Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)
Os outros são um
detalhe alheio,
A nós mesmos,
As nossas próprias
existências liquefeitas...
Parada
diante do estúdio de tatuagens, Clarisse Cristal tomou fôlego por segundos, e
por fim decidiu entrar no recinto. Medos, dúvidas e muitos receios agora eram
coisas de um passado remoto, que se desvanecia no ar, com o clarão da luz do
dia. O eviterno temor de sentir as dores e as subsequentes marcas indeléveis no
corpo e na alma, já não existiam mais.
— Tu
vais ficar aí? Parada por muito tempo guria? Espantando a minha querida e fiel
clientela! — A voz fluiu melodiosa pelo ar, apesar do tom grave, das palavras
proferidas, que saíram do interior do estúdio, atingiram em cheio a
bibliotecária.
Clarisse
Cristal, adentrou e sentiu uma estranha sensação de nostalgia, a percorrer-lhe
o corpo por inteiro, ao ser tragada pela escuridão da antessala do estúdio de
tatuagens. Ela esqueceu totalmente do celular, de último modelo, que a mãe lhe
deu de presente no último aniversário, há um tempo, não muito distante. O
aparelho moderno, jazia eternamente em mil nano-pedaços, no meio de uma rua
movimentada qualquer. A culpa, de fato, não foi da jovem bibliotecária, pois o
aparelho vibrou e depois tocou alto, tocou alto e depois mais alto ainda, assim
que ela saiu da livraria e editora, em que trabalhava. Clarisse Cristal, logo
imaginou a cena toda se desenrolando, Anna Victória ligando, em prantos para
mamãezinha querida dela, em seguida uma conversa breve, chorosa, ríspida e bem
rápida. E esta última ligando para a mãe de Clarisse, que liga furiosa para a
filhotinha rebelde e malcriada. A moça então põe fim ao melodrama bufo,
espatifando o moderno aparelho no meio da rua apoplética, com muita força, sem
sequer atendê-lo. O círculo tragicômico por fim estava mais que quebrado,
quando o aparelho encontrou o seu destino final.
O
estúdio de tatuagens era amplo e moderno, com vários espaços, separados por
biombos decorativos orientais, eram diversos estúdios menores dentro de um
grande estúdio. Clarisse Cristal logo percebeu ao fundo, no ambiente maior, uma
grande lousa digital na lateral esquerda do amplo estúdio, vários cavaletes, de
muitos tamanhos espalhados aqui e ali. Bancadas de vidro temperado, dispondo de
notebooks de última geração, pen-drives variados, cartões de memória, tabletes
todos de vários modelos e tamanhos, máquinas fotográficas digitais e analógicas
de vários preços, modelos e marcas. Vários estojos de lápis aquarelável
supracolor, muitas latas de sprays de tintas, também de várias cores, tamanhos,
marcas e preços. Por fim vários quadros inacabados, em vários movimentos
artísticos e de escolas de belas artes de várias épocas mundo afora. Era uma
bagunça muito bem-organizada, ali funcionava uma estranha mistura de escola de
belas artes com estúdio de tatuagens, deduziu Clarisse.
—
Então! O que te traz, ao meu humilde comércio? — Foi a dona do lugar surgindo
do nada, ela fez a pergunta de maneira afável, como se fosse uma bem treinada
vendedora de loja varejo de um distante bairro popular.
Clarisse
deu uma boa olhada na moça, já tinha visto pessoas assim em revistas, filmes,
reportagens na TV, em livros ou mesmo vagando perdidamente pelas ruas. A pessoa
era uma figura andrógina e estava afrontosamente de pé bem diante dela. Alta,
pele amendoada, com os olhos castanhos brilhantes. Longos cabelos lisos e
negros reluzentes, usava uma camisa física preta sem estampa. Esmalte
cintilante negro despontavam nas unhas curtas e bem-feitas, exclusivas calça
larga e tênis personalizado de esqueitista profissional e na casa dos vinte
anos de idade. Mas, a voz melodiosa e cheia de vida, a pele sedosa e o sorriso
delicado denunciavam que era uma mulher em definitivo.
—
Quero fazer uns riscos e furar as minhas orelhas também, minha querida e mais
nada! Um tanto óbvio! Tu aceitas cartão? — Clarisse riu sozinha, com a própria
tentativa patética de ser engraçada e espontânea. — O que são os outros? Nada
mais um mero detalhe, alheio a nós mesmos, as nossas existências liquefeitas! —
Clarisse Cristal, leu com um tom de voz alta e de forma imponente, a frase que
estava pintada na parede do lado direito, cada palavra estava escrita com cores
diferente e com fontes manuscritas diferentes. — Coisa de marqueteiro medíocre,
metido a poeta frustrado é o que me parece! Qual é o teu nome afinal de contas?
—
Podes me chamar de Cris...
— Já
sei, sua humilde criada, pronta para lhe servir!
— Mais
ou menos isto, começa a falar logo menina, seja mais específica. O que queres
de facto? O que tu pensas em fazer, neste corpinho lindo de fada alquebrada que
Deus te deu?
—
Quero fazer uma tatuagem tribal de dragão, no meu braço direito e por um
piercing na orelha e outro no umbigo!
Cris
deu uma risada teatral e longa, Clarisse também seguiu a tatuadora. E foi assim
por quase um minuto. Cris foi até a porta da loja e colocou o aviso de fechado,
foi até um telefone, instalado no balcão de atendimento e foi fazer uma chamada
rápida. Cris desligou o telefone celular e o tablet, virou para Clarisse
Cristal e apontou para um amplo biombo bambu, era o ateliê particular da
tatuadora. Clarisse sorriu, estava encantada com o fato de ter enfim um momento
só seu, um momento recoberto de mistério e caótico, bem longe da segurança
rotineira da torre de marfim.
Samuel
da Costa é contista e funcionário público em Itajaí, Santa Catarina.
Contato:
samueldeitajai@yahoo.com.br
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