era um fato que o destino lhe incumbira. E o major-general Ernesto Cacinda, tomou o caminho do bairro proibido, ignorando todos os sinais, que a hirta realidade se impuseram. O protocolo, seria ir até um posto militar ou um aparato de segurança, mais próximo, se identificar como major-general em trânsito e depois ir até o hotel de cinco estrelas, onde uma suíte o esperava. Mas não, tomou direção a pé, até a cidade proibida dos orientais, não muito longe da estação de trens, o itinerário se projetou no óculo que lhe cobria os olhos, a inteligência artificial deu-lhe o informe. Dava-lhe também conta, dos possíveis perigos, que estavam nas esquinas do bairro proibidos, em relação aos não orientais. Ernesto Cacinda não se curvou para a realidade, que o circundava, pois o sentido e o sentimento de medo, para o militar de alta patente, era algo que muito renunciava.

            O homem retinto, deixou a estação de trens, viu e ignorou completamente um discreto veículo oficial do serviço de segurança e dentro dele, os dois agentes da lei, um homem e uma mulher, como os seus funcionais uniformes de tecido digital. Para o major-general eles simplesmente não existiam. Os dois agentes experientes, o reconheceram de imediato, as lentes de contato nos olhos dos oficiais e as câmeras corporais, fizeram a leitura facial. O comando central informou que ele era um militar de alta patente em trânsito, mas não informaram o nome e a patente. E veio rápido, a ordem do alto comando do aparato de segurança, deram a ordem de não importunarem o major-general Ernesto Cacinda e assim eles o fizeram. O nome do lendário militar, fez os dois agentes de segurança se fecharem entre si e olharem para o lado.  

            Ernesto Cacinda não andou muito, até se deparar com um maltrapilho oriental, usava uma puída manta de cor laranja, carregava em uma mão um cajado de madeira Paolo Santo e na outra, uma tigela de bronze, o homem era um monge tibetano. O monge, de idade indeterminada, estava sentado no chão a poucos metros da entrada da estação de trens. Ernesto parou na frente do monge e os dois se entreolharam, as lentes de contato nos olhos do major-general, escaneou a face do monge e lhe foi informado que era o tenente Huang Shikai. Era uma das suas células dormente, àquela hora era um morador do bairro proibido e com duas filhas escravizadas, pela gangue Dragões verdes, Cacinda sorriu para o monge impassível. O monge, em voto de silêncio nada disse, só ergueu o pequeno pote de bronze e as lentes de contato escaneou o pequeno QR code, que estava na borda superior do pote. E usando a inteligência artificial, o major-general depositou uma considerável soma em dinheiro digital, em uma conta bancária. O monge levantou sem nada dizer, Ernesto seguiu o homem, também sem nada dizer, partiram para o bairro proibido dos orientais. Lugar onde os não orientais não tinham permissão para pôr os pés, somente poucas pessoas tinham a permissão de ali frequentarem.   

***

            Ernesto Cacinda, o major-general, adentrou no bairro proibido para os não orientais. Não passou despercebido, para o comandante de campo, as diversas pichações digitais, espalhadas pelos muros e fachadas das decadentes residências e casas de comércio. O major-general, não precisou da IA para traduzir as diversas línguas ali escritas. Eram uma miscelânea de inscrições, lemas, ditames e emblemas das organizações Yakuza, Tríades, Dragões verdes, Born to Kill a BTK e os Bōsōzoku. Ernesto as conhecia e entendia bem o que diziam. Negros olhos rasgados e irrequietos olhavam em direção de Ernesto Cacinda, se seguiram por sussurros em vários idiomas e dialetos orientais. Alguns dos habitantes da localidade, sabiam quem era aquele homem de cor de ébano, que passava pela rua central e plena luz do dia, outros simplesmente intuíram. O monge à frente do major-general andava como se fosse um soldado de patente inferior que conduzia o seu superior em uma terra desconhecida.  

            A certa altura o major-general, se desvencilhou do monge, Ernesto Cacinda seguiu em frente, deu poucos passos, em meio a olhares estupefatos e parou na frente de uma casa de ópio. Venceu uma pequena escadaria de madeira e no alto da escadaria um homem oriental de meia idade o esperava. Vestido com um elegante sobretudo verde turquesa, usando coturnos, os olhos rasgados e misteriosos encararam Ernesto com a docilidade de quem encara um querido e aclamado superior hierárquico. Atrás do oriental, duas jovens mulheres orientais, usando diáfanos trajes sumários, elas de cabeça baixa e feições tristes, choravam em desespero diante de um destino nebuloso.

            Ernesto Cacinda, galgou os degraus que faltavam para chegar ao platô, o silêncio tomou conta do lugar, o major-general levou a mão até o antebraço e expôs uma manopla de cristal líquido. Ernesto apertou dois comandos e as roupas digitais, das duas tímidas jovens escravizadas mudaram, os vulgares trajes sumários desapareceram. Simultaneamente, deram lugar a delicados e sofisticados Hanfu, quimonos chineses. E as maquiagens ordinárias deram lugar a uma sofisticada maquiagem, os alourados longos, lisos e maltratados cabelos soltos, foram substituídos por belos cabelos negros emoldurados em tradicionais coques. E por fim os pês nus, surgiram tamancos de madeira Paolo Santo.

            As duas jovens, assustadas, se entreolharam e passaram correndo e em desespero ao lado de Ernesto Cacinda, que não tirou os olhos do agente dos Dragões verdes. Um avatar se desvencilhou do major-general e foi de encontro com o monge, não muito longe dali.  

            — A sua missão acabou e a vossa vida lhe pertence tenente Huang Shikai! — Disse o espectro opaco e uniformizado do major-general e que evanesceu no ar.

            Simultaneamente na entrada do operário, o agente do Dragões verdes tirou um cachimbo de bambu do sobretudo e sorriu, pois já tinha visto a mesma cena antes. Viu militares e variados agentes da lei e do aparato repressivo, ao caírem em desgraças, a lhe baterem à porta, em busca de alívio para as dores nos corpos debilitados e as almas torturadas. No alto do céu azul sem nuvens, flanava um portentoso zepelim, era a belonave Mare Crisium, que lentamente cruzava o céu. E uma revoada de agourentas aves Mores, perderam de distantes nuvens brancas, grasnaram alto e enegreceram o céu.          

            O major-general Ernesto Cacinda, fechou-se em si e seguiu os rastros do agente dos Dragões verdes, adentraram o opiário sem medos ou desesperos.   

                         

Fragmento do livro Opera mundi, de Clarisse Cristal, poetisa, contista, cronista, novelista e bibliotecária em Balneário Camboriú, Santa Catarina.

Argumento de Samuel da Costa, poetisa, contista, cronista e novelista em Itajaí, Santa Catarina.

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