Por Dias Campos (São Paulo, SP)
Como acontece todo o ano, Campos do
Jordão, localizada no interior do Estado de São Paulo, fervilha no mês julho. Durante
o dia, centenas de turistas querem aproveitar o clima da montanha, caminhar no
Bosque do Silêncio, fazer piquenique no Horto Florestal, ou simplesmente sentar
no Baden Baden – quando, por milagre, consegue-se um lugar –, pedir uma
cerveja, comer uma porção de salsichas, e jogar conversa fora.
À
noite, porque os parques fiquem fechados, não centenas, mas, sim, milhares de
visitantes resolvem curtir as baixíssimas temperaturas que despencam sobre o centrinho, muito embora procurem
esquentar-se com cremosos choconhaques,
com calóricos fondues, e com os
esquecidos casacos, cachecóis, gorros e botas de cano alto.
E
como é desnecessário dizer que os restaurantes tornam-se ainda mais inacessíveis,
o jeito é ficar passeando pelo calçadão, rindo a bom rir, vendo as vitrinas, e
torcendo para que vague uma mesa no exato momento em que por ela se passe.
Pois
foi numa dessas idas e vindas que duas almas no mínimo incompatíveis esbarraram-se...
Ao
contrário do que recomenda o cavalheirismo, Paula foi a primeira a desculpar-se, fazendo com que André apenas representasse um “não
foi nada” com um meneio de cabeça.
Ambos
prosseguiram em seus passeios. Não se privaram, porém, de uma espiada para
trás, o que causou um reencontro de olhares e dois sorrisos – o dele denunciava-se
aventureiro; o dela confessava-se curioso.
Ocorre
que, se duas pessoas caminharem em sentidos opostos naquele calçadão, mas dele
não se afastarem, muito provavelmente irão reencontrar-se, já que isto
equivalerá a uma volta completa no quarteirão.
Ademais,
o interesse recíproco que brotou espontâneo, funcionando como um ímã poderoso,
fatalmente transformaria esta probabilidade em certeza.
E
é claro que os dois apostaram neste desfecho.
Arriscaram,
e acertaram.
André tentou uma abordagem que
para ele sempre dava certo. Paula
limitou-se a não rir. E perguntou se ele gostava de comida japonesa, haja vista
a fome que a incomodava.
Essa
pergunta deixou o rapaz sem saber o que dizer. Afinal, o relógio da praça marcava
nove graus, e essa temperatura definitivamente não combinava com peixe cru.
Além do mais, saíra desprevenido, e, pelo que se lembrava, sua carteira só
poderia bancar dois pastéis; e, mesmo assim, se não fossem muito além dos de
queijo.
Paula, percebendo a saia justa,
tratou de esclarecer:
-
Sou eu que estou convidando. Sou eu que vou pagar. – E ofereceu o braço
direito.
André levantou as sobrancelhas. Nunca
passara por tal situação. Habituara-se aos meios por que ganhava as incautas, e
se acostumara a rachar a conta ao final da investida. Mas essa mulher
simplesmente o desarmava, deixando-o afônico e com cara de tonto.
Como
Paula insistisse com o braço, André acabou aceitando. E lá se foram
rumo ao restaurante japonês mais próximo.
Mesas
disponíveis havia poucas. E optaram pela mais reservada.
E
se é verdade que André perguntara
onde Paula preferiria sentar-se,
também é fato que seu cavalheirismo a isso se limitou. Daí que se sentou sem a
menor cerimônia.
Só
que ao notar que Paula ficara
de pé, lembrou-se da palavra cortesia. E levantou-se rapidinho, pediu
desculpas, e puxou-lhe a cadeira.
Depois
que escolheram os pratos – ele, a sugestão do dia; ela, o combinado que raramente
é pedido –, Paula, querendo
conhecer o convidado, perguntou sobre sua vida, o que fazia, do que gostava.
André, achando que iria abafar, disse
que trabalhava com informática em uma grande empresa; que vinha para Campos do
Jordão pelo menos uma vez por ano, em feriado prolongado e para fazer compras;
e que adorava televisão e cinema.
Este
último ponto acentuou a curiosidade de Paula,
já que ela também adorava algumas produções da sétima arte.
Mas
quando perguntou o que ele mais assistia, André, enchendo a boca, respondeu que não perdia uma só das
novelas, e que era apaixonado pelos filmes de super-heróis e de zumbis. E arrematou
dizendo que se os vampiros e os lobisomens voltassem, ele não perderia nenhuma das
pré-estreias.
Foi
a vez de Paula falar de si. Disse
que era espeleóloga, explicando, em seguida, que era especialista no estudo e
na exploração de cavernas, grutas, fontes; que amava a Suíça Brasileira e a aproveitava com frequência; que detestava
televisão, mas se rendia aos filmes franceses, argentinos e iranianos. – André tornou a levantar as
sobrancelhas.
Com
a chegada dos pratos, fez-se silêncio. Mas à medida que afastavam a fome, os
olhares e os consequentes sorrisos aumentavam.
Foi
quando André, buscando no horóscopo
a explicação para o encontro que acontecia, disse que seu signo era o grande
culpado, visto que, sendo de Peixes, acataria com prazer o que estava escrito
nas estrelas.
A moça até que sorriu; menos pela crença
do que pela cafonice da cantada. Mas foi logo esclarecendo que não acreditava
em astrologia, destino ou almas gêmeas. E que se o convidou é porque sentia-se atraída;
e nada mais.
André
vibrou de alegria. Ao que tudo indicava, a noite terminaria como ele imaginava.
Daí
que a conversa fluía prazerosamente, as diferenças entre ambos eram cada vez
mais evidentes, e os olhares e os sorrisos prolongavam-se.
Paula não teve dúvida: Pousou a mão
direita sobre a esquerda de André.
Passava
da meia-noite quando o casal saiu abraçado do restaurante.
E
como tudo convergia para o romance, André
convidou Paula para ir ao seu
apartamento, onde os esperava uma garrafa de vinho tinto.
Paula sorriu, mas dispensou o
convite. Queria voltar para casa, cair na cama, e acordar o mais cedo possível
para aproveitar o céu azul e sem nuvens, uma vez que, mesmo no feriado, não era
daquelas que trocava a manhã pela tarde.
Sendo
assim, repassou o número do celular, demorou-se mais no último beijo, e partiu
a passo firme, voltando o rosto apenas uma vez para despedir-se com um sorriso.
No
dia seguinte, André ligava por
volta das dez horas. Queria revê-la a
qualquer custo.
Mas
ao contrário do que sugeriu – de novo o centrinho
–, o encontro aconteceria na cidade vizinha de Santo Antônio do Pinhal, no Pico
Agudo, local onde se pratica voo livre.
O rapaz achou estranho, mas não se
opôs.
Ao
chegar ao topo, varreu o lugar com os olhos. Entreviu Paula conversando animadamente com amigos e para ela se dirigiu.
Ao
se aproximar, notou que ela portava amarras e ganchos, segurava um capacete, e,
como acabava de virar, ainda pôde ler em suas costas a palavra Instrutora.
André surpreendeu-se. Era a
primeira vez que se relacionava com alguém que praticava esportes radicais.
Quando
se viram, Paula o cumprimentou
com um rápido beijo na boca, apresentou-o aos amigos, e, como o céu mantinha-se
ideal, perguntou se ele gostaria de fazer um voo a dois ou se preferiria
retornar sozinho para Campos do Jordão.
André estava acuado. Jamais
confessaria publicamente ter medo de altura; sua macheza não admitiria. No
entanto, como a Instrutora garantia que o parapente era seguro, e
que voava há anos, considerou que esse convite seria uma excelente oportunidade
para impressioná-la.
Assim,
e como os olhares aguardassem uma resposta, raspou as forças que sobravam em
seu espírito e aceitou o desafio com um sorriso amarelo.
E lá se foram vastidão afora... Ele, gritando
de pavor; ela, não se aguentando de tanto rir.
É
claro que o medroso foi-se
acalmando durante o voo, seja pelas palavras que ouvia, seja por sentir-se seguro
e bem conduzido, seja, enfim, pelo esplendor que passou a desfrutar durante o
voo.
Terminada
a experiência, sobraram alegria, abraços e beijos. E que se intensificariam pelo
resto do feriado.
André só não conseguia entender
por que Paula não aceitava
terminar as noites em seu apartamento. É verdade que alugara um cômodo na
Abernéssia; bem diferente do condomínio luxuoso onde ela ficava, no coração do
Capivari. Mesmo assim, não cria que essa diferença fosse a razão de suas recusas.
O
feriado enfim terminou. E não com ele o relacionamento, que desceu a serra e estreitou-se
pelas semanas que se seguiram.
E
tanto se intensificaram, que ao término do terceiro mês, André teve uma baita surpresa ao ser intimado por Paula para que fosse conhecer seus
pais. E mais espantado ficou ao ser apresentado a eles como seu namorado.
Depois
de seis meses de relacionamento, André
começou a questionar-se... Pelo que se lembrava, em nenhum dos seus casos –
foram vários e sempre breves – a intimidade do casal deixou de acontecer.
Aliás, em muitos deles, ele nem precisou tomar a iniciativa, visto que as
garotas é que se ofereciam, e no primeiro encontro. Qual seria, então, a razão
das negativas que ouvia?
É
bem verdade que Paula estava
longe de ser caracterizada como piriguete. Mas imaginar que sua namorada seria
um ser à parte em plena São Paulo do século XXI, uma espécie de E.T. que só se
entregaria ao seu homem na noite de núpcias, seria algo de surreal, e de inaceitável!
Assim,
em um determinado sábado, tão logo terminou a sessão de cinema a que foram
assistir, André, sem nenhum
constrangimento, perguntou para namorada
se ela tinha algum problema físico ou psíquico que a impedia de ser sua.
Paula respondeu, em voz pausada e
firme, que só se entregaria a um homem depois de casada. Era assim que fora
educada, e assim seria.
Um
climão formou-se naquele momento.
E
como a mudez permanecesse, Paula
levantou-se, encarou-o de olhos marejados, e foi embora sem dizer palavra.
André
ficou sem reação. Nunca topara com uma mulher cujo recato falasse mais alto! E
essa postura remexia em seu espírito, ora agradando, ora revoltando.
Os
dias passavam. E o afastamento perdurava.
Paula sofria
muito, mas se recusava a ligar.
André até arriscou
outros horizontes. Mas nas duas vezes em que saiu para se divertir só encontrou
tipos conhecidos, bem distantes do que Paula
representava.
E
como a saudade o martirizava, acabou ligando.
Ao ver quem era, a jovem inspirou
profundamente, elevou o pensamento, e atendeu o telefone.
André pediu milhões de desculpas.
Tentou justificar, argumentar... e se enrolava cada vez mais. Terminou dizendo
que, por ter descoberto o verdadeiro amor, tudo faria para não a perder,
incluindo o de respeitá-la até as núpcias.
Noivaram
no início do ano seguinte, e casaram-se no mês das noivas – maio foi um pedido
(enfático) de sua sogra.
André retemperava-se
dia a dia ao toque da esposa. Era ela quem arejava as suas ideias, aprimorava
os seus gostos, e desconstruía os seus hábitos há muito enraizados.
Paula, por sua vez, sentia-se cada
vez mais estimulada, grata e feliz, sentimentos esses que sempre idealizou em
uma vida de casados.
Essa
harmonia, contudo, sofreria grande abalo. Depois de muito tentarem, desconfiaram,
investigaram e descobriram que André
era estéril.
Diante desse infortúnio, Paula
sugeriu o amoroso caminho da adoção.
Mas
André, inconformado com a sua situação, revoltou-se de inopino, e
sentenciou que jamais aceitaria tal hipótese! Preferia vivessem sem filhos a
ser pai de alguém já nascido.
Ao
que parecia, as transformações operadas em André não passavam de um castelo de
cartas, que, submetidas às provas da vida, não aguentaram um sopro mais forte.
Diante
de tamanho egoísmo, Paula caiu em depressão.
O
relacionamento foi esfriando, esfriando... E acabou em divórcio amigável.
Paula conseguiu
reerguer-se à custa de terapias alternativas. E por agora divide a sua atenção
entre a pós-graduação e o novo namorado, seu orientador no mestrado e outro apaixonado
por paraglider.
André foi
promovido a gerente de TI e voltou a frequentar as baladas. Mas acaba sempre
frustrado, pois as mulheres com quem fica pouco ou nada lhe acrescentam.
Bem
que os opostos tentaram ficar juntos... Mas, para eles, isso era impossível.