Por Dias Campos (São Paulo, SP)
A serenata.
D. Amélia e seu Deodato conheceram-se em noite
de gala, quando da inauguração do Clube Pinheiros, em São Paulo, no Réveillon
de 1957.
Naquela noite, ele, médico em
ascensão, apaixonou-se pela linda estudante secundarista assim que a viu, tão
deslumbrante estava.
Só havia um único senão que o impedia de ir
convidá-la para dançar: a carranca paterna...
Esse obstáculo, contudo, foi superado graças a
um providencial engasgo.
E como Deodato era o único médico disponível,
tratou de abraçar o pai da adolescente por trás, ao mesmo tempo em que
pressionava repetida e violentamente o seu abdômen.
Isso fez cuspir o camarão que entalara na
garganta.
Essa façanha não apenas garantiu ao jovem
clínico vários agradecimentos, como lhe franqueou a mão da filha à próxima
dança.
Três anos depois, aproveitando-se da recém-escrita
letra à valsa Rapaziada do Brás,
Deodato e alguns amigos acordaram Amélia em serenata, aos pés da janela do
sobrado onde morava. – É claro que seus pais também despertaram. Mas se
mantiveram escondidos, quietos e na torcida.
Ao final, ele a pediu em casamento.
Ela aceitou, e os futuros sogros vibraram de
alegria.
Mas se é verdade que o galanteio por meio das
serestas foi-se apagando com o passar dos anos, também é exato afirmar que a
lembrança daquela noite jamais se extinguiu com o transcurso das décadas.
E foram tantas!...
Nenhuma deixou de ser comemorada. Aliás, a cada
decênio alcançado, Deodato fazia questão de presentear sua esposa com um objeto
recomendado pela tradição.
Até hoje ela guarda, e com todo o carinho do
mundo, a taça de estanho, o bibelô de porcelana, o colar de pérolas, os brincos
de esmeraldas e o bracelete de ouro 18K.
Depois das bodas de ouro, ninguém na família ousou
imaginar que o casal comemoraria sessenta anos de matrimônio. Afinal, pode-se
contar nos dedos os sortudos que conseguiram atingir essa marca.
Ademais, a saúde de seu Deodato não ia lá muito
bem... E houve até quem dissesse que ele não chegaria aos noventa.
Ledo engano.
Daí que os eternos namorados cumulavam cãs, rugas
e uma vontade crescente de cortarem o bolo nas bodas de diamante.
Essa possibilidade, que se transformara em
certeza aos corações avoengos, já era antegozada por boa parte dos familiares,
tamanho o otimismo a que se entregavam os esposos.
E como esse estado de espírito anda de braços
dados com a paciência e com o bem-estar, os anos passaram aos cônjuges sem os
grandes problemas da velhice.
Faltava só um ano para que seu Deodato presenteasse
D. Amélia com uma aliança cravejada de brilhantes, quando os ventos do infortúnio
sopraram impiedosos...
Um derrame aconteceu e abafou a luz que irradiava
do semblante da matriarca.
D. Amélia foi internada às pressas!
Mesmo assim, as sequelas foram muito além da
atrofia do lábio inferior.
Cerca de meses foram necessários à adaptação
à nova realidade, que não prescindiu da mudança para a casa do filho, da
cadeira de rodas, de duas cuidadoras revezando-se dia e noite, das sessões de fisioterapia,
e da abnegação de seu Deodato a tentar reviver a esperança naqueles olhos
entrefechados.
Nesses momentos, o marido lia poemas
para a enferma, mostrava álbuns de família, comentava as notícias dos jornais,
e criticava algumas cenas das novelas.
Essa amorosa terapia, que na verdade
não passava de um monólogo, às vezes precisava ser interrompida, pois seu
Deodato percebia um fio de lágrima a escorrer no rosto da companheira.
A uma semana das bodas, seu Deodato inspirava
dó. Estava magérrimo, não se lembrava mais como era sorrir, e já não fazia
questão de esconder a vermelhidão dos olhos com os óculos escuros.
Mas quando perambulava pelo
escritório, procurando um livro em que pudesse refugiar-se, o passado resolveu
estender-lhe a mão...
E os olhos nonagenários brilharam de
esperança!
Sem pensar em mais nada, ele caminhou como pôde
em direção ao quarto onde D. Amélia ficava. E adentrou tão esbaforido, que a
cuidadora até tomou um susto, pensando que enfartava.
Ele, então, sentou-se defronte à amada,
segurou-lhe as mãos, fixou-a enternecido, e deixou que um jovem trovador, há
muito esquecido do Brás, devolvesse o frescor ao rosto mais lindo que já
conhecera:
“Lembrar, deixem-me lembrar, meus tempos de
rapaz no Brás
As noites de serestas, casais de namorados
E as cordas de um violão cantando em tom
plangente
Aqueles ternos madrigais...”
Quando terminou a serenata, os olhos
dos amantes marejavam saudades...
E confirmando os votos de uma vida, seu Deodato beijou o seu eterno amor; que sorriu, e adormeceu.
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