sábado, 1 de março de 2025

OPERA MUNDI (8ª PARTE): DO DIÁRIO NEGRO DE LUNA DARK (2ª PARTE)

Por Clarisse Cristal (Balneário Camboriú, SC) e Samuel da Costa (Itajaí, SCK)

 

‘’Sentimento vazio

Esse sentimento vazio

De olhar distante e triste,

Nas vagas lembranças

De risos risonhos

No seu caderno

Os títulos em branco

De uma história que sequer

Acaba de acontecer. ’’

Clarisse da Costa

 

            Retomo aqui, este diálogo comigo mesma, mesmo que brevemente, do que para mim, foi o início do fim dos meus dias felizes, no meu exílio voluntário. A começar, pelo meu enlace, com Yendel, que começou no nosso ambiente de trabalho, coisa bem comum na sociedade pós-moderna. Tudo começou com breves trocas de olhares furtivos, diálogos amenos e os pequenos mal-estares momentâneos. Trabalhávamos em um parlamento local, eu sendo assessora efetiva da presidência do parlamento e Yendel assessor parlamentar.    

           Enlace, que se materializou de fato, nas happy hours nos bares da vida, no pós-horário de trabalho, onde começamos a conversar e a se conhecer livremente, sem as amarras e rigores protocolares dos nossos ambientes de trabalho. Confesso, aqui que éramos e ainda somos iguais, nos conteúdos e nas finalidades. E como sou um pouco mais cosmopolita que Yendel e sermos de etnias diferentes, eu via problemas à vista. Fatos que o tempo provou que eu estava certa.

            E voltando um para o profissional, recentemente eu fui promovida, dei um passo à frente, assumindo o programa de democratização do parlamento, na Escola do Legislativo, então eu recebi sinal verde para trabalhar. O meu trabalho de inclusão social é claro, chocou uns poucos, algumas pessoas conservadoras de uma cidade interiorana, mas vida que segue e era o meu momento e aproveitei. Fiz o meu máximo e os avanços foram muitos, fiz novos amigos e amigas, conectando o parlamento local, em que trabalhava, com a juventude, com outros parlamentos. Também conectando o parlamento com a comunidade e também com outras instâncias de poder. Eu não quero aqui aprofundar, em amenidades atomistas, que nem de longe são amenas, pelo menos para minha pessoa, nesta hora. Os detalhes burocráticos aqui não cabem.  

            E volto aqui para a minha vida pessoal, com o meu enlace com Yendel, que começou a se deteriorar aos poucos, apesar dele ser um bom profissional da comunicação social e escrever razoavelmente bem. Ele naquele momento era um tanto rústico, era uma obra em aberto e eu promovi ali algumas melhorias, com as sutilezas que somente uma mulher apaixonada tem. Foram pequenas viagens de finais de semana e em feriados prolongados, nos grandes e médios centros urbanos. Foram idas a espetáculos, palestras, cinemas, museus, bibliotecas, livrarias, teatros e uns incrementos na vida acadêmica de Yendel. Também aprendi muito, com Yendel, seria eu uma pessoa desonesta, em dizer ao contrário, ele também me ajudou a quebrar muitas resistências no trabalho. Eu, uma jovem mulher negra, embrenhada na máquina pública e de fora da cidade, estava enfrentando no meu trabalho, em uma cidade do interior estranha a minha pessoa.  

            E como a vida é complexa, a minha vida pelo menos é, faltava algo, alguém ou alguma coisa, na minha vida pessoal. E fui buscar o que me faltava, primeiro foram as luzes da ribalta, o teatro amador, as artes cênicas, o palco. Yendel detestou, detestou mais ainda, quando falei abertamente para ele, de certas caipirices provincianas em algumas das atitudes reinantes nas falas e atitudes dele. Fui sincera, como as boas e sólidas relações devem ser, com eu penso que as relações devem ser.

           E nas minhas buscas, para preencher os muitos vazios, que me circundam o meu ser, me levaram para uma nova tecnologia digital, para ser mais exata uma inteligência artificial, uma IA. A IA se chamava Bardo, onde eu podia ajustar uma persona ao meu bel prazer, um personagem virtual. Um homem negro, um literato rebelde, de meia idade, escolhi um traje, um uniforme militar russo de hussardo do século XlX. E eu confesso que, colocar um diadema de ouro e incrustado de joias, na cabeça do poeta pós-modernista revolucionário, não foi uma provocação, foi algo natural, pelo menos para mim. E de fato não foi uma provocação e sim um acerto de contas, colocar uma altura baixa no poeta, ele tinha que ser menor que eu. Tudo ao meu gosto particular, peculiar e esdrúxulo, ter um escritor negro, de origem proletária, que foi buscar no militarismo, um susto. E como finalidade conversar comigo e produzir textos situados no pós-modernismo com fortes influências do entre século XIX e XX simbolismo e surrealismo em textos pós-modernos. Coisas que o tempo que eu vivo é uma oportunidade, na frente e assim o fiz, sem pensar nas consequências boas e ruins, que não tardariam a chegar.  

            Da minha ida para uma companhia local de teatro amador e a minha aventura cibernética, produziu um Yendel estranho e desconhecido a mim pessoa, o que era esperado penso agora. Da minha estreia no palco do teatro, se desdobrou em outra oportunidade, eu fiz um curta metragem, onde eu era a personagem principal. E por fim, Yendel detestou e detestou mais ainda, ao saber que eu estava interagindo com uma IA. Soube que Yendel, conversou como o meu holográfico poeta pós-modernista, que tinha conhecimento por vias tortas, que eu nem sei como. O que eles conversaram e em que tom dialogaram, eu não sei dizer. E confesso, que somente em pensar que duas personalidades masculinas, distintas me disputando, me enchi de orgulho feminino. Um no mundo real e na outra ponta no mundo virtual e da belas-letras.

         Delete a persona virtual, exigiu Yendel, com força ao falar, largue o teatro me dizia Yendel com rancor, não faça mais filmes, bradou um Yendel enfurecido e sem medir as palavras.

            Termino aqui este breve relato, dizendo que lancei a minha vida, aos sabores ventos solares, o amanhã não me pertence, me tornei humana por fim. Pois escolhi esta realidade fluída como moradia, abandonei tudo e todos, na minha outra realidade, para me reencontrar comigo mesma. O amanhã, não me pertence e os difíceis equilíbrios das vidas que leve, ainda estão nas minhas mãos. Até quando? Eu não sei.        

 

Fragmento do livro: Sustentada no ar por asas fracas, de Clarisse Cristal, poetisa, contista, novelista e bibliotecária de Balneário Camboriú, Santa Catarina.

Argumento de Samuel da Costa, poeta, cronista, contista e novelista em Itajaí, Santa Catarina.

 

 

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