Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)
Componho este texto impactado
profundamente, pela perda do meu querido irmão. Quando a memória não é o
suficiente, o que sobra são as fortes emoções, a bem da verdade somos permeados
e nos molda na vida em sociedade são as emoções.
E em uma volta para um passado não muito
recente, no início do oitavo decênio do século XX. Então duas subsequentes
grandes e fortes cheias, inundaram a minha cidade, delas eu tenho vagas
lembranças, pois eu era criança na época. Se eu fosse um historiador ou um jornalista
eu faria uma pesquisa elaborada. Como não sou uma coisa e nem outra, eu prefiro
as sensações, pois os detalhes maçadores de ser um deslocado por desastre
natural e sendo criança é uma tragédia em si.
Éramos seis, meu pai, minha mãe, o meu
irmão, e duas irmãs e foco aqui em um episódio que por si, não era uma grande
tragédia e nem mesmo um ridiculices qualquer. Mas o meu foco aqui, não será
guiado então somente pelas sensações, pois me lembro que antes do nosso
desterro demos uma pausa na escola que estudávamos, passamos ali uma noite. Era
uma pequena discussão entre adultos, era uma discussão de separar os homens do
resto das famílias. Creio que o local estava lotado e alguém teve a brilhante
ideia de se livrar de boa parte dos flagelados.
Eu não me lembro como foi o
nosso segundo desterro, só lembro que estar na frente de um pequeno hotel e da
gente avançando sem pedir licença, adentramos para dentro do hotel. Uso a
memória do meu irmão recém falecido, que anos mais tarde lembrava do gerente do
hotel estupefato ensaio uma resistência.
Ocupamos os quartos de forma ordeira,
mas foi no cair da noite que senti o tamanho da encrenca que a gente se meteu,
como não estávamos em uma estação de férias, as dispensas do hotel estavam
vazias. E para os ridículos da vida a fome, ou a ideia da fome é uma tragédia
em si e bem me lembro eu estava no colo da minha mãe. Como eu não era o mais
novo, e também não era uma criança de colo, porque a minha mãe me colocou no
colo dela eu não sei dizer. Só sei que o que tínhamos para comer era um pirão,
farinha mandioca com feijão ralo. Ao colocar a comida da minha boca, posso
dizer que nada senti, não era um gosto ruim, era um nada e o nada é uma
invenção humana tipicamente.
O que ficou na minha lembrança
foi de eu olhar para cima, para a minha mãe e dizer que eu não iria comer
aquilo. E a sensação de olhar a minha com os olhos rasos d’água ponderar que só
tínhamos aquilo para comer e que eu não comesse iria dormir com fome. E eu
dizendo dono de mim que então eu iria dormir com fome e assim o foi, eu e a
minha mãe nos entendemos bem, só descobrir isso anos mais tarde. E tudo poderia
ter acabado por aí, caso não tivesse um senhor a poucos centímetros da minha
mãe, ele estava colado à parede, era um homem de longas barbas negras, usava
óculos grossos e era muito magro. E vi o desalento daquele homem, que olhou
para mim, eu criança birrenta, ele olhou para mim e olhou para baixo. E depois
de olhar o meu irmão mais velho e as minhas irmãs mais novas jantarem, nós recolhemos
ao nosso quarto a nossa morada efêmera. Eis que alguém bateu à porta, era uma
funcionária do hotel que me trazia o meu jantar, a jovem senhora disse que o
desconhecido homem ficou comovido e tinha arrumado algo para eu comer. Era
somente um copo de café com leite e uma enorme massinha para uns e pão doce
para outros, eu desgostei o meu jantar improvisado aos olhos dos meus irmãos.
À volta do desterro, eu tenho poucas
lembranças, somente de ocuparmos o baú de um caminhão peixeiro, eram famílias
que lotavam a traseira do caminhão e me lembro da pequena janela no alto que
estava aberta. A única luz que tínhamos, nós os deslocados por desastre
natural.
Fragmento do livro Dos ridículos da vida, de Samuel da Costa, contista, poeta e novelista em Itajaí, Santa Catarina.
Contato:
samueldeitajai@yahoo.com.br
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