Por Dias Campos (São Paulo, SP)
Cleber morava sozinho em uma quitinete no centro da cidade. E se quisessem definir em que se resumia a sua vida nesses últimos dez meses, acertariam se escolhessem a palavra rotina.
O que mais o entediava era
ter que lavar a própria louça. – menos mal que tinha o que lavar.
É fato que essa mesmice
vinha sendo quebrada há alguns dias pela visita das conhecidas e teimosas
formiguinhas de cozinha.
Em um vaivém disciplinado, esses
insetos atravessavam toda a extensão da pia, alcançavam uma lixeira de
plástico, escalavam-na confiantes, entregavam-se à comilança, e retornavam para
o orifício de onde saíram, felizes e bem nutridas.
No entanto, essas incursões,
porque regulares, também já começavam a cansar. E o ramerrão voltou.
Certa noite, quando Cleber lavava,
com pressa, o último copo de requeijão – a novela estava prestes a começar –, um
pouco de espuma desgarrou-se da esponja e foi cair sobre a fila de formigas,
matando algumas e interrompendo o fluxo. É claro que houve um baita tumulto
entre as comensais, incluindo as que ainda não sabiam do acontecido, visto que
prosseguiam com a marcha, encostavam suas antenas nas bolhas de detergente, e retornavam
de ré, esfregando-as instintivamente no tampo, numa tentativa desesperada de se
limparem. Por força disso, aglomerações começaram a se formar em ambos os lados
da montanha branca.
Cleber sorriu...
Não que essa diversão fosse
entretê-lo por muito tempo. Sabia que dali a alguns dias voltaria ao feijão-com-arroz.
Mas se o acaso resolvera intervir, que aproveitasse ao máximo!
Daí que bastava começar a
lavar os pratos para que o sarcástico prazer ressurgisse. E ele pingava sobre
as vítimas as borbulhas letais.
Às vezes, Cleber não se
contentava com um único ataque. E gotejava a morte em pontos diferentes das
carreiras, distribuindo o pânico entre as sobreviventes e deliciando-se com o
corre-corre.
Outras vezes, ele sequer
esperava muito tempo para pôr fim àquela correria. Enchia de água o copo que acabara
de ensaboar e jogava o conteúdo na parede, de modo que o líquido precipitava-se
sobre as colunas feito enxurrada, levando para o ralo um grande número de cadáveres.
Esse divertimento perduraria
por um tempo razoável. E Cleber até se espantaria por não se haver enjoado mais
cedo.
Mas quando o deleite acabou,
um hiato ficava. Era preciso, pois, preenchê-lo o mais rápido possível, haja
vista que, pelo que pressentia, os nós do quotidiano retornariam ainda mais apertados!
Foi quando Cleber ouviu a
gata da vizinha...
Por não ter sido castrada, o
cio desse estupor volta e meia o incomodava; sobretudo quando ela teimava em
miar madrugada adentro. E como Cleber tinha sono leve, a libido desafinada
impunha aos seus pobres ouvidos uma tortura sem fim.
Ora, se acabar com simples
formigas tinha sido tão eficaz no combate à sua monotonia, imagine-se o bem que
experimentaria se eliminasse aquele ronronar ambulante?
Neste instante, a campainha
soou no andar de cima. Isso, por si só, pouco ou nada o incomodaria, não fosse
o fato de que o morador daquela unidade possuía dois poodles, que, como é
notório, desandam a latir, aguda e irrefreavelmente, toda vez que alguém aperta
o malfadado botão.
O sorriso de Cleber
aumentava... Primeiro, ele acabaria com a caçadora de ratos. E os efeitos desse
sumiço proporcionariam um bom tempo sem tédio. Após, quando o aborrecimento
voltasse, ele desapareceria com os sacos de pulgas. E o consequente alvoroço
garantiria um período maior de distração.
E se depois desse extermínio
ele voltasse a ficar enfastiado, quem sabe não seria o caso de estender aquela prática
para toda a vizinhança, para todo o bairro, para toda a cidade? Afinal, quanto
mais comoção causasse, menos entediante seria a sua vida.
Cleber começou a maquinar o
gaticídio. Assim como ele, sua vizinha saía para trabalhar um pouco antes da
aurora despontar e só retornava tarde da noite. Ao que supunha, ela deixava
água e comida suficientes para que o felino aguentasse o dia todo. Mas e se uma
“alma caridosa” oferecesse ao bichano algo muito mais apetitoso do que aquela
velha ração a que estava acostumado? De certo seria a sua última refeição! O
que precisaria fazer, portanto, seria comprar algum tipo de guloseima,
temperá-la com um pouco de veneno, torcer para que o apetite da condenada fosse
muito maior do que o seu olfato, e introduzir o presente de grego através do
vão da porta, que, por óbvio, só era tapado por uma cobrinha de pano quando a locatária
estava em casa.
Mas, e se a sortuda já
tivesse comido o suficiente? e se ela fosse tão acostumada àquela dieta que não
admitisse nenhuma novidade? e, pior, se ela cheirasse o petisco, mas dele se
afastasse porque percebeu a toxina?
Bem, concluía Cleber, mesmo
que a isca não a atraísse, o burburinho seria instalado, e isso já lhe seria
benéfico.
Pois que saísse, comprasse o
melhor dos quitutes, e aguardasse a segunda-feira, quando, então, colocaria em
prática o seu plano.
Mas bastou Cleber abrir a
porta para que estacasse diante do cano de um revólver calibre 38!
Em atitude de puro reflexo,
ele ainda tentou fechá-la!...
Mas o sujeito era
corpulento, e não teve dificuldades em empurrá-lo para trás.
O estranho entrou, mandou
que sentasse, advertiu-o de que ficasse em silêncio, e assobiou.
Em seguida, sua filha, uma
jovem de dezesseis anos, entrava bastante encabulada. E não vinha só, pois em cada
braço havia um bebê, gêmeos univitelinos a que dera luz há pouco mais de um
mês.
Cleber reconheceu-a no ato!
E relembrando o que fizeram, deduziu quem era o pai daqueles anjinhos
cabeludos.
Trancada a porta, e o
“gentil” senhor foi muito persuasivo em sua explanação – pouco lhe importava que
casassem, contanto que morassem sob o mesmo teto, a fim de que o sedutor
assumisse as suas responsabilidades, provendo o sustento da família e a
educação dos filhos.
O rapaz não teve
escapatória; até porque, o convincente avô foi bem claro ao afirmar que
visitaria filha e netos semanalmente, e armado.
Nem se precisaria dizer que a
vida de Cleber deixava de ser enfadonha, rotineira... E a ficha caiu no exato
momento em que os bebês abriram o berreiro – um por causa da fome, e o outro
porque a fralda ficou cheia.
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