Por Clarisse Cristal (Balneário Camboriú, SC) e Samuel da Costa (Itajaí, SC)
‘’Eu te convido
A olhar para si mesmo,
Sentir a leveza da vida
Quando você sorrir.’’
Clarisse da Costa
Muito me fascina os choques geracionais, as sombras do tempo! Para a minha
pessoa era e ainda são nos dias de semana, na sala de estar da minha casa,
entre silêncios abissais constrangedores, que as sombras do tempo, se adensam e
me sufocam. O meu progenitor, complacente sentando-se na poltrona, a famosa
poltrona do papai, lendo alguma coisa. Era um jornal, uma revista, um livro ou
um tablete e eu ao lado dele, eu vendo TV, a bem da de verdade, o meu pai,
fingindo que lia eu fingindo que via algum enlatado seriado do estrangeiro. E a
minha mãe? Ela perdida no tempo e no espaço, não cabia naqueles inícios de
noite, aquele momento era de pai e filha. Eram assim, desde quando eu me
entendo por gente.
Pois bem, eu criança crescida, estava angustiada fingindo que assistia para a
TV e o meu pai com um jornalão nas mãos e eu sentada ao lado dele e como era
profunda a equidistância entre nós àquela hora derradeira. E como era sempre eu
que quebrava o clima, com um perguntar qualquer e assim o foi naquela noite.
— Papai...
— E
lá vamos nós de novo! — Disse mal-humorado, o meu velho pai, baixando
lentamente o jornal standard!
— Ontem à noite e vi uma sombra do tempo! — Disse eu vacilante.
—
Olha minha filhotinha querida, eu não sou um aedo, que tu tanto estudas! Então
sejas mais exata, eu quero fatos e fatos! — Disse o economista, que habita o
interior do meu pai.
— Foi na Barra Sul! Eu estava no....
— No quiosque do Evo, creio eu! — Disse o meu velho pai, que habita o interior
do economista.
— Eu sei que o senhor não gosta daquele lugar...
— Até que gosto, um lugar pitoresco — Disse o meu pai, sendo o meu pai e
concordo com ele, o quiosque do Evo, era um point de alternativos em meio a
danceterias onde reinavam, turistas ocasionais, breganejos, clubbers, funkeiros
e os cultuadores da tal cultura popular. Uma massa festeira, que literalmente
faziam e ainda fazem a festa, massa geralmente aditivadas. Tudo isso a poucos
metros da praia atlântica. E o ponto fora da curva era o quiosque do Evo,
thrashers, death metallers, punks, góticos, punks-góticos e afins, ali se
reuniam ao som ambienta para poucos.
— Não me interrompa mais, por favor! Veio do meio da rua, um sujeito um tanto
peculiar, para dizer o mínimo. Na verdade, nem tanto, um andarilho creio eu. Eu
olhei nos olhos azuis dele e ele olhou para mim e eu o reconheci e ele me
reconheceu creio eu! — Disse eu, esperando o meu pai dizer alguma coisa, e o
pelágico silêncio abismal.
— Grossos cabelos louros até o ombro! Um metro e setenta! Patuá no pescoço!
Olhos azuis marejados! Sandálias baratas e gastas nos pés e um estranho sorriso
radiante na cara! Uma enorme tatuagem de cavalo marinho no braço! Disse boa
noite aos senhores e senhoritas e pediu uns trocados! É o Toninho Patuá! —
Disse o meu pai triunfante me olhando de boca aberta.
— O senhor conhece o sujeito? — Perguntei vacilante.
— E a vossa graça também o conhece! O que me espanta é saber que ele anda por
estas bandas, geralmente o Toninho fica nas bandas da Barra Sul! — Falou cheio
de si o meu pai e ergueu o jornalão.
— Eu conheço o sujeito? — Falei intrigada.
O meu pai dobrou com paciência oriental o jornalão, colocou na mesa de centro,
pegou o controle remoto da TV, da minha mão, desligou o aparelho, tirou os
óculos de leitura do rosto e guardou no bolso.
— Eras bem pequena, a tua mãe tinha comprado um cachorro pequeno de grife, no
pet shop da Betty, que fica lá na Barra Sul, um local pequeno, mas badalado. E
tinha que ser no pet shop da Betty, não poderia ser em outro lugar, tinha que
ser o pet shop da Betty a compra do bicho. E fomos muitas vezes no pet shop da
Betty, pois o bicho foi comprado na onda do momento, pois todo mundo ia no pet
shop da Betty. E lá se comprava assessorias e fazia o banho e tosa da bicharada
das madames — Disse o fatigado meu pai, pois a minha mãe vivia assim, viva
seguindo as modas do momento. Se apegava na moda para abandoná-las em seguida,
como se quer existissem.
— Interessante! — Disse eu, esperando a quebra da expectativa, a marca
registrada na oratória do meu pai. Sempre tinha algo mais, sempre vinha algo a
mais.
— E no pet shop da Betty, tinha um deck, bem jeitoso aliás, o espaço era uma
lanchonete, a lanchonete se foi e o deck envernizado ficou. E que ao cair na
noite, servia de parada sazonal para o Toninho Patuá, que depois ficou um tanto
permanente. Era ali que o Toninho Patuá, ou Toninho canela seca, era ali que
ele dormia. Se abrigava das chuvas. E ele cuidava do pet shop da Betty. — Disse
o meu pai um tanto entusiasmado.
— Nossa! Faz quanto tempo? — Perguntei secamente.
— Faz um tempo, tu eras uma criança pequena! E do Toninho canela seca, sabe-se
pouco, só que depois que passou a cuidar do pet shop, a Betty passou a dormir
melhor. Os vandalismos pararam, e era dar comida, água e poucos trocados e o
Toninho Patuá, com o seu cachimbo de usuário de droga, o sujeito cuidava do
lugar. Era o contrato social entre ambos! — Disse o meu velho pai, mais uma vez
triunfante.
— Mas não é somente isto, creio eu! — Instiguei eu, pois eu queria mais
detalhes.
— O Toninho Patuá, sabe se pouco, mas o que se sabe é que ele transita entre a
Barra Norte, Praia dos Amores e a Praia Brava, entre idas e vindas. Um contumaz
e conhecido usuário de drogas que vive de caridades, de revirar os lixos, catar
latas de alumínio, pedinchos aleatórios e pequenos serviços. Mas o que tu
queres saber mesmo é da aposta! — Falou o meu pai e parou.
— Aposta? Que aposta? — Disse eu, intuindo a resposta.
— É! Uma aposta! Quanto tempo o Toninho Patuá, duraria no nosso plano! — Disse
o meu pai envergonhado.
— Sei! Pelo visto o tal Toninho canela seco, anda por aí e aposto que alguns
apostadores se foram e o Toninho Patuá ainda está aqui! — Falei com um pouco de
rancor.
E eu sendo eu, uma criança
crescida e impulsiva, tirei do repouso na mesa de centro o controle remoto e
liguei a TV e levei a mão até a mesa de centro e liguei o meu tablet. Conectei
os aparelhos e exibi a fotografia que tiramos com o Toninho Patuá, ele sorridente
em meio a minha turma de amigos. E vi uma sombra aterradora nos olhos do meu
pai, ela olhando para os olhos vermelhos vampíricos do andarilho.
— Morreram todos e todas! A
turma toda, que fizeram a aposta e ele ai! E parece que não envelheceu nem um
pouco, com o passar do tempo! — Disse o meu pai, com um misto de melancolia e
estupefação.
O que se seguiu depois, no
espaço de tempo retilíneos, foi o Toninho Patuá, era uma figura constante na
Barra Norte e cercanias. Ele sempre vivaz, sempre sorrindo, caminhando nas
frestas das sombras do tempo, vivendo o momento e das caridades alheias. E ele
parecia não envelhecer.
Fragmento do livro: Do diário
de uma louca, texto de Clarisse Cristal, poetisa, cronista, contista, novelista
e bibliotecária de Balneário Camboriú, Santa Catarina.
Argumento de Samuel da Costa,
é poeta, contista, cronista e novelista em Itajaí, Santa Catarina.
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