segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

COMO ENTROU MARIA MATOS NO CONSERVATÓRIO

Por Humberto Pinho da Silva (Porto, Portugal)

 

Compareceu no Conservatório de Lisboa, frágil e deprimida rapariguinha, que vinha prestar prova da admissão.

Diante do ilustre júri, a garotinha, enfiada, permanecia constrangida, contrafeita, estática e de olhos assustadiços.

Nervosamente balanceava as vestes, como as quisesse compô-las, numa tremenda ansiedade.

Condoído pelo inopinado acanhamento, o júri, sussurra-lhe, em voz amiga:

- " Diga, por favor, um poema..."

Enrubesce de pejo, a menina, e erguendo a custo os embaciados olhos:

-" Não me recordo de nenhum..."

Compassivos, insistem, amaciando ainda mais a voz:

- " Pequeno texto, que goste. Qualquer coisa que conheça de cor:

-" Não me lembro de nada..."

Proferiu em voz apertada, temendo e tremendo, mormente os irrequietos bracitos.

Estupefactos perante o inesperado acanhamento, o júri já pensava vedar-lhe o ingresso, quando...

Mirando pensativo a rua, de olhar vago, olhando através da vidraça da janela, o dramaturgo Dom João da Camara – membro do júri, – presenciava, apreensivo, e em silencio a cena deplorável.

Acerca-se da retraída menina, e movido de comovida compaixão, enternecido, sugere:

- "Menina: diga a Avé – Maria..."

Empertiga-se a jovem, perfilha-se, enrija o peito, e em tom forte e sonoro inicia a invocação.

Foi a mais comovedora e terna invocarão à Mãe do Céu, que jamais se ouvira.

O escritor, poeta e dramaturgo, descendente do conhecido navegador João Gonçalves Zarco, num gesto de singular bondade, conseguiu que a inesquecível atriz Maria Matos, pudesse matricular-se no Conservatório.

Não devo terminar a crónica, sem contar a mais sublime faceta da atriz – a gratidão:

Em missiva, (*) datada a 28/06/1910, depositada na posta de Castelo Branco, endereçada a sua mãe, a Senhora Dona Emília da Camara Almeida Garrett, amiga de Maria Matos, escreveu:

(...) A atriz está aqui em "tournée" e parece-me muito atilada (baseava-se na conversa que teve, em sua casa, com Maria Matos,) e confessou-me, que sempre possível passa pelo cemitério, onde repousa Dom João da Camara e, junto do tumulo, reza e  pede-lhe conselhos.( Cito de cor.)

Maria Matos era de sensibilidade delicada e nunca olvidou quem lhe facilitara a fulgurante carreira artística.

*) Carta que minha querida amiga Dona Maria Eugénia da Camara Rebello de Andrade, neta do escritor, teve a gentileza de ma ler.

 

 

 

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