Por Clarisse Cristal (Baleário Camboriú, SC)
Eu sempre pensei que o maior desafio na
vida dos filhos é sobreviver aos seus pais, eu sempre tive este péssimo hábito,
tentar sobreviver aos meus pais. Estas duas criaturas, às avessas, o côncavo e
o convexo, a casa e rua e o dia e a noite, sim são clichês e eu não me
envergonho disto.
Vamos ao primeiro vértice, o meu jovem
pai, entediado economista, indo para a meia idade e inventou de fazermos
aventuras gastronômicas. Não seria um problema muito grande, já que a cidade em
que vivemos é pequena e bem servida de várias vias gastronômicas. Coisas de uma
cidade que é um balneário turístico e uma cidade que se resume em duas avenidas
movimentadas.
Então estamos bem servidos, do que vai
de simples quiosques à beira mar, passando por barracas de cachorro-quente e
indo parar em caros restaurantes com gastronomia internacional. O que seria uma
diversão em família, virou um grande pesadelo.
Mas antes vamos ao outro vértice, a minha
mãe, dona de casa de profissão, já estava na meia idade, e também entediada.
Ocupada com futilidades variadas, que iam de cursos de desenho, fotografias,
cerâmica e por aí a fora, eram cursos que não passavam da segunda ou terceira
aula. Também tem as academias, as aulas de meditação, salões de beleza e
compras e mais compras. As compras da minha mãe iam de barracas no meio da rua,
de vendedores ambulantes, caras lojas de decoração indo parar em bazares variados.
A minha mãe nunca ia aos apinhados shoppings, a malta simplesmente era evitada.
Voltando as aventuras gastronômicas, esse
foi o ponto de discórdia entre o casal, o homem negro, sóbrio, culto,
tecnocrata e racional a quem chamo de pai e a minha querida mãe, mulher branca
e loura, fútil, avessa a realidade e multidões. O meu pai queria sair da cidade
e se aventurar nas pequenas cidades do entorno. Restaurantes à beira da
estrada, perdidos estabelecimentos em desconhecidas cidades pequenas, que ninguém
não sabia sequer que existiam.
Louco, maluco, imbecil era a minha mãe aos
gritos conversando com o meu pai. Nessa hora que eu bem queria viver dentro de uma
bolha de sabão, para ver tudo fora de foco, para depois me espatifar no chão
porque a bolha estourou. Foi justamente na primeira aventura, a nossa digressão
aventureira, rumo ao quase desconhecido. Para surpresa de zero pessoa, o meu
velho tinha planejado para onde iríamos, os custos com o traslado, ida e volta
e escolhido os restaurantes, sim dois restaurantes.
Da nossa ida até a cidade ao lado, a
cidade portuária, ainda bem que tenho um bom amigo, o Greg Sanders, vamos
chamá-lo assim pois o meu bom amigo de curso de inglês já passa vergonha demais
com o nome de batismo e mais vergonha ainda com o nome de gótico que ele mesmo
escolheu. Pois bem o Greg me emprestou uma velha tecnologia, um tal de walkman,
sei lá onde ele encontrou o treco, mas eu pude colocar os fones no ouvido e a
tal fita K7 no aparelho antigo pra ouvir música. Não vou aqui decorrer como
funciona o treco ou mesmo descrevê-lo, pois bem fones nas orelhas e The cure
foi a escolha óbvia para ouvir no fatídico passeio.
O aparelho antigo me salvou de ouvir as
discussões dos meus pais, naqueles vinte minutos de viagem. Uma vez encapsulada
na minha bolha de sabão nada mais importava, nem a partida, a viagem e o
destino. Mas tivemos uma partida, uma trajetória e uma chegada, disso o
walkman, e a fita K7 e o The cure não me salvaram e nem poderiam, pois poucas
coisas me salvam dos meus pais.
Sim, enfrentamos uma rodovia nada
congestionada e chegamos rápido no que seria um atacadão, uma mistura de
supermercado com atacado, um tal de atacarejo, mais um nome ridículo, na minha
lista de nomes horríveis. E eu pensei no que estava me esperando naquele lugar
com olores de sabão, sabão em pó e seus derivados. Evitei olhar para a minha
mãe e perdi a oportunidade de vê-la feliz da vida. Uma oportunidade para ela,
só vi depois no olhar e o sorriso leve daquela mulher.
Sim, o meu velho pai nos levou para
almoçar em um restaurante japonês, em um local nada convencional. E lá estava
ele, o dono e gerente do espaço, o lugar com direito a leques orientais
pendurados na parede, o senhor idoso que misturava peças de roupas orientais e
ocidentais. Pelo sorriso do homem oriental logo vi que ele não falava o nosso
idioma, um possível refugiado da terra do sol nascente. Possivelmente ele se
casou com uma nipo-brasileira e vi na minha mente uma longa prole de nipo-filhos
e filhas brazucas.
Mas tudo que começa ruim, tem uma grande
possibilidade de terminar em desastre. E assim foi, um bandejão, um
self-service, e em um misto de cultura japonesa com a cultura brasileira, para
diversão da minha mãe e horror do meu pai. Explico, a minha mãe filha da elite
praiana, para ela era pura diversão estar em um ambiente proletário e o meu pai
filho da periferia reviu os anos ruins dos velhos tempos. Mas o meu pai, é o
meu pai e deu a volta por cima e disse: — Nada é tão ruim que não posso
melhorar, daqui a pouco vamos ao outro restaurante!
Pois bem, depois de misturar feijoada com
sashimi e saquê com cerveja em meio a barulho de caixas batendo no chão, um
gerente raivoso ralhando com seus subordinados, crianças correndo e suas mães
correndo atrás. Meu pai depois de uma dose de saquê e a minha mãe depois de uns
goles de cerveja já eram outras pessoas, muitos felizes por sinal.
Para não me alongar muito a minha
digressão, que já está longa e pedante, a ida a outro restaurante japonês não
muito longe do primeiro, foi uma experiência um pouco melhor. Debandando do
atacarejo, percorremos poucos metros e lá estava outro restaurante japonês,
confesso que o bairro proletário com seu comércio variado seduziu a minha mãe,
mas isto fica para depois. Ao adentrarmos, saltou os olhos a decoração
tipicamente japonesa do lugar. Dos quadros de famosas gueixas e atrizes do
teatro japonês de um lado e na outra ponta na parede um enorme quadro pintado a
tinta a óleo de uma gueixa samurai.
Notamos que o restaurante estava vazio, e
demos de cara com uma adolescente, uma versão minha, ela despojada nas mãos seu
telefone móvel, mais conhecido como telefone celular, ela jogada no assento de
uma mesa, em uma análise fria minha, ela era a filha dos donos do restaurante.
A jovem se levantou, ela um tanto contrariada, falou que o restaurante abriria
dali a minutos. Decidimos ficar no deck do restaurante, para esperar o lugar
servir o almoço, e assim foi, nós três mudos, calados e em silêncio tentando
sobreviver a nós mesmos. Adentramos no restaurante, a dona do lugar nos atendeu
com um belo sorriso e pedidos de desculpas, ela uma austera mulher negra. Assim
nós, terminamos a primeira e grande aventura gastronômica pelo desconhecido
regados a peixes crus e saladas de não sei o que.
Clarisse Cristal,
bibliotecária, poetisa e cronista em Balneário de Camboriú, Santa
Catarina.
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