domingo, 1 de setembro de 2024

DOS RIDÍCULOS DA VIDA: AS COISIFICAÇÕES NA SOCIEDADE ESTRATIFICADA E A MICROFÍSICA DO PODER

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

 

Ouvi ao longo da minha vida adulta, que no país onde eu vivo, o ter é mais importante que o ser e que este é um país patrimonialista. E vou além deste pressuposto, o ter é sim importante e sim este é país patrimonialista, mas o ser de uma determinada etnia, ser de uma determinada família e ser de uma determinada localidade, vai sim determinar a facilidades e as dificuldades ao longo da vida. Às vezes ter uma boa formação acadêmica ou ter um talento nato qualquer, nada quer dizer e olho que eu usei o ter e não o ser. Pois ou se nasce com talento, ou se herda, ou busca ou se adquiri uma boa formação escolar e universitária. E o que se leva a outra questão grave, que é a consciência de classe, ter consciência das agruras que passamos e que vamos passar ao longo da vida, falo aqui, através dos olhos de quem é do andar de baixo. Da base empobrecida da sociedade estratificada.

E como este espaço é curto e a ideia aqui não é fazer uma análise profunda da sociedade em que eu vivo, neste exato momento em que componho este texto. E tendo a consciência, de que analisar micro fragmento, que por si só, não quer dizer nada. Pois a realidade é bem mais vasta e complexa que os instantes que passamos no período das nossas curtas existências neste plano.

Indo direto aos assuntos, no início do segundo decênio do século XXI, eu o marxista e agente efetivo do aparelho estatal de segurança pública, que experimentava um particular isolamento social muito particular. E eu estava fazendo a segurança de um aparato estatal, um órgão colegiado de fiscalização e prevenção de desastres naturais. A sede da instituição ficava, e fica no momento que dedilho este texto, em um lugar ermo da cidade, próximo a uma importante rodovia federal. Uma zona industrial e comercial, o espaço pouco recomendado para frequentar, quando a noite cai e as luzes se apagam. Eu o homem negro, descendente de pessoas que foram escravizadas e de nativos sul-americanos, que foram massacrados.

E lá estava eu, devidamente uniformizado, em um belíssimo início de uma tarde ensolarada de uma quarta-feira amena. Em mais um belo dia no paraíso, até relembrar do dia que eu senti as chaves, todas agrupadas em molho e tilintando no ar, enfiadas a poucos centímetros da minha cara. E nessa vespertina quarta-feira, caída de lá, das densas alturas, do páramo tranquilo, uma querubina de ébano, que desceu até o subsolo, o estacionamento da entidade, a mesma semideusa que que me apresentou as chaves e me ensinou para que elas eram usadas. E ela não estava sozinha, ela desceu as escadarias do Tártaro, junto com uma turma da quinta série. Um pouco de contexto aqui, pois a referida semideusa, até então era o elemento de ligação do aparato estatal e a sociedade civil e militar, uma dita relações públicas.

Foi então que a querubina de ébano, apresentou os veículos motorizados, de tração quatro por quatro e os pequenos barcos, que a instituição mantinha. Contudo e entretanto, para a infelicidade deste escriba, lá estava eu fazendo a minha ronda na pequena garagem. E para os muitos ridículos da vida, deste e de outras possíveis vida, eu estava disposto nas margens dos veículos terrestres e aquáticos e na ordem e importância, depois que as peças foram apresentadas de forma solene pela imponente e orgulha querubina, para a jovem plateia a eu fui apresentado assim: ‘’ ─ E este é nosso guarda patrimonial! ’’ ─ Falou em tom grave e com cara de desprezo e se naquele momento o ser mitológico, esqueceu de mencionar o meu nome ou simplesmente se recusou a dizer eu não sei dizer.

Na minha primeira infância, o meu saudoso pai vivia me chamando de marcha lenta, falava assim por questão óbvia. Para sorte minha, este apelido não pegou, mas que somente àquela hora, quando o meu prenome e sobrenome desapareceram, que eu percebi, o que ocorria diariamente. Cedo ao chegar no trabalho, a querubina ébano e relações públicas, animadamente entre sorrisos ebúrneos cumprimentava todos pelos nomes. E quando passava perto de mim, ela indo rumo ao páramo, somente parava por segundos e com ar grave acenava para mim com um leve subir e descer de cabeça sem nada dizer. Uma linguagem não verbal e não escrita, e a ferramenta mais antiga, a forma mais rudimentar de expressar contentamentos e descontentamentos. E termino aqui este breve relato, dizendo que entre sincrônicos e diacrônicos todos e todas terminaram muito bem, pelo menos uns é umas terminaram melhores que os outros e outras.

 

Do livro: Dos ridículos da vida. Samuel da Costa, contista, poeta e novelista em Itajaí, Santa Catarina.

Contato: samueldeitajai@yahoo.com.br

 

 

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