Por Clarisse Cristal (Balnerário Camboriú, SC) e Samuel da Costa (Itajaí, SC)
Os
sons de apitos de trens e de navios, se misturavam com diversos falares em
diferentes dialetos e idiomas, impuseram a hirta realidade, para o
major-general Ernesto Cacinda. Caminhando para fora da estação de trens
monotrilho, segurando uma mala de viagem, na mão esquerda, um chapéu panamá na
cabeça que amenizava o forte calor. Um sofisticado terno, a gravata vermelha,
lustrosos sapatos nos pés, os óculos escuros, as vestes feitas sobre medida,
faziam o agente de um serviço de segurança destoar do ambiente em que se
encontrava. O vai e vem de carregadores de malas e bagagens afins, um mar de
gente nervosa, indo de um lugar para o outro, ocupando balcões e terminais de
computadores abarrotados de gente desesperada em mais um dia normal. Uma voz de
mulher, melodiosa, dava informes e partidas e chegadas de trens. Era um falar
que alternava em diversos falares e dialetos.
Para
o major-general Ernesto Cacinda, nada existia ou deveria lhe tirar da missão
que tomou para si. Somente a ideia de resgatar o rei Botswana, da terra dos
sonhos, ter que ir até a cidade das nuvens, era além de uma missão, era um fato
que o destino lhe incumbira. E o major-general Ernesto Cacinda, tomou o caminho
do bairro proibido, ignorando todos os sinais, que a hirta realidade se
impuseram. O protocolo, seria ir até um posto militar ou um aparato de
segurança, mais próximo, se identificar como major-general em trânsito e depois
ir até o hotel de cinco estrelas, onde uma suíte o esperava. Mas não, tomou
direção a pé, até a cidade proibida dos orientais, não muito longe da estação
de trens, o itinerário se projetou no óculo que lhe cobria os olhos, a
inteligência artificial deu-lhe o informe. Dava-lhe também conta, dos possíveis
perigos, que estavam nas esquinas do bairro proibidos, em relação aos não
orientais. Ernesto Cacinda não se curvou para a realidade, que o circundava,
pois o sentido e o sentimento de medo, para o militar de alta patente, era algo
que muito renunciava.
O
homem retinto, deixou a estação de trens, viu e ignorou completamente um
discreto veículo oficial do serviço de segurança e dentro dele, os dois agentes
da lei, um homem e uma mulher, como os seus funcionais uniformes de tecido
digital. Para o major-general eles simplesmente não existiam. Os dois agentes
experientes, o reconheceram de imediato, as lentes de contato nos olhos dos
oficiais e as câmeras corporais, fizeram a leitura facial. O comando central
informou que ele era um militar de alta patente em trânsito, mas não informaram
o nome e a patente. E veio rápido, a ordem do alto comando do aparato de
segurança, deram a ordem de não importunarem o major-general Ernesto Cacinda e
assim eles o fizeram. O nome do lendário militar, fez os dois agentes de
segurança se fecharem entre si e olharem para o lado.
Ernesto Cacinda não andou muito, até se deparar com um maltrapilho oriental,
usava uma puída manta de cor laranja, carregava em uma mão um cajado de madeira
Paolo Santo e na outra, uma tigela de bronze, o homem era um monge tibetano. O
monge, de idade indeterminada, estava sentado no chão a poucos metros da
entrada da estação de trens. Ernesto parou na frente do monge e os dois se
entreolharam, as lentes de contato nos olhos do major-general, escaneou a face
do monge e lhe foi informado que era o tenente Huang Shikai. Era uma das suas
células dormente, àquela hora era um morador do bairro proibido e com duas
filhas escravizadas, pela gangue Dragões verdes, Cacinda sorriu para o monge
impassível. O monge, em voto de silêncio nada disse, só ergueu o pequeno pote
de bronze e as lentes de contato escaneou o pequeno QR code, que estava na
borda superior do pote. E usando a inteligência artificial, o major-general
depositou uma considerável soma em dinheiro digital, em uma conta bancária. O
monge levantou sem nada dizer, Ernesto seguiu o homem, também sem nada dizer,
partiram para o bairro proibido dos orientais. Lugar onde os não orientais não
tinham permissão para pôr os pés, somente poucas pessoas tinham a permissão de
ali frequentarem.
***
Ernesto Cacinda, o major-general, adentrou no bairro proibido para os não
orientais. Não passou despercebido, para o comandante de campo, as diversas
pichações digitais, espalhadas pelos muros e fachadas das decadentes
residências e casas de comércio. O major-general, não precisou da IA para
traduzir as diversas línguas ali escritas. Eram uma miscelânea de inscrições,
lemas, ditames e emblemas das organizações Yakuza, Tríades, Dragões verdes,
Born to Kill a BTK e os Bōsōzoku. Ernesto as conhecia e entendia bem o que
diziam. Negros olhos rasgados e irrequietos olhavam em direção de Ernesto
Cacinda, se seguiram por sussurros em vários idiomas e dialetos orientais.
Alguns dos habitantes da localidade, sabiam quem era aquele homem de cor de
ébano, que passava pela rua central e plena luz do dia, outros simplesmente
intuíram. O monge à frente do major-general andava como se fosse um soldado de
patente inferior que conduzia o seu superior em uma terra desconhecida.
A
certa altura o major-general, se desvencilhou do monge, Ernesto Cacinda seguiu
em frente, deu poucos passos, em meio a olhares estupefatos e parou na frente
de uma casa de ópio. Venceu uma pequena escadaria de madeira e no alto da
escadaria um homem oriental de meia idade o esperava. Vestido com um elegante
sobretudo verde turquesa, usando coturnos, os olhos rasgados e misteriosos
encararam Ernesto com a docilidade de quem encara um querido e aclamado
superior hierárquico. Atrás do oriental, duas jovens mulheres orientais, usando
diáfanos trajes sumários, elas de cabeça baixa e feições tristes, choravam em
desespero diante de um destino nebuloso.
Ernesto Cacinda, galgou os degraus que faltavam para chegar ao platô, o
silêncio tomou conta do lugar, o major-general levou a mão até o antebraço e
expôs uma manopla de cristal líquido. Ernesto apertou dois comandos e as roupas
digitais, das duas tímidas jovens escravizadas mudaram, os vulgares trajes
sumários desapareceram. Simultaneamente, deram lugar a delicados e sofisticados
Hanfu, quimonos chineses. E as maquiagens ordinárias deram lugar a uma
sofisticada maquiagem, os alourados longos, lisos e maltratados cabelos soltos,
foram substituídos por belos cabelos negros emoldurados em tradicionais coques.
E por fim os pês nus, surgiram tamancos de madeira Paolo Santo.
As
duas jovens, assustadas, se entreolharam e passaram correndo e em desespero ao
lado de Ernesto Cacinda, que não tirou os olhos do agente dos Dragões verdes.
Um avatar se desvencilhou do major-general e foi de encontro com o monge, não
muito longe dali.
— A
sua missão acabou e a vossa vida lhe pertence tenente Huang Shikai! — Disse o
espectro opaco e uniformizado do major-general e que evanesceu no ar.
Simultaneamente na entrada do operário, o agente do Dragões verdes tirou um
cachimbo de bambu do sobretudo e sorriu, pois já tinha visto a mesma cena
antes. Viu militares e variados agentes da lei e do aparato repressivo, ao
caírem em desgraças, a lhe baterem à porta, em busca de alívio para as dores
nos corpos debilitados e as almas torturadas. No alto do céu azul sem nuvens,
flanava um portentoso zepelim, era a belonave Mare Crisium, que lentamente
cruzava o céu. E uma revoada de agourentas aves Mores, perderam de distantes
nuvens brancas, grasnaram alto e enegreceram o
céu.
O
major-general Ernesto Cacinda, fechou-se em si e seguiu os rastros do agente
dos Dragões verdes, adentraram o opiário sem medos ou
desesperos.
Fragmento
do livro Opera mundi, de Clarisse Cristal, poetisa, contista, cronista,
novelista e bibliotecária em Balneário Camboriú, Santa Catarina.
Argumento
de Samuel da Costa, poetisa, contista, cronista e novelista em Itajaí, Santa
Catarina.
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