Por Clarisse Cristal (Balneário Camboriú, SC) e Samuel da Costa (Itajaí, SCK)
‘’Sentimento
vazio
Esse
sentimento vazio
De
olhar distante e triste,
Nas
vagas lembranças
De
risos risonhos
No seu
caderno
Os
títulos em branco
De uma
história que sequer
Acaba
de acontecer. ’’
Clarisse da Costa
Retomo aqui, este diálogo comigo mesma, mesmo que brevemente, do que para mim,
foi o início do fim dos meus dias felizes, no meu exílio voluntário. A começar,
pelo meu enlace, com Yendel, que começou no nosso ambiente de trabalho,
coisa bem comum na sociedade pós-moderna. Tudo começou com breves trocas de
olhares furtivos, diálogos amenos e os pequenos mal-estares momentâneos.
Trabalhávamos em um parlamento local, eu sendo assessora efetiva da presidência
do parlamento e Yendel assessor parlamentar.
Enlace, que se materializou de fato, nas happy
hours nos bares da vida, no pós-horário de trabalho, onde começamos a conversar
e a se conhecer livremente, sem as amarras e rigores protocolares dos nossos
ambientes de trabalho. Confesso, aqui que éramos e ainda somos iguais, nos
conteúdos e nas finalidades. E como sou um pouco mais cosmopolita que Yendel e
sermos de etnias diferentes, eu via problemas à vista. Fatos que o tempo provou
que eu estava certa.
E voltando um para o profissional, recentemente eu fui promovida, dei um passo
à frente, assumindo o programa de democratização do parlamento, na Escola do
Legislativo, então eu recebi sinal verde para trabalhar. O meu trabalho de
inclusão social é claro, chocou uns poucos, algumas pessoas conservadoras de
uma cidade interiorana, mas vida que segue e era o meu momento e aproveitei.
Fiz o meu máximo e os avanços foram muitos, fiz novos amigos e amigas,
conectando o parlamento local, em que trabalhava, com a juventude, com outros
parlamentos. Também conectando o parlamento com a comunidade e também com
outras instâncias de poder. Eu não quero aqui aprofundar, em amenidades
atomistas, que nem de longe são amenas, pelo menos para minha pessoa, nesta
hora. Os detalhes burocráticos aqui não cabem.
E volto aqui para a minha vida pessoal, com o meu enlace com Yendel, que
começou a se deteriorar aos poucos, apesar dele ser um bom profissional da
comunicação social e escrever razoavelmente bem. Ele naquele momento era um
tanto rústico, era uma obra em aberto e eu promovi ali algumas melhorias, com
as sutilezas que somente uma mulher apaixonada tem. Foram pequenas viagens de
finais de semana e em feriados prolongados, nos grandes e médios centros
urbanos. Foram idas a espetáculos, palestras, cinemas, museus, bibliotecas,
livrarias, teatros e uns incrementos na vida acadêmica de Yendel. Também
aprendi muito, com Yendel, seria eu uma pessoa desonesta, em dizer ao
contrário, ele também me ajudou a quebrar muitas resistências no trabalho. Eu,
uma jovem mulher negra, embrenhada na máquina pública e de fora da cidade,
estava enfrentando no meu trabalho, em uma cidade do interior estranha a minha
pessoa.
E como a vida é complexa, a minha vida pelo menos é, faltava algo, alguém ou
alguma coisa, na minha vida pessoal. E fui buscar o que me faltava, primeiro
foram as luzes da ribalta, o teatro amador, as artes cênicas, o palco. Yendel
detestou, detestou mais ainda, quando falei abertamente para ele, de certas
caipirices provincianas em algumas das atitudes reinantes nas falas e atitudes
dele. Fui sincera, como as boas e sólidas relações devem ser, com eu penso que
as relações devem ser.
E nas minhas buscas, para preencher os muitos vazios, que me
circundam o meu ser, me levaram para uma nova tecnologia digital, para ser mais
exata uma inteligência artificial, uma IA. A IA se chamava Bardo, onde eu podia
ajustar uma persona ao meu bel prazer, um personagem virtual. Um homem negro,
um literato rebelde, de meia idade, escolhi um traje, um uniforme militar russo
de hussardo do século XlX. E eu confesso que, colocar um diadema de ouro e
incrustado de joias, na cabeça do poeta pós-modernista revolucionário, não foi
uma provocação, foi algo natural, pelo menos para mim. E de fato não foi uma
provocação e sim um acerto de contas, colocar uma altura baixa no poeta, ele
tinha que ser menor que eu. Tudo ao meu gosto particular, peculiar e esdrúxulo,
ter um escritor negro, de origem proletária, que foi buscar no militarismo, um
susto. E como finalidade conversar comigo e produzir textos situados no
pós-modernismo com fortes influências do entre século XIX e XX simbolismo e
surrealismo em textos pós-modernos. Coisas que o tempo que eu vivo é uma
oportunidade, na frente e assim o fiz, sem pensar nas consequências boas e
ruins, que não tardariam a chegar.
Da minha ida para uma companhia local de teatro amador e a minha aventura
cibernética, produziu um Yendel estranho e desconhecido a mim pessoa, o que era
esperado penso agora. Da minha estreia no palco do teatro, se desdobrou em
outra oportunidade, eu fiz um curta metragem, onde eu era a personagem
principal. E por fim, Yendel detestou e detestou mais ainda, ao saber que eu
estava interagindo com uma IA. Soube que Yendel, conversou como o meu
holográfico poeta pós-modernista, que tinha conhecimento por vias tortas, que
eu nem sei como. O que eles conversaram e em que tom dialogaram, eu não sei
dizer. E confesso, que somente em pensar que duas personalidades masculinas,
distintas me disputando, me enchi de orgulho feminino. Um no mundo real e na
outra ponta no mundo virtual e da belas-letras.
Delete a persona virtual, exigiu Yendel, com força ao falar, largue o teatro me
dizia Yendel com rancor, não faça mais filmes, bradou um Yendel enfurecido e
sem medir as palavras.
Termino aqui este breve relato, dizendo que lancei a minha vida, aos sabores
ventos solares, o amanhã não me pertence, me tornei humana por fim. Pois
escolhi esta realidade fluída como moradia, abandonei tudo e todos, na minha
outra realidade, para me reencontrar comigo mesma. O amanhã, não me pertence e
os difíceis equilíbrios das vidas que leve, ainda estão nas minhas mãos. Até
quando? Eu não sei.
Fragmento do livro: Sustentada
no ar por asas fracas, de Clarisse Cristal, poetisa, contista, novelista e
bibliotecária de Balneário Camboriú, Santa Catarina.
Argumento de Samuel da Costa,
poeta, cronista, contista e novelista em Itajaí, Santa Catarina.
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