domingo, 1 de outubro de 2023

DOS RIDÍCULOS DA VIDA: DO QUE A MEMÓRIA NÃO GUARDOU!

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

 

        Componho este texto impactado profundamente, pela perda do meu querido irmão. Quando a memória não é o suficiente, o que sobra são as fortes emoções, a bem da verdade somos permeados e nos molda na vida em sociedade são as emoções.

      E em uma volta para um passado não muito recente, no início do oitavo decênio do século XX. Então duas subsequentes grandes e fortes cheias, inundaram a minha cidade, delas eu tenho vagas lembranças, pois eu era criança na época. Se eu fosse um historiador ou um jornalista eu faria uma pesquisa elaborada. Como não sou uma coisa e nem outra, eu prefiro as sensações, pois os detalhes maçadores de ser um deslocado por desastre natural e sendo criança é uma tragédia em si.

         Éramos seis, meu pai, minha mãe, o meu irmão, e duas irmãs e foco aqui em um episódio que por si, não era uma grande tragédia e nem mesmo um ridiculices qualquer. Mas o meu foco aqui, não será guiado então somente pelas sensações, pois me lembro que antes do nosso desterro demos uma pausa na escola que estudávamos, passamos ali uma noite. Era uma pequena discussão entre adultos, era uma discussão de separar os homens do resto das famílias. Creio que o local estava lotado e alguém teve a brilhante ideia de se livrar de boa parte dos flagelados.

Eu não me lembro como foi o nosso segundo desterro, só lembro que estar na frente de um pequeno hotel e da gente avançando sem pedir licença, adentramos para dentro do hotel. Uso a memória do meu irmão recém falecido, que anos mais tarde lembrava do gerente do hotel estupefato ensaio uma resistência.

         Ocupamos os quartos de forma ordeira, mas foi no cair da noite que senti o tamanho da encrenca que a gente se meteu, como não estávamos em uma estação de férias, as dispensas do hotel estavam vazias. E para os ridículos da vida a fome, ou a ideia da fome é uma tragédia em si e bem me lembro eu estava no colo da minha mãe. Como eu não era o mais novo, e também não era uma criança de colo, porque a minha mãe me colocou no colo dela eu não sei dizer. Só sei que o que tínhamos para comer era um pirão, farinha mandioca com feijão ralo. Ao colocar a comida da minha boca, posso dizer que nada senti, não era um gosto ruim, era um nada e o nada é uma invenção humana tipicamente.

O que ficou na minha lembrança foi de eu olhar para cima, para a minha mãe e dizer que eu não iria comer aquilo. E a sensação de olhar a minha com os olhos rasos d’água ponderar que só tínhamos aquilo para comer e que eu não comesse iria dormir com fome. E eu dizendo dono de mim que então eu iria dormir com fome e assim o foi, eu e a minha mãe nos entendemos bem, só descobrir isso anos mais tarde. E tudo poderia ter acabado por aí, caso não tivesse um senhor a poucos centímetros da minha mãe, ele estava colado à parede, era um homem de longas barbas negras, usava óculos grossos e era muito magro. E vi o desalento daquele homem, que olhou para mim, eu criança birrenta, ele olhou para mim e olhou para baixo. E depois de olhar o meu irmão mais velho e as minhas irmãs mais novas jantarem, nós recolhemos ao nosso quarto a nossa morada efêmera. Eis que alguém bateu à porta, era uma funcionária do hotel que me trazia o meu jantar, a jovem senhora disse que o desconhecido homem ficou comovido e tinha arrumado algo para eu comer. Era somente um copo de café com leite e uma enorme massinha para uns e pão doce para outros, eu desgostei o meu jantar improvisado aos olhos dos meus irmãos.

       À volta do desterro, eu tenho poucas lembranças, somente de ocuparmos o baú de um caminhão peixeiro, eram famílias que lotavam a traseira do caminhão e me lembro da pequena janela no alto que estava aberta. A única luz que tínhamos, nós os deslocados por desastre natural.

Fragmento do livro Dos ridículos da vida, de Samuel da Costa, contista, poeta e novelista em Itajaí, Santa Catarina.

Contato: samueldeitajai@yahoo.com.br

 

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