sábado, 1 de novembro de 2025

O "QUE" DA INTERSECÇÃO ENTRE A FOTOGRAFIA E A PSICANÁLISE

Por Catarina Denise Rabello Osoegawa (São Paulo, SP)

 

No espaço do silêncio entre o clique da máquina fotográfica e a sensação de um silêncio perturbador no divã de análise, alguns paralelos instigam-me a questões quase indecifráveis.  As narrativas que se descortinam entre um silêncio e outro, entre uma imagem e outra, ora se desnudam, ora se escondem, ora se fragmentam em uma correnteza de significantes que se movem em direção a uma nuvem de metáforas.

 Assim como na fotografia, no jogo de luz e sombras, as imagens nos seus contornos se desvanecem à medida que a luz se divide em diferentes planos e texturas mantendo-se apenas o foco central com nitidez, no percurso da análise, coincidindo com o “clique” do inconsciente, irrompe um rojão que explode na consciência, recuperando um segredo guardado que fora fina e longamente elaborado, expurgando a sombra que o aprisionava. Libera-se em uma apresentação potencialmente transformadora o insight. Este pode ser múltiplo, único, rápido ou mais prolongado, de qualquer maneira conserva a sua característica de provocar um êxtase a quem o reconhece em seu valor de comunicar algo surpreendente com a aparência de novo e conhecido ao mesmo tempo.

Começar de novo é uma experiência comum a cada sessão de análise e a cada sessão fotográfica, como se um condutor se dirigisse sempre ao mesmo destino comum e apaixonante. Da semiótica ao mundo das narrativas, desde as mais subjetivas até às documentais, históricas, ficcionais, às mais poéticas, o humano se aventura a provocar e ser provocado pela linguagem, e trilha sem saber os caminhos que o levam a realizar sua vida pulsional.



Sem saber como nem porque, aventurei-me ao estudo da linguagem e somente após uma longa trajetória profissional, passando pela Fonoaudiologia, Psicologia e Psicanálise pude encontrar-me com o que faria sentido na intersecção destes campos com a Fotografia. Descobri que algumas perguntas são capazes de elevar o grau de ansiedade frente a uma ausência de resposta, enquanto outras, dependendo da forma como se questiona, são capazes de resgatar caminhos mais criativos e favoráveis à continuidade de uma jornada.

Em Introdução à Psicanálise e as Neuroses de Guerra, texto escrito em 1918, Freud tratava de um tema dos mais atuais para a época. O resultado deste trabalho apresentado no Quinto Congresso Psicanalítico Internacional em Budapest, levou as autoridades à promessa de estabelecerem centros psicanalíticos para tratar e estudar a natureza dos intrincados distúrbios produzidos pela guerra. Embora essa proposta se perdesse com o final da Primeira Guerra Mundial em 11 de novembro de 1918, esse episódio marcou uma grande influência na difusão da psicanálise.

Alguns dos fatores que a psicanálise havia reconhecido e descrito ao trabalhar com neuroses em tempos de paz observou-se estarem igualmente presentes nas neuroses de guerra, como a origem psicogênica dos sintomas, a importância das pulsões inconscientes e o papel desempenhado pelos mecanismos da repressão na produção das neuroses.



A teoria da etiologia sexual das neuroses acabara de testemunhar ao mundo pós-guerra que as neuroses tinham a sua origem em momentos bem precoces do desenvolvimento psicossexual, e os efeitos das feridas narcísicas à frustração no amor refletiam-se na vida adulta em forma de sintomas em resposta às exigências de uma libido insatisfeita.

Na elaboração dos conceitos e fundamentos da teoria psicanalítica, Freud incluiu em suas descobertas elementos da cultura, da mitologia, da história das religiões e da literatura. No texto de 1919, intitulado ‘Estranho’ reporta-se ao tema da estética, não somente relacionada à teoria da beleza, mas à teoria das qualidades do sentir. Relata Freud: “O analista opera em outras camadas da vida mental que o levam, eventualmente, a recorrer ao campo da estética para compreender a natureza dos impulsos emocionais. O tema do ‘estranho’ é um desse tipo”. [1]

Suas buscas no campo da semiologia levaram-no a compreender o processo da criação de sentido dos termos   unheimlich (estranho) e o seu oposto heimlich (familiar), concluindo após longo e detalhado estudo, que estas palavras embora opostas, apareciam nos textos literários com uma raiz semântica muito semelhante.  O estranho que remete ao assustador, esquisito, misterioso e não familiar, é comum também ao que é familiar capaz de causar estranhamento. A lembrança emocional deste conteúdo oculto em uma memória distante, ao retornar à consciência, mostra-se como algo incompreensível com aparente falta de lógica, não familiar, causando espanto e desejo de que permaneça oculta para sempre. Freud relaciona esta ideia ao retorno do reprimido inconsciente que irrompe na vida mental em forma de sonhos, chistes, atos falhos e sintomas incompreensíveis, causando estranhamento, dor e angústia.



Sob a perspectiva da psicanálise, a arte se coloca como uma possibilidade de expressão do inconsciente, uma via de acesso ao conteúdo reprimido, sem necessariamente causar a sensação de estranhamento ou transformar-se em angústia.

No processo da produção artística a energia pulsional agressiva e o conflito de forças das vivências traumáticas que poderiam cristalizar-se em forma de sintoma, passam por um processo complexo de metamorfose e adquirem um valor estético capaz de serem comunicados e aceitos socialmente.

Segundo Donald Winnicott (1896-1971), a atividade criativa e artística está intimamente relacionada ao ato de brincar e ao conceito de objeto transicional. O brincar torna-se um espaço potencial onde a criatividade pode emergir, favorecendo a criação do objeto transicional, o qual desempenha um papel primordial no equilíbrio psíquico, estruturando a interface entre o mundo interno e o mundo externo. Winnicott afirma que o desenvolvimento da criatividade é essencial na promoção da saúde, funcionando como importante recurso terapêutico para a expressão simbólica do sofrimento   nos processos de ressignificação e elaboração das vivências traumáticas. Especialmente em casos de psicopatologias severas, a abordagem winnicottiana contribui para a reorganização psíquica, reduzindo o isolamento e auxiliando a reintegração social do paciente.

Roland Barthes (1915-1980), filósofo, escritor, crítico literário, semiólogo francês, expoente da intelectualidade contemporânea, escreveu um estudo filosófico sobre o processo fotográfico em seu livro A Câmara Clara-Nota Sobre a Fotografia, publicado no ano de sua morte, em 1980. Barthes explorou a fotografia não como um mero registro do real, mas como uma linguagem que veicula sentidos em vários níveis. A fotografia, para Barthes revela uma dualidade paradoxal: por um lado é um registro quase literal do real, do que esteve diante da lente, o referente. Por outro lado, é uma construção que, como toda linguagem, está sujeita a normas e ritos sociais e culturais que podem desviar do sentido original, incluindo as distorções e mentiras como um fenômeno social que invade todas as áreas da cultura.

Barthes elabora a tese de que a fotografia, compreendida como linguagem, não expressa uma correspondência linear entre seus significantes, as imagens, e seus significados, as interpretações. O fotógrafo, ao selecionar um objeto ou situação, já estaria criando um mito ao transformar algo que lhe é íntimo e faz parte da sua subjetividade em algo coletivo e natural. A fotografia é como um teatro primitivo, cria-se um cenário a partir de um impulso de vida que evoca ao mesmo tempo o instante da morte. O real não está na imagem, surge no momento da criação e desaparece da cena com o clique da máquina. A imagem fotográfica congelada indica um real que se perdeu, que fez parte do infinito caminho entre o desejo e a lente do fotógrafo.

Ao interpretar o momento do clique da câmera como o momento da morte, Barthes acentua que a fotografia é única e irreproduzível.  Sempre haverá um sujeito com sua história por detrás de cada registro fotográfico, e aquela imagem que poderia causar algum espanto ao seu autor por não ter acesso direto ao que o motivou, ao invés disso, proporciona realização, satisfação e prazer. O trabalho criativo eleva-se à categoria de arte, e o artista pode expressar sem medo algo que emerge do inconsciente. A criação revela apenas traços indicativos daquele ‘o que’, que permanece intricado à história e subjetividade do autor, algo familiar e estranho ao mesmo tempo, porém, não assustador. Este o “Que” que desponta da criatividade e pode causar surpresa, contempla um potencial de identificação entre o artista e o espectador, como se uma comunicação inconsciente se fizesse presente entre ambos. Assim como nos chistes o riso revela um significado oculto que pode ser compartilhado, na fotografia algo que aproxima o autor do espectador é revelado entre ambos como familiar e capaz de extrair daquele momento um flash de surpresa e cumplicidade.  

O ‘Que’ do desejo inconsciente recuperado e perdido ao mesmo tempo, transforma-se em combustível capaz de alimentar as múltiplas faces das narrativas, algumas passíveis de serem vistas e questionadas, outras de serem admiradas e sentidas, outras de serem profundamente lidas, refletidas e interpretadas. De qualquer forma, o fotógrafo estaria sempre diante do seu autorretrato tentando comunicar algo, qualquer que fosse a intenção da sua fotografia, produzindo sensações de estranhamento ou contemplação... A fotografia segundo Barthes pode ser vista como uma autobiografia, e como ele dizia, toda autobiografia é ficcional e toda ficção, autobiográfica.

Sem esquecer o poder social da linguagem, Barthes permanece atual nas narrativas de transformação — seja pela psicanálise, pelo jornalismo ou pela fotografia. A linguagem, em suas variadas formas e códigos, detém imenso poder de gerar efeitos coletivos. As narrativas fotográficas contemporâneas, ao abordar temas como injustiça social e desafios ambientais, propõem um olhar crítico sobre problemas emergentes, afirmando: não deixem de ver o estranho como verdadeiramente estranho, pois esse o “que” da fotografia documental que nos impacta e nos assusta — é profundamente real.

 

 Obs.: As fotografias foram tiradas no Parque Nacional "Los Cardones", Argentina.

 

Referências

·        Barthes, R. A Câmara Clara. Nova Fronteira, 1984 (original: 1980, francês)

·        Freud, S. (1976). Introdução à Psicanálise e as Neuroses de Guerra. Imago, vol. XVII, pp. 259-265, 1919

·        Freud, S. (1976). Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente. Imago, Volume VIII, 1905.

·        Freud, S. (1976). O Estranho. Imago, v. XVII, pp. 273–314, 1919.

·        Winnicott, W. D. O Brincar e a Realidade. Imago, 1975.

 

 

 

Sobre a Autora

Catarina Denise Rabello Osoegawa mora em São Paulo (SP) e em Florianópolis (SC). Psicóloga e psicanalista, membro efetivo do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae em São Paulo, atuou como psicóloga na rede pública municipal de São Paulo pela Secretaria Municipal da Saúde. Graduada em Fonoaudiologia, atuou como fonoaudióloga do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo. Paralelamente à atuação clínica, dedica-se à fotografia, sendo reconhecida em exposições como a Metamorfose III, realizada em Brasília em 2025.



[1] Freud, S. (1919). O Estranho. Imago, Volume XVII, p.275 (1976)

A FONTE

Paccelli M. Zahler (Brasília, DF)

 

A Sabedoria não reside em altares

Nem em volumes densos, de capa opulenta.

É um coração que escuta os pesares,

Uma alma atenta, que a dor não afugenta.

 

Não veste púrpura, nem tem brilho vão

De quem pensa saber, mas apenas repete.

É a calma firme após o furacão,

Um olhar que entende o que o silêncio promete.

 

No mosaico frágil de cada ilusão que cai,

Desvela-se a fibra do ser, sua essência crua.

Na curva do tempo, onde o presságio trai,

A real riqueza que o tempo não recusa.

 

É compasso lento de quem já viu o abismo,

E voltou com a poeira fina nos sapatos.

Sem a pose austera do dogmatismo,

Acolhe as cores dos desacatos.

 

Aprender a dança do não saber de cor,

É o cume sutil que a humildade oferece.

Sentir a beleza em cada matiz de dor,

E saber que a jornada jamais fenece.

 

É fonte que sacia, não água que se vende,

É rio que flui, ignorando o decreto.

Luz que se acende quando o olhar compreende

O sopro da vida em cada imperfeito afeto.

 

Que sua busca seja o espelho da paz,

Na arte de ser ponte, não muralha de silêncio.

E que o saber maduro, que a alma satisfaz,

Seja a melodia rara do seu discernimento.

SEREI DE CRISTO OU DE PEDRO E PAULO?

 Por Humberto Pinho da Silva (Porto, Portugal) 

 

Quando Paulo ouvia crentes afirmar: " Eu sou de Paulo ou de Pedro," agastava-se muito.

Em Corintos 3:4,7, disse: Quando escuto dizer: " Eu sou de Paulo ou eu sou de Apolo, é prova que precedeis como homens. Quem é, pois, Apolo? E quem é Paulo? Servidores, porque quem foste trazido à fé. Cada um deles agiu segundo os dons que o Senhor lhes concedeu. Eu plantei, Apolo regou, mas Deus fez crescer. Nem o que plantou nem o que rega são coisa alguma; mas só Deus, que dá o crescimento."

Semelhante parecer teve Lutero ao escrever, em 1522: " Sinceras Admoestações a Todos os Cristãos", advertindo os crentes para essa abominável tendência:

" Eu peço que se queira calar o meu nome. O que é Lutero? A doutrina não é minha; e eu não fui crucificado por ninguém. São Paulo, Iº Corintos, 3,4,5, não suportava que os cristãos se quisessem chamar discípulos de Paulo ou de Pedro, mas cristãos, que posso eu, pobre invólucro de carne pestilenta prometido aos vermes, para que o meu miserável nome seja dado aos filhos de Cristo? Não, meus bons amigos! Extirpemos antes de mais os nomes partidários e chamemo-nos discípulos de Cristo, de quem temos a doutrina."

Eu sei que a pulverização de Igrejas e Igrejinhas; seitas e seitinhas, são, em regra, devido a meras quezílias domésticas.

Foi o que aconteceu a grupinho de frades, mais interessados no aspecto exterior, do que cumprir a doutrina, quando resolveram reunir a capítulo: " Nosso pai usava barba. - Diziam. - Devemos imitá-lo”. Logo se ergueram os sem barba. Zangaram-se e separaram-se para sempre.

Felizmente o apartamento – segundo creio – não foi por motivos monetários, como acontece – no nosso tempo – por obra de alguns habilidosos, mais interessados no dinheiro, do que em Deus.

Há uma só Verdade, que deve ser procurada, no manual de instrução do cristão: a Bíblia, mormente: o Novo Testamento, onde se encontra tudo, que o crente deve saber e cumprir.

O resto são pareceres e opiniões de "fiéis" perturbados ou mal-esclarecidos.

Na minha longínqua juventude era costume dizer – que eram: " Peixinhos vermelhos, nadando na pia de água-benta".

Pelo fruto, facilmente, se conhecem, como os políticos pela riqueza que possuem, após anos de governação.

 

A DECADÊNCIA DA CIVILIZAÇÃO

Por Humberto Pinho da Silva  (Porto, Portugal)

 

Disse no final do século XX, na conferência que realizou na Fundação do Século XXI, Agostinha Bessa Luís: " Estamos a entrar num século vazio de culpa, naturalmente esterilizado, a ponto de a piedade ser abolida."

Não só a piedade, mas também a: Moral e a Educação.

Não sou leitor assíduo de Fernando Pessoa, embora lhe reconheça valor. Mas não concordo com muitas das suas incongruências, alucinações e patológicas maneiras de ser e de se exprimir

Todavia parece-me que, alguns dos seus versos, são indignos de aparecerem em seletas escolares, como foi o caso do: " Encontro", destinado a alunos do 12º ano em que foram substituídos por tracejados versos de linguagem inapropriada.

Diziam o seguinte: -“Os automóveis apinhados de pândegos e de putas", "E cujas filhas de oito anos - e eu acho isto belo e amo”, "Masturbam homens de aspecto decente, nos vãos de escadas" - segundo noticia publicada no: " Jornal de Notícias", de 15 de janeiro, de 2019 – pág. 7.

Só a decadência a que chegamos é que permite a publicação de poemas desses, em seletas escolares!

Certo é que os versos foram substituídos por tracejados; mas, por isso mesmo, despertam, ainda mais, a curiosidade dos jovens.

O que acabam de ler serve, perfeitamente, para se avaliar, não só o que dão a ler aos nossos jovens, mas para se verificar o nível moral a que se chegou!

Billy Graham, referindo-se ao efeito nefasto que o ambiente provoca, lembra, em " Wod Aflame": " Procuramos pensar, agir e falar, como o fazem aqueles em torno de nós; um dos nossos temores mais arreigados é nos considerarem “estranhos", gente " de Fora" do grupo".

Sente-se, igualmente, que a classe política se degrada, pela forma de se exprimir, pelo vocabulário torpe, que usa e, até – pelas ideias, que alguns, defendem.

Há falta de estadistas e políticos, que inspirem respeito: pelo porte e modo de agir; e não acontece só no nosso País, mas, infelizmente, em quase todas as nações.

Augusto Cury, em: " O Mestre da Sensibilidade (Edição Dom Quixote) escreve: " Ao que tudo indica, as pessoas do século XXI, serão menos criativas do que do século XX. Há no ar um clima de denúncia, que os seres futuros, serão repetidores de informações, e não pensadores."

Essa decadência – a meu ver – é, principalmente, a da: Moral e a da Educação – porque nos conduz à destruição da família, e valores que sempre enobreceram o nosso povo, e nos vai levarem ao que disse Mário Quintano: "O que me impressiona, à vista de um macaco, não é que ele tenha sido nosso passado; é este pressentimento: de que venha a ser o nosso futuro."

A CADA UM, A SUA INSPIRAÇÃO!

Por Dias Campos (São Paulo, SP)

 

A História registra que Vivaldi, um dos maiores compositores do Barroco italiano, certa vez, quando dizia missa, de súbito foi tomado por uma inspiração. Ele, então, simplesmente suspendeu a celebração e se foi à partitura, ávido por transcrever no papel a música que o seu coração captara. E por esse ultraje, foi excomungado.

            Esse fato sempre impressionou padre Augusto, que abraçara com o mesmo ardor a fé que o chamara ao sacerdócio e o violão que herdara do seu abnegado pai.

Seria possível, questionava-se, que algum dia Deus o provaria da mesma maneira? e se o fizesse, para qual dos pratos penderia o fiel da sua balança?

            Essa indagação, o pároco nunca teve coragem de participar a um colega de hábito, a um parente, ou mesmo a um amigo, tamanho o medo de que, se o fizesse, a porta à perdição ficaria entreaberta.

            Ocorre que esse questionamento crescia... E o pânico já o envolvia quando da eucaristia.

            Para fazer frente a esse tormento, o reverendo desdobrou-se em orações e  redobrou o seu compromisso para com a paróquia e os necessitados.

No entanto, não teve forças para abandonar o violão, pois a melodia que espargia sempre lhe pareceu uma prece, maviosa, sincera e fervorosa.

Apesar dessa tortura, padre Augusto seguia adiante, esperançoso de que sua retidão, disciplina e devoção fossem suficientes para preservá-lo do que acreditava ser a sua maior provação.

Essa tentação, contudo, não diminuía, e atingiu o seu clímax quando o sacerdote foi celebrar uma missa na capela recém-reformada de uma abastada carola, em memória do seu falecido marido.

Quando lá chegou, o pároco, que estava muito feliz e honrado, quase desmaiou ao notar um sexteto especialmente contratado para dulcificar a cerimônia.

E apesar da sua máxima dedicação à pregação, bastou que os violonistas dedilhassem os primeiros compassos da Ave Maria de Schubert para que uma sublime sensação começasse a seduzir o orador. O enlevo a que se entregava era tão indescritível, que o reverendo por muito pouco não largou o missal e fez da toalha branca sobre o altar a sua partitura.

Concluído o ofício, e o sacerdote sentia-se satisfeito, confiante, um vencedor! Com efeito, diante daquela prova, ele conseguira conter a inspiração que lhe derramara o céu, relegando o êxtase da composição ao seu devido e apropriado momento.

A vitória, porém, não dispensa a comemoração. E o jeito foi se confiar, menos de alma do que de corpo, a um voluptuoso churrasco, com que padre Augusto terminou o domingo no mais puro contentamento.

E esse regozijo ainda iria aumentar, pois tão logo terminaram os afazeres da segunda-feira e o pároco deparou-se com uma carta que há muito aguardava.

O texto era conciso, mas transbordante de entusiasmo – o Clube Recreativo da comunidade respondia à solicitação que lhe fizera o reverendo, sentindo-se imensamente feliz por tê-lo como solista em recital de violão marcado para o sábado seguinte, às 20h.

Não se poderia descrever o júbilo que se apossou de padre Augusto! Mas isso nada tinha a ver com as glórias mundanas, pois seria a sua própria alma que louvaria o Sempiterno por intermédio daquele instrumento angelical. E isso o fez chorar de alegria, e de gratidão.

Como os dias seriam curtos, todo e qualquer tempo vago deveria ser dedicado ao violão. Mesmo assim, e a seu ver, isso não seria suficiente, o que fez com que o sacerdote decidisse por avançar na madrugada.

Ao final, quando as cinco composições que escolhera estivessem sendo executadas com a perfeição dos querubins, todo o esforço que dispendera teria valido a pena, pois sua música tocaria os corações da plateia, alçando-lhes os espíritos, como o dele próprio se elevaria.

E unindo a disciplina teutônica à pontualidade britânica, o pároco se dedicou a treinar a sua música por toda a curta semana.

Na noite gloriosa, o salão de baile onde aconteceria a apresentação estava completamente tomado. Fossem diretores, associados ou seus parentes, todos já estavam sentados e à espera daquele que diziam ser um virtuose.

Padre Augusto estava nervoso. Mas o nervosismo foi acalmado com uma prece proferida à baixa voz.

Ele entrou. E durante o seu trajeto foi efusivamente aplaudido.

Sentou-se em uma cadeira no centro do palco; apoiou o pé esquerdo sobre uma banqueta, e o violão, sobre a respectiva coxa, como deve ser ao violão clássico; e preparou-se para iniciar o espetáculo, fazendo do silêncio a deixa necessária para que os seus acordes se fizessem ouvir.

E naquele átimo que medeia o fim da concentração e o início da execução, outra inspiração descia dos céus...

O reverendo, chorando de emoção, e sem opor nenhuma resistência, pôs o violão de lado, levantou-se, abriu os braços, e, consciente de que o seu verdadeiro testemunho acontecia, convidou a todos a participarem de uma missa que rezaria naquele instante.

Poucos abandonaram o salão; até porque, a homilia foi curta, comovedora e cativante.

O recital acabou acontecendo em seguida. E foi primoroso, memorável!

E ao contrário do que aconteceu a Antonio Vivaldi, padre Augusto não seria excomungado. No entanto, e porque decidisse preservar-se de futuros embaraços, por um bom tempo ainda comungaria com o seu violão somente no aconchego do próprio quarto.

VEADEIROS EM CHAMAS

Por Catarina Denise Rabello Osoegawa  (São Paulo, SP)

 

Todo historiador carrega consigo uma dor, que embora profunda, se revela na superfície da sua biografia. Os significantes de pequenas unidades linguísticas tal como a dor e o sentido têm a propriedade de remeter a inúmeras formas de historiar, desenhando rotas e mudanças de um traçado sempre inesperado. O sentido, que dirige para longe, para a frente ou para trás, que nos arremessa na curva da retomada ou da inversão, se mantém pleno de simbolismos e comoção.

Ser um ser de linguagem e conseguir transformar as nuances dos sentimentos em uma expressão plena de sentidos, é algo que exige trabalho árduo de confecção que a inteligência artificial ainda não ousa indagar. O historiador se permite revelar até onde se autoriza, mas ao ser autobiografado, se desnuda sem consciência em meio às fagulhas do inconsciente sempre à espreita, aguardando uma confirmação do que fora simplesmente um conteúdo fragmentado, que agora se deixa ser ressignificado.

Acordar em meio ao pesadelo das chamas é uma experiência que abala a todos que têm na terra o seu habitat, sustento e enraizamento. O ser vivo maduro revela o seu espírito insistente e envolto às múltiplas trajetórias que precisou percorrer nas demandas da sobrevivência, ora inacabadas, interrompidas ou decepadas,  forçou a retomar a sua resistência e resiliência. Um pesadelo que dura um dia, semanas ou meses permanece séculos presente na memória do que foi a sua devastação, e no semblante do historiador temos mais do que mil palavras a interpretar quando avistamos a rara beleza da Chapada a se queimar. Conheçamos esta figura tão especial que nos embala nesta noite fria de esperança fraca de colheita de alegrias.



Sempre amei a primavera porque trazia flores lindas aos jardins e as praças ficavam todas coloridas, alegres, verdejantes, com aroma de vida no ar de setembro. Setembro...septembrum...septum...separação...limites tão frágeis   como as associações livres no livre falar da prosa entre amigos ou no pensamento livre de regras solto ao vento chegando ao topo das árvores mais altas do cerrado... Como se pudéssemos afirmar que o pensamento é tão livre quanto aparenta ser... Na verdade, todas as vidas amarradas entre as cordas do desespero ansiando fugir à destruição, se reconhecem frágeis e impotentes frente ao poder de um evento tão impactante que não obedece nem as regras, nem os limites, só podem lutar em união.

Toda história encontra no espaço íntimo dos traços de memórias os vazios sempre disponíveis a serem recriados. Nas raízes ou nos galhos secos e retorcidos, a lembrança e o desejo se encaminham a serem transportados por um fio d’água em uma canoa de fantasia. Brincam de se embalar sobre um real breve e especialmente desejoso de paz. Forças opostas ali presentes conduzem o movimento ao vento, e independente da inércia circundante, geram novos rabiscos prestes a encarnar uma pintura disfarçada de destino irrecusável e esperança de superação.



Havia um filósofo que dizia que a linguagem que vem de uma reflexão é tudo.  Apreender a profundidade desta afirmação tão racional e categórica, nos convida a viver mais cem anos para poder assimilá-la no seu âmago.

Sou o buriti que brinco de fazer arte, sirvo de alimento, casa e ninho das araras, arrisco inúmeros ensaios até conseguir modelar e dar uma forma aos filamentos da minha história, que me parece, ficou até bem-humorada. Felizmente a dor do viver não é continua. Como a onda que vai e vem, sem controle e com desdém, no intervalo do seu tempo, reage afoita com suas águas rolando de volta ao curso normal, assim como a Cachoeira de Cristal, que corre desvairada contra o tempo, mas nunca esquece de brilhar ao sol. Nas águas que colidem nas entranhas, se embelezam, emitem rumores de susto, medo e emoção, e no envolvimento turbulento das ondas, quanto mais perigoso, mais o ingênuo remador se aprisiona nesta doce sedução. Na onda rubra da vergonha, a dor que tem na flor a sua esperança, se enclausura na finitude de uma aproximação fina e delicada da agulha que perfura sem ficar marcada. A dor que recebe um cobertor leve e quentinho, é tudo o que a dor precisa para ser guardada em um cantinho.

A dor não se exime das palavras, é o coração que parte, é a fala silenciosa, é o vazio do entardecer, é a resposta não esperada...tristes sentimentos difíceis de descrever.

Enfim, esta é uma das centenas de histórias que me arrisco a escrever, que gostaria de chamar de ode, como os curiosos poemas líricos da métrica perfeita. Terei muito que exercitar neste voo ainda, mas agora faço uma pausa para ouvir o canto dos bem-te-vis que pousam, um a um, no beiral da minha janela. Eles me pedem desesperadamente que interrompa esse fluxo de ideias soltas ao vento para oferecer-lhes um pouco do meu cuidado. Como eles estavam sedentos e famintos!! Minutos depois deste intervalo, retomo feliz à minha história, sentindo que este desdobramento no aprendizado do amor ficará registrado, e por mais breve e frágil que seja, compartilhado em um fio de memória mínimo, foi carregado com muito carinho.

 Obs.: Fotografias tiradas na Chapada dos Veadeiros, Goiás.

UMA DOSE DE GENTILEZA

Por Liécifran Borges Martins (Cariacica, ES)


Ninguém está bem.

Todo mundo enfrenta uma luta.

Ninguém é feito de ferro.

 

Temos sentimentos.

Seja gentil.

Ninguém é perfeito.

 

Temos defeitos.

Aprenda com os erros.

Cresça com seus erros.

 

Uma dose de gentileza.

Meia xicara de gentileza.

Ninguém estar bem.

 

Temos lutas meu bem.

Não somos de ferro.

Seja gentil.

 

Gentileza é de graça.

Custa nada.

Salva almas.