Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)
Ouvi ao longo da minha vida
adulta, que no país onde eu vivo, o ter é mais importante que o ser e que este
é um país patrimonialista. E vou além deste pressuposto, o ter é sim importante
e sim este é país patrimonialista, mas o ser de uma determinada etnia, ser de
uma determinada família e ser de uma determinada localidade, vai sim determinar
a facilidades e as dificuldades ao longo da vida. Às vezes ter uma boa formação
acadêmica ou ter um talento nato qualquer, nada quer dizer e olho que eu usei o
ter e não o ser. Pois ou se nasce com talento, ou se herda, ou busca ou se
adquiri uma boa formação escolar e universitária. E o que se leva a outra
questão grave, que é a consciência de classe, ter consciência das agruras que
passamos e que vamos passar ao longo da vida, falo aqui, através dos olhos de
quem é do andar de baixo. Da base empobrecida da sociedade estratificada.
E como este espaço é curto e a
ideia aqui não é fazer uma análise profunda da sociedade em que eu vivo, neste
exato momento em que componho este texto. E tendo a consciência, de que
analisar micro fragmento, que por si só, não quer dizer nada. Pois a realidade
é bem mais vasta e complexa que os instantes que passamos no período das nossas
curtas existências neste plano.
Indo direto aos assuntos, no
início do segundo decênio do século XXI, eu o marxista e agente efetivo do
aparelho estatal de segurança pública, que experimentava um particular
isolamento social muito particular. E eu estava fazendo a segurança de um aparato
estatal, um órgão colegiado de fiscalização e prevenção de desastres naturais.
A sede da instituição ficava, e fica no momento que dedilho este texto, em um
lugar ermo da cidade, próximo a uma importante rodovia federal. Uma zona
industrial e comercial, o espaço pouco recomendado para frequentar, quando a
noite cai e as luzes se apagam. Eu o homem negro, descendente de pessoas que
foram escravizadas e de nativos sul-americanos, que foram massacrados.
E lá estava eu, devidamente
uniformizado, em um belíssimo início de uma tarde ensolarada de uma
quarta-feira amena. Em mais um belo dia no paraíso, até relembrar do dia que eu
senti as chaves, todas agrupadas em molho e tilintando no ar, enfiadas a poucos
centímetros da minha cara. E nessa vespertina quarta-feira, caída de lá, das
densas alturas, do páramo tranquilo, uma querubina de ébano, que desceu até o
subsolo, o estacionamento da entidade, a mesma semideusa que que me apresentou
as chaves e me ensinou para que elas eram usadas. E ela não estava sozinha, ela
desceu as escadarias do Tártaro, junto com uma turma da quinta série. Um pouco
de contexto aqui, pois a referida semideusa, até então era o elemento de
ligação do aparato estatal e a sociedade civil e militar, uma dita relações
públicas.
Foi então que a querubina de
ébano, apresentou os veículos motorizados, de tração quatro por quatro e os
pequenos barcos, que a instituição mantinha. Contudo e entretanto, para a
infelicidade deste escriba, lá estava eu fazendo a minha ronda na pequena garagem.
E para os muitos ridículos da vida, deste e de outras possíveis vida, eu estava
disposto nas margens dos veículos terrestres e aquáticos e na ordem e
importância, depois que as peças foram apresentadas de forma solene pela
imponente e orgulha querubina, para a jovem plateia a eu fui apresentado assim:
‘’ ─ E este é nosso guarda patrimonial! ’’ ─ Falou em tom grave e com cara de
desprezo e se naquele momento o ser mitológico, esqueceu de mencionar o meu
nome ou simplesmente se recusou a dizer eu não sei dizer.
Na minha primeira infância, o
meu saudoso pai vivia me chamando de marcha lenta, falava assim por questão
óbvia. Para sorte minha, este apelido não pegou, mas que somente àquela hora,
quando o meu prenome e sobrenome desapareceram, que eu percebi, o que ocorria
diariamente. Cedo ao chegar no trabalho, a querubina ébano e relações públicas,
animadamente entre sorrisos ebúrneos cumprimentava todos pelos nomes. E quando
passava perto de mim, ela indo rumo ao páramo, somente parava por segundos e
com ar grave acenava para mim com um leve subir e descer de cabeça sem nada
dizer. Uma linguagem não verbal e não escrita, e a ferramenta mais antiga, a
forma mais rudimentar de expressar contentamentos e descontentamentos. E
termino aqui este breve relato, dizendo que entre sincrônicos e diacrônicos
todos e todas terminaram muito bem, pelo menos uns é umas terminaram melhores
que os outros e outras.
Do livro: Dos ridículos da
vida. Samuel da Costa, contista, poeta e novelista em Itajaí, Santa
Catarina.
Contato:
samueldeitajai@yahoo.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário