domingo, 1 de setembro de 2024

CRÔNICA DO DIA: ABOMINABLE ANNO DOMINI

 Por Clarisse Cristal (Balneário Camboriú, SC)

 

‘’ Tenho diversos sonhos, tantas metas

Esqueço-me, dando voz a um poeta

Letras, palavras se fazem insuficientes

Reflito, tudo isto se esvai do meu ser

Permito-me sonhar e amar com ousadia. ’’

Fabiane Braga Lima.

 

Eu não sei como, mas desconfio das idas e vindas da minha mãe ao salão de beleza, foi lá que ela ficou sabendo de Xinxiam. Não! Não é uma província perdida nos rincões da China ou outro país asiático qualquer. E sim é uma pequena loja de decoração, perdida aqui perto de casa mesmo, perto para os padrões dos grandes centros urbanos da vida.

Então lá fomos nós, pegar a estrada, visitar o oriente ao oriente do oriente do extremo oriente em um lugarejo esquecido por Deus. Depois de anunciar a nova aventura de final de semana, a minha progenitora, feliz da vida, foi fazer as malas e o meu pai o planilheiro de fé, mostrando quem manda, foi fazer os cálculos e mais cálculos para ver quanto vai custar a aventura.

E eu? Pois bem, uma chama ardeu dentro de mim, uma luz negra e álgida, pois algo dentro de mim dizia que algo iria acontecer, para além das breguices de ir ao mercadejo local, para comprar imitações baratas de pinturas e porcelanas das dinastias Qin, Han, Sui e Tang. Peças extraídas diretamente da produção em massa, para a cultura de massa.

E do início dessa aventura de final de semana, não poderia ser diferente, a começar com o clichê do meu pai reclamar do excesso de bagagens e de gastos e do mutismo sorridente da minha mãe. E dando sequência ao ganhar a estrada congestionada e para não cair em detalhes indigestos e sonolentos de quase três horas rodando no caos do trafego terrestre.

E ao chegar no destino final, e ver a lojinha acanhada condizia com a cidade acanhada, onde estava localizada e, lá estava os clichês dos clichês, da pracinha, ao lado da igreja rodeada de pequenas lojas, consultórios e serviços afins. E uma olhada mais de perto, com a sua fachada vermelha com fontes misturavam a escrita oriental e ocidental, um alerta gritou dentro de mim.

E gritou mais alto, quando entramos na lojinha, que em meio à miscelânea de prateleiras de bambu, uma bancada de vidro, paredes decoradas com pinturas orientais, tigres, garças, dragões, mulheres em trajes orientais. Eu encontrei o que tanto procurava, atrás e acima do balcão, ladeada de duas espadas Chinesas pretas decorativas, uma bandeira da tríade chinesa. E um senhor de idade avançada, ladeado por um jovem orientais, estavam trajados com roupas ocidentais.

Passado o meu susto inicial, logo constatei que não era isto, pois era mais um clichê, uma obviedade das obviedades de mais um dia comum, no mundo em que vivemos. Enquanto o meu pai se adiantava indo ao encontro e de encontro com o patriarca e o possível dono da loja, saudando em mandarim e o os orientais fechando a cara. E eu dei conta que tinha perdido a minha mãe de vista. E a procurei com os olhos, pois o meu alarme interno ainda estava disparado em alerta total

A encontrei olhando para o chão, apurei o olhar e vi uma mulher abaixada, estava arrumando uns itens, no compartimento estanque. Era uma funcionária da loja, calculei, ela usava trajes chineses típicos e ignorava a minha mãe por completo. E foi quando ela se levantou e encarou a minha mãe, que por fim encontrei o que procurava. Para além das vestes de seda, a cor de ébano, cabelos cacheados e olhos castanhos rasgados e a empáfia de quem ocupa um cargo que estava abaixo do que merecia.

E tive a plena certeza quando a jovem e belíssima mulher olhou para mim e pude a ver as sombras nos olhos dela. Não era dor, frustração, nem vergonha ou amarguras e em uma leitura fria era tudo misturado. E devolvi o meu olhar para a dama vestida de seda e nós entendemos, era o início de uma amizade sincera e fortuita.

Fragmento do livro, Do diário de uma louca,  de Clarisse Cristal, poetisa, contista, novelista e bibliotecária de Balneário Camboriú, Santa Catarina.

 


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