sábado, 1 de março de 2025

PARA O TÉDIO, O TREINO

 Por Dias Campos (São Paulo, SP)

 

             Às vezes me pergunto por que tantas pessoas se entregam ao tédio?... Como se o dia não lhes oferecesse diversas oportunidades para reconhecerem o quanto a vida é pulsante.

Pois demonstrarei que em um simples passeio, mesmo que curto, muitos eventos, bons e ruins, estão aí, pululando, ávidos por serem percebidos. Para isto, contudo, será preciso que mudemos o nosso hábito, de ver para enxergar.

Neste sentido, por levar uma vida sedentária, o meu médico determinou que caminhasse pelo menos uma vez por dia. Posteriormente, quando já tivesse adquirido certa resistência, deveria escolher algum esporte; e que, por óbvio, não poderia ser o levantamento de garfo.

             Como não quero pegar o carro para ir ao parque, o que implicaria perda de tempo e gasto de combustível, escolhi o percurso de um quarteirão ao redor do meu prédio – O quanto deveria andar não foi especificado pelo referido profissional.

            Quando comecei este novo ritual, tomando, como sempre, os cuidados que a metrópole impõe – olhar para frente, prevenindo-me da ação de punguistas, e, para baixo, a fim de não pisar em “caco de vidro” de cachorro –, notei um ipê rosa que estava recamado de pompons.

Esse fato, a floração, sempre aconteceu. No entanto, foram os meus olhos que, mais atentos que os de costume, passaram a enxergá-la, e a apreciá-la como bem merecia.

Senti, então, que começava bem o meu dia. E prossegui redobrando a atenção.

Nem andara dez metros e a pontaria de uma pomba zombeteira revelou-se muito bem alinhada. Daí que a aba do boné da jovem que caminhava à minha frente mudou de cor, o que a obrigou a aposentá-lo na lixeira mais próxima. – Nem se precisaria dizer que ela, além de praguejar em alto e bom som, fez questão de desejar vida longa àquela ave agourenta.

Ao alcançar a esquina, topei com uma ambulante que parecia vender quitutes deliciosos.

Muito embora já tivesse tomado o café da manhã, não resisti à atração que um bolo de cenoura com cobertura de chocolate exercia sobre o meu pobre espírito. E me deleitei com aquela iguaria.

Depois de virar na segunda esquina, os meus olhos confirmaram o que os meus ouvidos já deduziam – Uma equipe da prefeitura podava uma seringueira centenária.

Sei que essa providência é corriqueira e muitas vezes necessária. Afinal, muitas de nossas árvores não passam de gigantescos cortiços para insaciáveis cupins.

Só que não tenho como disfarçar a dor que sinto quando vejo esses primores da natureza sendo mutilados sem dó nem piedade.

O jeito foi seguir adiante, resignado.

Na metade do trajeto, não pude deixar de rir ao ver um Poodle Toy latindo enfurecido para um corpulento Golden Retriever, que permanecia impassível diante de tanta ameaça.

É espantoso como esses pequeninos viram feras bestiais quando se creem acobertados pelos donos!

Ao dobrar a última esquina, avistei, do outro lado da rua, uma daquelas barraquinhas de lona que muitos mendigos utilizam como moradia.

A entrada estava fechada, o que não permitia concluir se o ocupante ainda dormia ou se já tinha saído em busca de alimento.

Fosse como fosse, bendisse a alma que, incógnita, teve a providencial ideia de comprar esses abrigos e de distribuí-los para tantos desafortunados.

Já me aproximava do lar quando me deparei com uma cena relativamente comum nas ruas de grande circulação. Era uma estátua viva, um rapaz fantasiado de anjo, todo alvo, em cima de um pedestal improvisado, e que entregava um bilhetinho para quem contribuísse com alguns trocados.

Ora, como a curiosidade aumentasse, e como nunca saio desprevenido, resolvi ofertar cinco Reais e ver o que a sorte me reservava.

Ao abrir o papelucho, não pude esconder o espanto. É que não me lembro de ter lido nos biscoitos da sorte, nem de ter recebido de algum realejo, uma mensagem afirmando que em vinte quatro horas muitos lances aconteceriam, mas que estes só seriam captados se os olhos estivessem bem abertos.

Pois apertei o passo, entrei eufórico no apartamento, sentei-me defronte ao computador, e deixei fluir esta crônica, na certeza de que os entediados, mirando-se nos exemplos que testemunhei, concordarão que é preferível enxergar a ver, e buscarão modificar-se a cada novo amanhecer.

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