sábado, 1 de março de 2025

CRÔNICA DO DIA: AS SOMBRAS DO TEMPO

Por Clarisse Cristal (Balneário Camboriú, SC) e Samuel da Costa (Itajaí, SC)

 

‘’Eu te convido

A olhar para si mesmo,

Sentir a leveza da vida

Quando você sorrir.’’

Clarisse da Costa

 

            Muito me fascina os choques geracionais, as sombras do tempo! Para a minha pessoa era e ainda são nos dias de semana, na sala de estar da minha casa, entre silêncios abissais constrangedores, que as sombras do tempo, se adensam e me sufocam. O meu progenitor, complacente sentando-se na poltrona, a famosa poltrona do papai, lendo alguma coisa. Era um jornal, uma revista, um livro ou um tablete e eu ao lado dele, eu vendo TV, a bem da de verdade, o meu pai, fingindo que lia eu fingindo que via algum enlatado seriado do estrangeiro. E a minha mãe? Ela perdida no tempo e no espaço, não cabia naqueles inícios de noite, aquele momento era de pai e filha. Eram assim, desde quando eu me entendo por gente.

            Pois bem, eu criança crescida, estava angustiada fingindo que assistia para a TV e o meu pai com um jornalão nas mãos e eu sentada ao lado dele e como era profunda a equidistância entre nós àquela hora derradeira. E como era sempre eu que quebrava o clima, com um perguntar qualquer e assim o foi naquela noite.

            — Papai...

            — E lá vamos nós de novo! — Disse mal-humorado, o meu velho pai, baixando lentamente o jornal standard!

            — Ontem à noite e vi uma sombra do tempo! — Disse eu vacilante.

           — Olha minha filhotinha querida, eu não sou um aedo, que tu tanto estudas! Então sejas mais exata, eu quero fatos e fatos! — Disse o economista, que habita o interior do meu pai.

            — Foi na Barra Sul! Eu estava no....

            — No quiosque do Evo, creio eu! — Disse o meu velho pai, que habita o interior do economista.

            — Eu sei que o senhor não gosta daquele lugar...

            — Até que gosto, um lugar pitoresco — Disse o meu pai, sendo o meu pai e concordo com ele, o quiosque do Evo, era um point de alternativos em meio a danceterias onde reinavam, turistas ocasionais, breganejos, clubbers, funkeiros e os cultuadores da tal cultura popular. Uma massa festeira, que literalmente faziam e ainda fazem a festa, massa geralmente aditivadas. Tudo isso a poucos metros da praia atlântica. E o ponto fora da curva era o quiosque do Evo, thrashers, death metallers, punks, góticos, punks-góticos e afins, ali se reuniam ao som ambienta para poucos.    

            — Não me interrompa mais, por favor! Veio do meio da rua, um sujeito um tanto peculiar, para dizer o mínimo. Na verdade, nem tanto, um andarilho creio eu. Eu olhei nos olhos azuis dele e ele olhou para mim e eu o reconheci e ele me reconheceu creio eu! — Disse eu, esperando o meu pai dizer alguma coisa, e o pelágico silêncio abismal.

            — Grossos cabelos louros até o ombro! Um metro e setenta! Patuá no pescoço! Olhos azuis marejados! Sandálias baratas e gastas nos pés e um estranho sorriso radiante na cara! Uma enorme tatuagem de cavalo marinho no braço! Disse boa noite aos senhores e senhoritas e pediu uns trocados! É o Toninho Patuá! — Disse o meu pai triunfante me olhando de boca aberta.

            — O senhor conhece o sujeito? — Perguntei vacilante.

            — E a vossa graça também o conhece! O que me espanta é saber que ele anda por estas bandas, geralmente o Toninho fica nas bandas da Barra Sul! — Falou cheio de si o meu pai e ergueu o jornalão.  

            — Eu conheço o sujeito? — Falei intrigada.

            O meu pai dobrou com paciência oriental o jornalão, colocou na mesa de centro, pegou o controle remoto da TV, da minha mão, desligou o aparelho, tirou os óculos de leitura do rosto e guardou no bolso.

            — Eras bem pequena, a tua mãe tinha comprado um cachorro pequeno de grife, no pet shop da Betty, que fica lá na Barra Sul, um local pequeno, mas badalado. E tinha que ser no pet shop da Betty, não poderia ser em outro lugar, tinha que ser o pet shop da Betty a compra do bicho. E fomos muitas vezes no pet shop da Betty, pois o bicho foi comprado na onda do momento, pois todo mundo ia no pet shop da Betty. E lá se comprava assessorias e fazia o banho e tosa da bicharada das madames — Disse o fatigado meu pai, pois a minha mãe vivia assim, viva seguindo as modas do momento. Se apegava na moda para abandoná-las em seguida, como se quer existissem.    

            — Interessante! — Disse eu, esperando a quebra da expectativa, a marca registrada na oratória do meu pai. Sempre tinha algo mais, sempre vinha algo a mais.  

            — E no pet shop da Betty, tinha um deck, bem jeitoso aliás, o espaço era uma lanchonete, a lanchonete se foi e o deck envernizado ficou. E que ao cair na noite, servia de parada sazonal para o Toninho Patuá, que depois ficou um tanto permanente. Era ali que o Toninho Patuá, ou Toninho canela seca, era ali que ele dormia. Se abrigava das chuvas. E ele cuidava do pet shop da Betty. — Disse o meu pai um tanto entusiasmado.

            — Nossa! Faz quanto tempo? — Perguntei secamente.

            — Faz um tempo, tu eras uma criança pequena! E do Toninho canela seca, sabe-se pouco, só que depois que passou a cuidar do pet shop, a Betty passou a dormir melhor. Os vandalismos pararam, e era dar comida, água e poucos trocados e o Toninho Patuá, com o seu cachimbo de usuário de droga, o sujeito cuidava do lugar. Era o contrato social entre ambos! — Disse o meu velho pai, mais uma vez triunfante.  

            — Mas não é somente isto, creio eu! — Instiguei eu, pois eu queria mais detalhes.

            — O Toninho Patuá, sabe se pouco, mas o que se sabe é que ele transita entre a Barra Norte, Praia dos Amores e a Praia Brava, entre idas e vindas. Um contumaz e conhecido usuário de drogas que vive de caridades, de revirar os lixos, catar latas de alumínio, pedinchos aleatórios e pequenos serviços. Mas o que tu queres saber mesmo é da aposta! — Falou o meu pai e parou.  

            — Aposta? Que aposta? — Disse eu, intuindo a resposta.

            — É! Uma aposta! Quanto tempo o Toninho Patuá, duraria no nosso plano! — Disse o meu pai envergonhado.  

            — Sei! Pelo visto o tal Toninho canela seco, anda por aí e aposto que alguns apostadores se foram e o Toninho Patuá ainda está aqui! — Falei com um pouco de rancor.

E eu sendo eu, uma criança crescida e impulsiva, tirei do repouso na mesa de centro o controle remoto e liguei a TV e levei a mão até a mesa de centro e liguei o meu tablet. Conectei os aparelhos e exibi a fotografia que tiramos com o Toninho Patuá, ele sorridente em meio a minha turma de amigos. E vi uma sombra aterradora nos olhos do meu pai, ela olhando para os olhos vermelhos vampíricos do andarilho.

— Morreram todos e todas! A turma toda, que fizeram a aposta e ele ai! E parece que não envelheceu nem um pouco, com o passar do tempo! — Disse o meu pai, com um misto de melancolia e estupefação.

O que se seguiu depois, no espaço de tempo retilíneos, foi o Toninho Patuá, era uma figura constante na Barra Norte e cercanias. Ele sempre vivaz, sempre sorrindo, caminhando nas frestas das sombras do tempo, vivendo o momento e das caridades alheias. E ele parecia não envelhecer.          

             

Fragmento do livro: Do diário de uma louca, texto de Clarisse Cristal, poetisa, cronista, contista, novelista e bibliotecária de Balneário Camboriú, Santa Catarina.

Argumento de Samuel da Costa, é poeta, contista, cronista e novelista em Itajaí, Santa Catarina.

 

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