Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)
Na minha tenra idade, na minha
primeira infância, vivenciei duas grandes cheias e uma grave crise econômica,
falo do oitavo decênio do século XX. Tragédias climáticas à parte, na verdade
um dos desdobramentos da primeira grande cheia, vou relatar, o que hoje parece
um sonho. Um difuso sonho perdido, na minha meninice distante, pois transpor
sonhos noturnos, que geralmente esvaem com a luz de um novo dia e o que sobram
são impressões vagas.
Falo das poucas lembranças que
não se perderam no tempo e no espaço, o que de fato houve, foi uma ponte que a
primeira cheia levou, uma pinguela, uma pequena ponte, feita de cabos de aço e
madeira. Uma pinguela que balança e balança e não cai, daquelas que fechamos os
olhos antes de pôr os pés e suspiramos aliviados ao término da transposição. A
tal pinguela, que a enchente levou, dividia os dois maiores bairros mais
populares, da cidade em que vivo no momento que dedilho este texto. No lugar,
surgiu uma batera, que fazia a travessia entre os bairros, era um pequeno
barco. Um cabo de aço, cruzava as margens opostas, uma corda presa na batera e
um grande anilha, conectado no cabo de aço ajudavam na travessia, para que a
correnteza não arrastasse a pequena embarcação. Um barqueiro, muito magro e
queimado pelo sol, ia e vinha cruzando os poucos metros que separavam os dois
bairros. Com as mãos revestidas de luvas de raspa, típicas para trabalhos da
construção civil e afins. O barqueiro, segurava o cabo de aço, dava impulso
para a pequena embarcação cruzar o rio retificado.
Hoje está lembrança vaga, me
faz lembrar do barqueiro de Hades, o barqueiro Caronte a cruzar os rios Estige
e Aqueronte, pois o barqueiro da minha infância perdida, recebia moedas para
fazer a travessia. E avançando um pouco mais, nas minhas lembranças vagas, me
lembro da volta para casa, pois fomos fazer uma visita familiar. Na outra
margem do rio vivia a família do irmão do meu pai, que por sua vez era casado
com a tia da minha mãe. E lá fomos nós, os homens da minha família, o meu pai,
o meu irmão mais velho e eu.
Da visita familiar, eu não me
lembro de nada, pois são lembranças que o tempo fez questão de apagar do meu
palácio das memórias, o que restou desse dia, foi a travessia do rio, do que
seria o meu Rubicão. O que sobrou para mim seria um sonho ridículo como todos
nos sonhos vívidos assim o são, na minha visão é claro. O meu falecido pai, um
tanto alcoolizado naquele dia, o meu irmão e eu parados na margem de um rio
retificado. O meu passa os cobres para o barqueiro maltrapilho, com a sua
surrada luva de couro, avisando ao meu pai que ele não tinha dinheiro o
suficiente para nós três transpor o Rubicão. Lembro do meu pai, mandar eu e o
meu irmão subirmos no barco, anos mais tarde em uma conversa com o meu irmão,
ele me fez lembrar desse episódio. O meu irmão, lembrou que ele chorou nessa
hora, pensando que o nosso pai iria abandonar a gente.
Então uma vez dentro da
batera, o barqueiro, o meu irmão, eu e a bicicleta do meu pai. Para os
ridículos da vida, o meu pai acendeu um cigarro, daqueles bem baratos, e caiu
na água. Para os muitos ridículos da vida, o meu saudoso pai atravessou o rio a
nado, com um cigarro na boca, por falta de algumas moedas e a lembrança de
vê-lo parar de nadar. O meu pai parar de nadar, segurar com uma mão na amurada
da batera e com a outra ao cigarro na boca, dar uma senhora tragada tirar o
cigarro da boca e sopra uma longa fumaça. Ressaltando aqui, que nas duas
margens do rio haviam duas pequenas multidões atônitas com a cena que se
desenrola.
E se foram todos, os meus
tios, o meu pai e o meu irmão e o barqueiro e as suas idas e vindas aquáticas
entre bairros. São borrões no meu palácio da memória.
Do livro: Dos ridículos da
vida. Samuel da Costa, escritor, contista, poeta e novelista em Itajaí,
Santa Catarina.
Contato:
samueldeitajai@yahoo.com.br
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