Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)
Em noites de tempestade e frio
Vagueio solitária e
languidamente
Pelo mítico vergal em dor
Choro e sofro
Todas as dores do mundo
Pelo amor que se foi
Por tudo que não veio
E por tudo que nunca virá
Agora, com a cidadania das nuvens totalmente revogada, em definitivo, era
premente viver e viver ao máximo do possível e para além do inimaginável. E
Clarisse Cristal tinha em mente o livro, A cinza das horas. Era pelas A cinzas
das horas, que tudo tinha começado afinal de contas, pois ali seria o seu
derradeiro recomeçar. A bibliotecária foi em busca do livro raro como se fosse
o seu próprio Santo Graal, ou melhor, o livro seria o seu A leste do Éden?
Mas antes ela, Clarisse Cristal, queria e precisava sentir o ar fresco da luz
do dia, era preciso ganhar as ruas, ela precisava sentir a leveza da claridade
da luz do dia. Naquela hora extrema, a moça pouco se importou, com as muitas
dúvidas e as várias e infindáveis incertezas que os novos desafios impostos
diante dela naquele momento.
Ela foi até o cabideiro antigo, de imbuia cor de ébano, ao lado da porta, ela
pegou um sobretudo preto godê inverno masculino, que estava ali, esquecido há
muitas eras glaciais. Vestiu a peça que ela nem sabia de quem era, de
fato e de direito, a peça estava tanto tempo ali estática, que ninguém sabia de
quem era ou como foi parar ali.
Então a bibliotecária começou a saga, foi ao encalço de Anna Victória, com faro
apurado de uma loba faminta. Clarisse Cristal tinha o corpo em chamas e estava
também em alerta total. A então obscura funcionária de uma pequena livraria e
editora independente, ela responsável pelo setor de avaliações e reparos de
livros antigos e
raros.
A bibliotecária lânguida andou até a escada, que dava acesso ao primeiro piso
do prédio que abrigava a livraria e editora. Ela parada na beira do abismo
negro, da álgida fossa abissal, ela estática, na segurança da continuidade mais
que tranquila, da rotina imutável, em oposição atribulada vida real cotidiana,
das pessoas comuns. Ali na parte superior da livraria, o seu Éden particular, a
sua hierática torre de marfim. Lugar ermo onde Clarisse Cristal, desfrutava da
companhia solitária, de gente inacessível, gente velha e gente morta, ela cerda
de raridades caras, a muito esquecidas. A jovem bibliotecária ali estava
cercada por todos os lados, ela ilhada de grimórios, de itens exclusivos de
poucos e para poucos indivíduos privilegiados e privilegiadas. Em suma, ali ela
estava em total segurança, longe das instabilidades do mundo liquefeito e fugaz
de avalanches tecnológicas da era digital.
Clarisse Cristal, por fim, tomou fôlego e desceu as escadas de forma
intempestiva e sem olhar para o que ficou para trás. A avaliadora e
restauradora de livros raros geralmente evitava usar as escadas, que agora
encarava com força e com coragem. Ela, a complexa bibliotecária reclusa,
preferencialmente usava o elevador privativo, do prédio em anexo, onde ficava o
calmo escritório da livraria e editora. Clarisse Cristal, só usava a entrada
frontal, da livraria, quando a loja estava para encerrar ou começar o
expediente. E sempre em momentos raros, que os demais colegas de trabalho, ou
poucos clientes ocasionais, a viam circular pela pequena livraria e editora
independente. Só nesses raros momentos, assim por dizer, davam pela existência
da jovem bibliotecária especialista, em obras antigas e raras.
Os barulhos das botas batendo com força nos degraus chamaram a atenção de todos
e todas, que estavam no primeiro piso da livraria. O espanto maior foi quando
Clarisse Cristal percorreu o corredor principal da livraria.
— Aonde será que vai, a nossa lacrimosa princesinha gótica? E com tanta pressa
assim? A nossa querida Rapunzel, enclausurada na turris eburnea! — Disse
entre dentes Anna Victória, que estava parada debruçada no frio balcão, de
mármore Carrara, no setor de embrulhos para presentes ao ver Clarisse passar.
Clarisse parou e viu o livro A cinza das horas, postado no meio na gélida da
bancada de mármore, enquanto a funcionária do setor de embrulhos tomava sem
pressa um cafezinho, a embrulhadora estava atrás de Anna Victória.
Clarisse notou que Anna Victória se comportava de forma afetada, como se fosse
uma sofisticada e deslocada europeia, em trânsito, perdida nos suarentos
trópicos, exilada em um mundo em desenvolvimento, por algum acidente do
desígnio destino.
Clarisse Cristal ficou parada
olhando para frente, a poucos metros da porta de entrada, esperando e esperando
o que nem ela sabia, o que ao certo estava esperando. Se ela olhasse para trás,
poderia ver todo o estafe da pequena livraria parado, sem nada entender a
repentina quebra da rotina da jovem bibliotecária. Da simpática senhora negra
quer servia café, vestida elegantemente, passando pelo bem alinhado operador da
fotocopiadora, o pequeno agrupamento de uniformizados vendedores e vendedoras e
indo terminar no sofisticado subgerente da livraria, com seu paletó impecável
feito sobre medida. Não havia fregueses na livraria naquele início de semana,
naquele início de manhã sonolenta e outonal.
Estavam todos estáticos, esperando
o desenrolar daquela cena inusitada. Clarisse Cristal então olhou para trás e
se voltou lentamente para Anna Victória. A jovem bibliotecária, não estava
interessada em mais ninguém, nada importava para Clarisse Cristal àquela hora
extrema. A bibliotecária andou em direção da outra de forma bem lenta, levou a
mão ao ar inda parar próximo ao rosto de Anna Victória. Com o dedo em riste, a
jovem bibliotecária Clarisse Cristal, delicadamente afastou os longos cabelos
trigais, da orelha esquerda de e levou os seus lábios carnudos até o ouvido, da
atônita promotora sênior de vendas. Anna Victória, a vendedora sênior, era toda
arrepios, naquela derradeira hora extrema, naquele momento
confuso.
— Eu, minha querida! Definitivamente, não tenho vocação nenhuma para as danças
das aranhas! Minha cara, só te possuiria caso tu tivesses algo grandiosamente
enorme bem no meio das minhas belas pernas! — Soprou de forma álgida e sensual,
para dentro da mente da frágil Anna Victória, que corou. Clarisse voltou para
sua marcha, seguiu andando de forma teatral, como se estivesse encenando, uma
chinfrim opereta bufa barata, encenada em uma tasca qualquer.
A bibliotecária foi até a
saída da livraria e foi tragada pela luz do dia, sob os olhares atônitos de
todos e todas. Clarisse gostaria àquela hora que estivesse recoberta pelo manto
escuro, da mais negra noite fria de inverno, banhada pela lua em sangue. Mas, o
prazer do inesperado, de sentir a claridade da luz do dia, começava a atrair a
antiga cidadã das nuvens. Um novo mundo se descortinava, bem diante dela,
naquele exato momento, agora tudo era possível, para a jovem e corajosa
Clarisse Cristal. A antiga cidadã das nuvens, a chorosa e tímida princesa
gótica enclausurada na segurança da ebúrnea torre de marfim, já não existia
mais. Era mesmo hora de mudar de vida, passou da hora na verdade, de
experimentar novos sabores, novas sensações, respirar novos ares, sentir novos
olhares e em outros lugares. A Bibliotecária sentia que tinha passado da hora,
de experimentar novos cenários, com as suas mais que infinitas possibilidades.
Foi assim que Clarisse Cristal
passou a pensar e agir, naquele que seria o seu ponto de virada na vida, no
íntimo e na mente da jovem bibliotecária.
Fragmento do livro: Em dias
de sol e calor, em noite de tempestades e frio. Texto de Samuel da Costa, escritor,
contista, poeta e novelista em Itajaí, Santa Catarina.
Contato: samueldeitajai@yahoo.com.br
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