Por Clarisse Cristal (Balneário Camboriú, SC)
Elias Grael de longe, vivia com a cabeça nas brancas nuvens, mas para um desavisado qualquer era assim que o comerciante vivia, nas brancas nuvens, alienado do que ocorria ao seu redor. A memória eidética, no entanto, do dono da barraca de cachorro quente, que ficava na praça na zona portuária, contava outra história. Mattos Gama, era um dos poucos que sabiam do dom inusitado do dono do pequeno comércio. O detetive Mattos Gama ia até a presença de Elias, por vários motivos. Motivos esses que, iam desde de fugir da cozinha sofisticada de Sófia, a amada esposa do policial civil, até colher nacos de informações que correm nos subterrâneos dos submundos, do crime organizado da cidade portuária. O outro motivo era o mutismo um sábio do senhor de idade avançada, que em poucas palavras, gestos ou olhares dizia muito e denotava uma vasta gama de conhecimentos, para um mero e simples vendeiro ambulante qualquer.
— Elias, meu bom e velho amigo, quero saber quais são os segredos do teu molho à vinagrete! — Desse o detetive, que estava com as mãos em cima do frio balcão do trailer.
— Não mesmo, não repasso o meu segredo, que recebi da minha falecida mãe, que recebeu da mãe dela. Também faço isto por causa da Sófia, meu bom e ainda jovem amigo, nem a conheço, mas sei da luta da mulher, para te prender pelo estômago, como toda boa esposa deve fazer e ela o faz! — Elias tinha passado o cachorro quente, para o freguês ocasional, Elias estava falante e com elevado bom humor naquela noite fria de outono.
— Ainda fico abismado, com as tuas tiradas, amigo velho, como sabe que a minha Sófia cozinha bem? Anda me fazendo visitas, quando não estou em casa por acaso? — Fez troça o policial civil.
Elias ficou um tempo parado e olhando para Mattos Gama, com profundidade, parecia que o estava medindo por inteiro e escolhendo as palavras certas, para responder a pergunta fatídica. Para Elias, aquele homem parado bem na sua frente, não era um mistério em si, mas o merceeiro se divertia com os joguinhos infantis que ele vivia fazendo.
— Simples, meu bom amigo e bom freguês, a tua cintura não nega, cresce sem parar dia-a-dia! — Respondeu o merceeiro de ascendência hispânica. Elias às vezes dizia que as vezes quando perguntado de onde era ele respondia que as famílias maternas e paternas eram oriundas da lá grana espana de gente guapa que ia e vinha da velha Espanha para a América espanhola. E ele, Elias Gael ao contrário da família, se alojou na América portuguesa porque gostava de sofrer.
— Tens coragem, meu amigo, pois se ela sabe que tu andas falando de mim assim vai me mandar te prender! E me mandar fazer academia depois, como não te quero ver preso e nem puxar ferros em um lugar cheio de gente suada, não vou fazer nem uma coisa nem outra. — Devolveu Mattos Gama.
Ambos riram muito, como se fossem crianças travessas e chamaram a atenção dos transeuntes ocasionais, que passavam ao largo. Elias deu as costas para o policial civil, foi buscar azeite de oliva e colocou na fritadeira elétrica. O alarme interno, do a muito calejado policial civil disparou naquela hora.
— Outro mistério Elias? Como tu bem sabes que tenente Bastos adora este prato! E ele raramente vem aqui! — Dize alarmado o policial civil.
— Sei que é da tua profissão, mas tu faz perguntas demais, meu bom amigo policial. Eu senti de longe, o cheiro da colônia barata, que ele gosta de usar, é o mesmo que usam os brutamontes, quando não estão fardados, ficam mais humanos e é por isso vou fazer o que ele mais gosta de comer. — Falou o merceeiro enfático.
— Como tu sabes que ele não está de serviço hoje? — Perguntou Mattos Gama.
- Mais uma pergunta? Que coisa! Olha meu bom amigo detetive, às vezes se extrai confissões dos piores facínoras, fazendo simples colocações. Mas, é bom mesmo o amigo ir até a mesa de costume, pois o teu primo policial militar, não demora, vem vindo por aí, e deixa que eu o sirvo quando ele chegar daqui a pouco. — Respondeu Elias sem responder nada à moda de um político que se escada de perguntas óbvias.
— Um dia desses vamos trocar um bom e longo papo, lá na minha delegacia, meu amigo merceeiro, um bom e longo papo amigável. — Falou Mattos Gama como quem fala com um marginal barato de cidade pequena.
— Isto é uma ameaça? — Falou Elias de forma hirta.
— Que nada! É um convite amigável para tomarmos juntos um bom café, não me arrisco a ficar sem as minhas fugas dos fogões sofisticados da minha amada esposa Sofia. Não vou nem pedir, pois creio que a minha lata super gelada de refrigerante de lima limão já deve estar na tua mão.
Elias colocou de fato na bandeja de vime, a lata gelada de refrigerante de lima limão junto com um copo de uísque com duas pedras de gelo. O detetive pegou a pequena bandeja de vime e partiu para a cadeira não muito longe do pequeno trailer. Mattos Gama, calculou que teria poucos minutos sozinho, antes da chegada de Bastos, que morava em um apartamento funcional a poucos metros dali. O policial civil puxou da memória, de como a praça era antes do dia fatídico, da mais que estranhíssima morte do marginal do baixa escalão Otto Kürten Wagner Van Petter. E como tudo mudou, naquele lugar outrora sombrio e nada convidativo, agora irradiava luz e paz, a fauna e flora do submundo do crime que estavam em cada canto escuro do lugar e agora estavam bem longe daquele cenário.
E as inocentes crianças, acompanhadas com seus jovens pais e avós, que brincavam alegremente no parquinho, vorazes morcegos, em sobrevoo, atrás de insetos nas copas das árvores deram lugar a noturnas aves mais amenas. E cães vadios, deram lugar a cães de raças e vira-latas bem cuidados, que guiavam jovens e idosos casais naquele começo de noite outonal. Casais de namorados caminhavam tranquilamente de mãos dadas, não muito longe de Mattos Gama. Mas um casal chamou a atenção do policial civil, por mais mente aberta que tivesse, achou aquilo inconcebível, àquela hora e naquele lugar, duas mulheres que se beijavam lascivamente. Uma era uma mulher indo para a meia idade, era loura, de cabelos curtos, estava vestida como uma professora universitária. O policial esticou os olhos e leu o nome Agnes tatuado no braço da jovem senhora. A outra era a antítese, no começo da vida adulta, usava roupas leves e coloridas, mantinha solto o cabelo longo e negros que brilhavam. De fato, não transpareciam amor ou mesmo paixão e sim o mais despudorado puro desejo. Mattos Gama também notou, que as pessoas em volta pareciam não se importar com a cena descabida, e mais que isso, pareciam ignorar a existência de ambas as mulheres.
O policial civil voltou a si, para as coisas mais práticas e prementes, para o amigo e primo o policial militar Basto, que estava para chegar e provavelmente ia demorar um pouco mais, por causa da esposa Sumiko Yamaguchi. Ela como uma flor rara e delicada nascida no extremo oriente, que necessita de cuidados mais que especiais, para além das presas, das imperfeições e das improvisações de como as coisas são feitas no ocidente.
Indo para além das coisas práticas, Mattos Gama, teve que buscar o elemento remissivo, para se localizar naquele momento. O policial civil, foi encontrar, nas lendas, no longínquo folclore escandinavo, na mitologia nórdica, no frio norte europeu. Na Bifrost, a ponte que estabelecia a ligação entre o domínio dos deuses, e o domínio dos mortais homens e das mulheres. Entre os reinos de Asgard e Midgard, o reino da terra dos mortais, a ponte arco-íris e seu guardião era Heimdall. E naquele momento era o vendeiro Elias Grael, ele é o único elemento intacto e presente, um elemento de ligação entre o passado sombrio da praça e os dias amenos atuais. O dono do trailer era Heimdall, na alusão fantástica do policial civil, naquele exato momento, por mais estapafúrdia que fosse a ideia. As duas mulheres que se beijavam lascivamente, se comportavam como se vivessem em outra dimensão, muito distante, em tempo e também em espaço. As duas pareciam no imaginário de Mattos Gamas, que elas atravessaram a ponte arco-íris, a Bifrost, para somente afrontar e assombrá-lo então somente. Ele foi dar uma olhada, mais atenta nas duas mulheres, que o policial civil percebeu que as tuas tinham desaparecido por completo, como jamais tivessem existido.
— Me atrasei muito Gilberto? — O enorme, policial militar, estava atrás de Mattos Gamas quando proferiu a pergunta. E se adiantou e se sentou diante do amigo.
— Claro que não Jorge! Mas, imagino a tua preocupação, a delicada flor do extremo oriente deve te dado para tomar aqueles chás digestivos, pois ela sabe que tu vai comer porcarias na rua. Pelo que vejo a senhora Yamaguchi andou riscando os braços de novo! — Disse Mattos Gama.
Os longos e musculosos braços de Jorge Bastos, eram todos fechados, com o Horimono, um estilo japonês de tatuagem. Mattos Gama notou, o inchaço no antebraço esquerdo do primo, era um dragão, que serpenteava o antebraço do policial militar, a biqueira de aço de Sumiko trabalhou ali delicadamente por umas duas horas ou mais, calculou Gilberto.
— Se acomoda direito ai, homem de Deus! Ainda não sei, como tu se submete a essas torturas orientais dessa mulher, tu deve amar muita a senhora sua esposa. Olha que ela tem a metade de sua altura, esse vaso de porcelana japonesa! — Disse Mattos Gama e emendou — Ela te dobra direitinho!
— Da minha mulher cuido eu parceiro! — Disse o policial militar que se recompôs na cadeira abruptamente e emendou — E eu nem sei, como tu sobrevive com a Sofia, naquele cemitério europeu pós-modernista sem graça. Chego a ter pesadelos horríveis, com a decoração à Bauhaus, correndo atrás de mim. Mas, chega mesmo de conversa fútil, sobre decoração e vamos em frente, temos assuntos mais graves, para resolver.
— Concordo! Vamos ao que interessa! — Falou Mattos Gama.
— Mas antes! — Jorge virou o dorso e levantou a mão direita, mas Elias já estava atrás dele. O merceeiro, estava com uma bandeja nas mãos, com o pedido que o policial militar iria fazer. Uma pequena tina oriental, com uma porção de batatas fritas, um copo médio de cristal, com refrigerante mate, com duas pedras de gelo e um segundo copo com uísque sem gelo.
— Chegou o nosso Heimdall trazendo o hidromel! — Falou de forma solene Gilberto, o policial civil
— Bruxo! Como tu sabia o que ia pedir? — Disse Jorge, o policial militar.
— Simplesmente coma e beba e, acima de tudo, aproveite a viagem, pois a vida é curta e muito curta, alias. — Grael, tirou cada item da bandeja de forma solene e depois se retirou como se fosse um velho mordomo de uma enorme mansão do século Alex.
— Parei, de tentar entender o Grael faz tempo, Jorge não fique olhando para o relógio, aqui ele não funciona, aliás nenhum funciona de fato aqui! — Falou Gilberto, o policial civil.
— Então vamos logo começar, a pauta não era esta, mas vamos começar, ainda não compreendo o porquê aqui nada funcionar. Nada elétrico, mecânico ou eletrônico não funciona nesta praça dos infernos. — Disse Jorge o policial militar e olhou para cima, para a iluminação pública. — Somente estas lâmpadas e não vejo nenhum inseto em volta das lâmpadas.
— O primeiro ponto nulo meu caro, o marco zero dizem! O obscuro Otto Kürten Wagner Van Petter foi a primeira vítima fatal destes pulsos magnéticos. — Gilberto levou a mão direita ao queixo barbudo, como um velho sábio que procurava o que dizer e então veio a resposta, em um instante. — Vamos sair daqui Jorge, vamos lá pra a minha casa! — Sugeriu Gilberto.
— Mas tu, nunca faz reuniões de trabalho na tua casa! — Ponderou o Jorge.
— Sofia não está em casa, saiu com as meninas, foram ver a minha estimada sogra que anda um pouco doente. Vou me juntar à elas amanhã ao cair da noite! — Disse Gilberto.
— Aposto que tu vieste caminhando, da tua casa até aqui. Não responda, como também não posso perguntar como o táxi que vem chegando logo ali, um carro de aluguel veio nos servir sem que a gente a peça. O teu amigo Heimdall é mesmo o máximo, um dia descubro qual é a desse cara! — Disse Jorge o policial militar.
— Chega destas inutilidades! Vamos embora o tempo urge! — Disse Gilberto.
E foram até a trailer de Grael,
pagar a conta de ambos, os policiais sacaram seus respectivos cartões de
créditos, pagaram sem problemas, ambos não cansavam de estranhar como a única
coisa que funcionava ali era o comércio de Grael. Depois foram até o táxi que
estava estacionado a poucos metros da praça, esperando por eles. Gilberto
Mattos Gama sentiu um alívio, ao evadir da praça e dos olhos famintos de Elias
Grael. O policial civil tinha a estranha impressão que mil olhos funestos, o
vigiavam quando estava na presença do velho merceeiro da praça. Não por menos,
Jorge Bastos estava com o alarme ligado ao máximo quando saía ladeado do amigo
de profissão e primo da praça. E ainda estava com muitas dúvidas, a respeito,
do que realmente aconteceu e que ainda acontece com a praça e a ligação com o
merceeiro ambulante. Outra coisa que o policial militar não entendia era as
longas caminhadas do primo, sempre desarmado, um sentimento também tomava conta
do policial militar, algumas das dúvidas iriam dissipar naquela mesma noite.
Fragmento do livro: Em dias de
sol e calor, em noite de tempestades e frio.
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