Por Paulo Cezar S Ventura (Nova Lima, MG)
Ela, 99 anos, recebe um dos
seus filhos com alegria, e depois volta ao silêncio, em sua cadeira preferida à
beira da janela.
— Quantos anos eu tenho?
— Noventa e nove anos, mãe.
Ano que vem será uma centenária.
— Nossa! Pra que viver tanto?
Eu sempre fui tão ativa e hoje não dou conta de fazer mais nada.
— Tem problema não, mãe. Você
já fez muito. Hoje tem muita gente que possa fazer por você. E ainda vai viver
um tempo, você não tem nada! Mais forte que um carvalho velho!
— Pois é, quantas pessoas de
minha idade têm a saúde que eu tenho?
O que é verdade. Seus
indicadores de saúde são ótimos. Os medicamentos que toma são apenas dois: um
contra a osteoporose pela manhã, um ansiolítico à noite para combater sua
ansiedade e dormir melhor. Anda com ajuda de um andador por causa das artroses
e está quase completamente surda. Temos que falar alto e bem perto dela e ter a
sua atenção para que nos ouça. Ainda se alimenta com suas próprias mãos e
detesta tomar banho. Já nos acostumamos com a costumeira reclamação: hora do
maldito banho. Alguns amigos dizem o mesmo de seus pais idosos — por que não
gostam de tomar banho?
Até mais de oitenta anos
atuava como atriz em um grupo de teatro amador do Sesc-BH. Ficava empolgada com
o teatro e com sua própria atuação e de seus colegas, quase todos e todas as
pessoas idosas. E apresentavam em teatros, escolas, hospitais e presídios.
Quando a direção do Sesc encerrou as atividades do grupo, por redução de
despesas, veio a depressão.
Foi quando assistimos aquela
mulher falante, ativa, inteligente e dinâmica ir declinando pouco a pouco: a
depressão, a morte do marido, o isolamento por causa da pandemia, a surdez, a
solidão. Claro, nunca está sozinha, tem sempre alguém da família com
ela, vinte e quatro horas por dia. Mas isso não aplaca a solidão, que está
dentro e não no entorno. Onde estão os amigos e amigas, os parentes de mesma
geração, as vizinhas que vinham lhe visitar e pedir conselhos? (Sim, ela
dava até conselhos matrimoniais: — a gente tem que fingir que não viu e que não
escutou). Restaram alguns poucos, muito poucos, ninguém tão idoso quanto ela,
mas que já se retiraram à suas solidões acompanhadas.
Em alguns momentos, à mesa do
café da manhã, conta algumas histórias:
— Quando eu era moça e
trabalhava em Belo Horizonte, no Bairro Santa Efigênia, eu era muito conhecida,
porque eu ajudava todo mundo que me pedia. E quando teve a inauguração do
Edifício Acaiaca eu estava lá para assistir. Foi quando o Juscelino Kubitschek,
que era o prefeito, me reconheceu e me chamou para cortar a fita com ele. (Até
onde é verdade, até onde é invenção?)
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— Que chique, hein mãe? Amiga
do JK!
Ainda lê o jornal todas as
manhãs, sem óculos depois da cirurgia de catarata, mas não lembra mais do que
leu, minutos depois.
— As notícias são as mesmas de
ontem. Não muda nada.
Nesta semana ela estava à
janela e percebeu a chegada de alguém no portão. De sua posição não reconheceu
quem chegava e me chamou:
— Tem um mendigo na porta, vai
ver o que ele quer. Acho que ele quer café.
— Mãe, é J. Um de seus muitos
filhos (tem cinco filhos e quatro filhas).
Ela ri, recebe o filho com
alegria, e depois volta ao silêncio, em sua cadeira preferida à beira da
janela.
Ao silêncio! Ensurdecedor! Só
posso ficar em silêncio também. A seu lado, segurando sua mão. De vez em quando
ela me olha, E sorri.
Sobre o autor: Paulo Cezar S Ventura, Graduado (UFMG) e Mestre (USP) em Física, e Doutor em Ciências da Comunicação e da Informação, pela Université de Bougogne, em Dijon, França. Exerceu a profissão de professor, no CEFET-MG, onde dirigiu o LACTEA – Laboratório Aberto de Ciência, Tecnologia, Educação e Arte. Hoje se dedica à literatura e se identifica como poeta, cronista, contista e editor da Rolimã Editora Ltda. Autor de diversos livros. Participa do Movimento Vidas Idosas Importam e é membro da Academia Novalimense de Letras. pcventura@gmail.com - @paulocezarsventura
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