sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

DÓRIAN E LUEN: A PROCISSÃO DOS NEGROS E A LITANIA DAS POBRES

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

 

Meu senhor, vai muito bem!

A colheita foi boa! Este ano... Este século…

Para o meu senhor, tudo vai bem!

Mas alguns negros fugiram!

Já outras negras pariram,

Muitos outros negros!

Eles não estão mais aqui!

Preferiram ficar livres!

Dispersos por aí...

Em qualquer lugar.

 

 

            Os sabores de sons e olores, chegavam a Adérito Muteia como se fosse uma sinfonia eufônica e abstrata, o professor ficou apreensivo, ele queria abrir as cortinas e apreciar a paisagem. Mas não o fez, já era o bastante ver seus compatriotas, naquele vagão, os coloridos falares de línguas afro-asiáticas, línguas khoisan, línguas nigero-congolesas, línguas nilo-saarianas e dialetos afins. Os multicoloridos, dos trajes e os semblantes alegres e taciturnos, se misturaram entre os homens, as mulheres e de crianças de várias, etnias, idades e nacionalidades.

            Adérito Muteia, estava em um vagão de primeira classe e uma fração da elite, do continente negro, estava ali, estavam em fuga. O professor Muteia, estava desconfortável com a situação, pois já era difícil, ter que emigrar às pressas, não que o professor africano, não tivesse viajado para o exterior antes. As lembranças, de ter ido ao leste da Europa, Ásia e Oriente Médio, para passar por cursos e dar aulas, daquela fuga era uma outra realidade.

        Agora, sentado em um assento reservado para ele, na frente do professor Adérito Muteia, um elemento atípico, um homem tuaregue, um habitante do ocre do grande deserto do norte da África. Muteia imaginou aquele homem misterioso, em uma caravana, montado em um camelo meharis a cruzar o Saara, Muteia imaginou ele sendo no chão areado, em um círculo com os seus irmãos em um conclave ao cai da noite.    

            — Este é um vagão exclusivo Syid! — Falou sonolento Adérito Muteia.

           — Estou onde devo estar, professor Muteia! — Respondeu o homem do deserto!

            Os dois se entreolharam profundamente e sorriram amigavelmente e uma suntuosa comissária do trem, elegantemente vestida, se aproximou, empurrando um carrinho. A jovem parou e abriu os suportes embutidos das duas poltronas, formando uma mesa entre os dois passageiros. A comissária dispôs um aparelho austríaco de chá e em silêncio, ela serviu os dois homens. A mulher de aparência eslava se retirou sem nada dizer.   

            — Volto a dizer que...

            — Adib, o senhor pode me chamar assim Syid! — Respondeu o homem do deserto e continuou. — Mas vamos ficar sozinhos!

            O trem parou, o tempo parou e o vagão ficou na semi escuridão e vazio. Adérito não ficou surpreso ou abismado, pois já esperava por algo semelhante.

            — Li o ensaio do emérito professor, deveras bom e assertivo e o que salta os olhos é ver um linguista do campo da linguística aplicada, se ater aos aspectos da ciência quântica. Sim, o senhor uniu bem os campos das linguísticas diacrônicas e a sincrônicas, mas sem ofensas ao mestre, falta-lhe uma boa parceria com um físico teórico. — Falou o homem do deserto.    

            — Muito me espanta, saber que alguém leu o meu singelo ensaio, senhor Adib! É só um esboço somente e o meu campo de estudos são as belas-letras, belas-artes, sons, imagens e códigos afins. Números e fórmulas matemáticas não são mesmo o meu campo de estudos. — Se defendeu Adérito Muteia.  

            — Sim, um ensaio promissor, acreditar que a realidade pode ser moldada e o tecido do espaço e tempo rompidos. Claro que o nobre professor doutor, se ateve somente ao universo da terra dos sonhos Lovecraftianos e as teses Freudianas do universo dos sonhos, no simbolismo e surrealismo literários e pictóricos. — Ponderou o homem do deserto.  

            Muteia se mudou para o assento ao lado e abriu as cortinas e lá fora viu uma legião de esquálidos e miseráveis, os rotos marchavam lentamente, no céu o astro rei reinava absoluto castigando os desalentados com ondas de calor. Rostos de ébano que lamuriavam, uma triste litania enquanto soldados armados os vigiavam com olhos atentos. O mal-estar tomou conta de Adérito Muteia.    

Dórian, sentado na confortável poltrona, olhou para Luen, após ler o manuscrito de Luen, a esposa do professor de comunicação comparada, olhou de novo para o manuscrito de Luen. A primeira secretária da câmara alta, estava parada e de pé, na porta do ateliê de Dórian, rindo por dentro e com cigarro na boca.  


Contato: samueldeitajai@yahoo.com.br

 

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