Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)
Lá estava sendo contido, por
dois escudeiros, e um terceiro membro do aparato repressivo, me apontando uma
escopeta, a poucos centímetros da minha cara, era o aparato repressivo do
estado fazendo o seu trabalho. Um pouco de contexto, o lugar é no bairro beira
rio, em uma zona portuária e industrial da cidade em que vivo, e eu estava
próximo de um estaleiro. Mais um pouco de contexto, era o início do século XXl,
eu era então o diretor de inserção social do Diretório Central dos
Estudantes-DCE. Mais um pouco de contexto, recém eleito o primeiro presidente
de esquerda, do país que vinha pela primeira vez à cidade inaugurar um navio
gaseiro.
Da minha ida para a faculdade
até eu assumir o tal cargo, de segundo escalão do DCE, fica para depois. Por
hora, fica a cena, que uma pequena multidão de funcionários públicos
protestava, a poucos metros do estaleiro. Mas, o porquê nós estávamos
protestando afinal? Contra a reforma da previdência social, que tirava direitos
dos trabalhadores, da máquina pública nos três níveis.
E voltando para o início do
texto, ao início de tudo, eu fui sim ao estaleiro para saudar o novo
presidente, do meu país, que ajudei a eleger aliás. Até eu dar de cara com uma
pequena multidão de manifestantes, eu passei ao largo. Olhei bem para a cara
dos manifestantes, bem alinhados, bem perfumados, bem-vestidos, brancos, logo
pensei, na onda vermelha, que varreu o país de norte a sul. E lá estavam eles e
elas, os desalojados do poder, desalojados de cargos comissionados. E sim, eu
segui em frente, andei a poucos metros e passei por um cordão de isolamento,
era a tropa de choque, o aparato repressivo do estado local.
Ao chegar ao meu destino, me
deparei com outra pequena aglomeração na porta do estaleiro. Conversei em
particular com outro companheiro de partido, e o choque de realidade foi
grande, algo me atingiu no âmago mais que profundamente. Olhei para os
manifestantes a poucos metros, e vi faixas sendo erguidas, um tom mais popular,
tomou conta da manifestação, dei adeus para o meu bom amigo, dizendo que eu
iria voltar para o meu povo.
Voltando para o meu ponto de partida, vi alguns bons amigos e boas amigas, conhecidos e conhecidas, do movimento sindical e do movimento estudantil. E lá estava a ala sindical do meu partido e radicais de um partido trotskista, logo percebi que a ala sindicalista, do meu partido, que é o mesmo do presidente, tomou as rédeas da manifestação. E os tais elementos do partido radical trotskista, se concentraram à beira da manifestação.
Resumo da ópera, o avião
presidencial, passou pelas nossas cabeças, contexto, a cidade ao lado, tem um
aeroporto regional e o um grande rio faz a divisa das cidades. De lá, a
comitiva presidencial, pegou um helicóptero e aterrissou no estaleiro. Avistei
um amigo de infância, ele no meio da tropa, ele estava devidamente uniformizado
e segurando uma câmera filmadora último tipo. Vamos chamá-los de Esteves, eu
dei um oi amigável, para o Esteves, que me devolveu, nos chamando de
arruaceiros e que deveríamos estar presos. Dei adeus ao Esteves! E o universo
não se reconstruiu, sem ideal e sem esperanças.
Foi o avião presidencial,
passar acima das nossas cabeças, que a tropa do aparato repressivo do estado,
partiu para cima de nós, manifestantes. E lá estava eu a frente e no meio da
manifestação, eu ao lado de um outro partidário meu, um assessor parlamentar,
bem mais experiente que eu. Ele me instruiu como fazer uma corrente humana, e
entrelaçamos os braços e as pernas, me instruiu fazer com a pessoa ao meu lado.
O sujeito, forçou o meu braço e a minha perna e automaticamente, forcei o meu
outro braço e a perna do sujeito ao lado. Formamos assim, uma corrente humana
forte, pois a nossa frente um aparato repressivo, caminhava lentamente na nossa
direção. Não empunhavam cassetes e nem sprays de pimenta à vista. Só a
escuderia, na vanguarda e na retaguarda soldados com as suas escopetas
apontadas para nós, manifestantes.
Dos muitos ridículos da vida,
eu um dirigente do movimento estudantil, eu lá no distante início do século
XXl. Com o avanço da tropa de choque eu assisti uma corrente humana se
desfazer, enquanto militantes trotskistas, apavorados de medo se encolhiam. Eu,
vi três militantes sindicalistas marxistas detidos, manifestantes sindicalistas
protestando, contra os atos, de um governo que acabaram de eleger, eu
inclusive.
Particularmente destaco aqui,
um bom amigo professor, um professor de geografia, não pesando mais de sessenta
quilos, usando óculos de fundo de garrafas, ele sendo imobilizado por quatro
milicianos e um quinto jogando spray de pimenta na face do professor.
Dos muitos ridículos da vida,
ao abaixar a poeira, depois do fuzuê toda, da boa recepção que temos ao
novíssimo presidente da república, lá no distante início do século XXl. Ao
voltar para a vida rotineira, o eu dirigente do segundo escalão do DCE, ao
percorrer os corredores da faculdade, pessoas me dando parabéns. Ridículos logo
pensei, pois não eram bons amigos e amigas, eram opositores, na maioria. Depois
de uns cinco parabéns eu comecei a ficar preocupado, e eu fui para a sede do
diretório estudantil, lá chegando entre olhares atônitos, olhares sorridentes e
mais parabéns. Até uma espalhafatosa estudante de jornalismo, uma boa pessoa,
veio até a minha pessoa me avisando que eu estava em uma página, de uma revista
de circulação nacional. Uma revista de variedades recém-lançada. Eu? Em uma
página de uma revista de circulação nacional?
Partirmos para uma banca de
revistas, a poucos metros da faculdade, eu disse que partimos, pois fomos eu a
esfuziante estudante de jornalismo, comprar a tal revista de circulação
nacional, sim sou do tempo em que elas ainda existiam, as bancas de revistas e
jornais.
Comprada a tal revista de
circulação nacional e fomos até a página três, e a chamada assim dizia: ‘’O sul
do país recebe o no presidente embaixo do protesto! ’’. E lá estava eu, ou
parte de mim pelo menos, eram dois escudeiros me contendo, um outro policial
apontando uma escopeta a poucos centímetros da minha cara. A minha cara
aparecia parcialmente acima dos escudos e o meu tênis surrado suspenso no ar.
Problemas a vista logo pensei! E não tardaram mesmo!
Fragmento do livro: Dos ridículos da vida, de Samuel da Costa.
Contato: samueldeitajai@yahoo.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário