Por Clarisse Cristal (Balneário Camboriú, SC) e Samuel da Costa (Itajaí, SC)
Enquanto o trem balístico, magnético e monotrilho,
se locomovia a toda a velocidade, o veículo de transporte de massa, que ia do
leste para o oeste, de um oceano ao outro, de litoral para o outro. Sons que
vinham lá de fora, sons estridentes que não deveriam existir, mas simplesmente
existiam. E sons nítidos, que chegavam nos ouvidos de Ernesto
Cacinda. Eram ruídos sutis, inaudíveis para a maioria das pessoas, eram sons de
uma maquinaria pesada, em movimento veloz e voraz, sons que cresciam, se
apaziguavam e cresciam de novo. E no silêncio total, na confortável cabine de
luxo, onde estava o emérito professor pesquisador Ernesto Cacinda, tinha uma
difícil tarefa a cumprir e o faria e ele só não sabia como o fazer. Com as mãos
paradas no teclado da antiga máquina de escrever portátil. Mas a ordem chegou
de cima e não cabia a Ernesto Cacinda contestar.
E a mente fria e funcional do professor
e pesquisador Ernesto Cacinda, o transportou para um tempo longínquo, uma outra
viagem de trem, onde ele se reencontrou com os amados pais, Selina Macome e
Adalberto Cacinda. Estavam eles a família modelo e funcional, estavam cruzando
o continente negro, pela via férrea do oceano Indico para oceano Atlântico, que
integrava a dita nova rota da seda transcontinental. E o pequeno Ernesto
Cacinda e a jovem intelectual Selina Macome, estavam ansiosos por verem pela
primeira vez, os animais locais. Mesmo ambos sendo nativos do continente negro,
ambos não conheciam a fauna local do continente, contrariando o senso comum.
Eles ansiavam em conhecerem a savana, pela fauna selvagem do interior do grande
continente negro. Ansiavam em conhecer os seus portentosos elefantes, os
intimidadores rinocerontes, os magnificentes hipopótamos, as exuberantes e
graciosas girafas, as elegantes gazelas, as graciosas impalas, as manadas
colossais de zebras, os perigosos e ameaçadores javalis, os ardilosos e
espertos mangustos, as misteriosas garças negras e cegonhas, os exóticos
marabus e suricatos, os famintos e mortais leopardos, leões, guepardos,
chacais, mabecos, hienas, rateis, os doces texugos, porcos espinho, os funestos
e astutos abutres, crocodilos, os grandiosos búfalos, avestruzes, gorilas e
babuínos.
Apreciaram as exuberantes paisagens do
interior do continente negro, mas que saltou os olhos e mentes da mãe e do
filho, de fato em cada parada, em cada estação e posto de abastecimento, foram
os oceanos de novos falares e indumentárias. E o que chamou as atenções da mãe
Selina Macome e do filho Ernesto Cacinda, eram os errantes deslocados de
guerras, golpes de estado e conflitos étnicos e de grandes empreendimentos dos
países coloniais. Eram falares hauçás, iorubás, oromos, amharas, ijós, somalis,
fulas, burquinas e xonas, era do que Ernesto Cacinda se lembrava de visto
naquela viagem em especial.
E uma estranha dinâmica era sempre a
mesma, mãe e filho mantinham uma distância segura e o então tenente-coronel da
contrainteligência militar Adalberto Cacinda, trocava olhares com o elemento, o
militar se aproximava do elemento. O pai de Ernesto, falava algo no idioma do
elemento, risos discretos entre ambos, às vezes Selina, a fotógrafa da família,
era chamada para tirar algumas fotografias do elemento com Adalberto Cacinda.
Eram pequenas e grandes discretas
viagens familiares no continente negro, em pequenas e grandes embarcações,
aviões de carreira, pequenos aviões, de trens, de ônibus, veículos oficias e
carros de passeio, a trabalho ou de turismos. A perfeita família Macome
Cacinda, era unida, ora Adalberto Cacinda acompanhava a esposa Selina Macome,
em suas pesquisas de campo, palestras e dissertações. E a esposa Selina Macome,
acompanhava o esposo Adalberto Cacinda, então adido militar, nas suas viagens
diplomáticas e sempre levando o então Adalberto Cacinda, ainda criança. E a
dinâmica, era sempre a mesma, eram as trocas de olhares, entre Adalberto
Cacinda e gentes aleatórias, depois o militar se aproximava discretamente. Para
depois terem os breves convescotes na língua do elemento desconhecido e era
sempre em público, para depois se desvencilharem, para nunca mais, terem
contatos. A mãe de Ernesto Cacinda, nunca fazia perguntas e quando o filho
pequeno fazia uma pergunta inocente, logo era obrigado a se calar, até as perguntas
simplesmente pararem. Até as viagens pararem e até a família partir para o
exílio autoimposto.
De volta ao tempo presente, o professor
e pesquisar Ernesto Cacinda, olhava perdidamente para a máquina de escrever,
até alguém bater à porta, uma voz feminina fala na língua dos Tutsis, coisa não
usual, disse bom dia e que tinha uma mensagem para professor Ernesto Cacinda. O
usual, àquela situação, seria apertar uma companhia, falar alguma língua
indo-europeia. A porta do camarote se abriu e uma jovem comissária adentrou e
ela com sorriso simpático, trazendo o café da tarde, em sofisticado carrinho. A
comissária, tirou a tampa da bandeja de prata e ali havia somente um brevíssimo
bilhete manuscrito, de forma cursiva elegantemente feminina, que assim dizia: Lesoto e
a cidade das nuvens! Então a elegante e graciosa
comissária, mais uma vez ela quebrando o rijo protocolo, disse adeus na língua
dos Tutsis e foi embora, desapareceu tão rápido como surgiu.
Enquanto o trem balístico, magnético e monotrilho,
de forma absurda, avançava em altíssima velocidade,
percorria a imensidão o deserto do Saara. E os dedos do professor e pesquisador
Ernesto Cacinda, dedilhavam vorazes e velozes, a uma velocidade inumana, no
teclado da antiga e obsoleta máquina de escrever portátil. Em uma nevoenta
realidade surgiu, em meio às densas, alabastrinas e místicas neblinas
desafiadoras. Surgiu o mítico sonhador Lesoto Maombe, ele triunfante e trajado com o seu portentoso negro uniforme
de um guarda pretoriano, de comandante de campo, adentrava na terra dos sonhos.
Como Lesoto Maombe, tendo a sua frente, o mussulinoso e lendário portal
de entrada da Cidade das nuvens. E marcha o comandante de campo, passa pelas
duas sentinelas, ladeadas nas extremidades opostas do portal. Elas também
trajadas, com uniformes pretorianos, eram membros da guarda pessoal de Calibor.
Sonhador Lesoto Maombe, notou que as duas
armas de guerra estavam ajustadas no modelo de combate e não em alerta, como
manda o rígido protocolo.
Fragmento
do livro Opera mundi, texto de Clarisse Cristal, poetisa, contista, cronista,
novelista e bibliotecária de Balneário Camboriú, Santa Catarina.
Argumento
de Samuel da Costa, poetisa, contista, cronista e novelista em Itajaí, Santa
Catarina.
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