Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)
Não
raro, as divinais criaturas celestes, os querubins e as querubinas quedam de
lá, das densas alturas do páramo e dão os ares das suas divinas graças, nos
subsolos da sociedade estratificada. Em um sábado de sol ameno, eu um mero
habitante do subsolo, eu um agente efetivo do aparato repressivo do estado, em
um dia de folga fui passear, fui acompanhado do meu filho. Fomos acompanhar uma
ação social, em uma comunidade carente, que o poder público local estava
promovendo. Era em uma comunidade carente perto do centro da cidade, favela no
português popular brasileiro.
E um pouco de contexto
aqui, um novo governo, surgiu via votos populares, e querubins e as querubinas,
com sangue nos olhos, promoveram uma eugenia social, como programa de governo.
Moradores de ruas foram reprimidos e não um caso isolado, pois uma onda
conservadora ainda paira no ar no momento que estou dedilhando este texto. E
então, querubins e querubinas saíram das alturas e vieram até os subsolos,
juntos com os aparatos repressivos do estado, pôr os moradores de rua, para
correr das ruas das cidades. ‘’Aqui? Aqui não! ’’ Era o slogan dos seres
celestiais, os querubins e as querubinas
De
volta ao começo do texto, no pós-repressão, pois a comunidade mais atingida,
pela onda repressiva estatal, foi aquela que estávamos indo visitar e ver de
perto, os querubins e querubinas dando os ares de suas divinais graças. E nada
de novo no front, passeios a cavalo, algodão doce distribuídas de graça,
lúdicas brincadeiras para a gurizada, demonstrações de artes marciais, música
local bem alta. Com direito a um portentoso caminhão de combate a incêndios,
para a molecada subir e descer. Então caminhando pelo local, eu me deparei com
alguns semideuses e semideusas, que eu conhecia, eles e elas, com as suas
devidas caras amarradas e desanimadas.
O
circo armado, quero dizer a ação social, tinha se dado na entrada da comunidade
periférica, leia-se favela, local que eu vivi até os meus seis anos de idade,
para depois vir a viver em um bairro afastado, um bairro periférico semi-rural.
E eu e o meu filho, deixamos as barracas para trás e caminhamos os quase
trezentos metros da rua central da comunidade.
Sim, tive alguns gatilhos, para além da
minha infância, estive ali várias vezes, a visitar parentes e parentes e
pessoas próximas da minha mãe, que também chegou ali, vindo do interior, aos
seus seis anos de idade. E também recebíamos muitas visitas deste povo em casa.
E ao percorrer aquela pequena avenida, rostos desconhecidos a me encarar,
talvez gente que me viu criança andando por ali. Eram becos e vielas, bares com
os seus personagens típicos e acrescidos de gente estrangeira, que de uma
distância segura, olhavam a cena circense, que se desenrolava a poucos metros à
frente.
E para os ridículos da vida, de muitas
outras vidas, chegamos ao final da avenida, eu vi o que me motivou de fato
estar ali, o antigo presídio regional já não existia mais, só restavam
escombros. Não, a casa de detenção não existia na minha tenra infância, ele foi
construído anos depois. Ficou pronto nove anos depois da minha partida. E
muitas lembranças, pois a minha antiga casa, que obviamente não existia mais,
era vizinha da casa de detenção e a torre de vigilância ficava em cima da minha
antiga casa. E me lembrei da frase do pensador alemão: "Tudo que é
sólido desmancha no ar!". Tiramos algumas fotografias, o meu estômago
embrulhou, ao percorrer do que sobrou do presídio regional. E das muitas
ficções que escrevi, embaladas por coisas que vi e que me contaram sobre o
presídio. Eu um agente efetivo do aparato repressivo do estado, tive muitos
amigos, pessoas próximas, conhecidos que trabalharam e foram apenados naquele
presídio. Sim uma ridiculice, a mera existência de presídios, penitenciárias e
casas de apenados e a própria existência das forças repressivas do Estado.
Fragmento do livro: Dos ridículos da vida. Texto de Samuel da Costa,
contista, poeta e novelista em Itajaí, Santa Catarina.
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