terça-feira, 1 de agosto de 2023

A EPÍSTOLA DE CASSILDA: CALIBOR, O DOUTOR SONO!

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

 

        Camilla minha querida irmã! Digo que fiquei alarmada, com a tua última carta, eu bem queria te responder de outra forma, tamanha a minha aflição. Mas por fim uma carta é a melhor forma para nós duas.

       Infelizmente a praga que você mencionou, também chegou aqui! Tu bem sabes, que por aqui a vida e o tempo se arrastam de forma lenta e com poucas mudanças. E hoje tenho saudades, do bom tempo em que as nossas únicas preocupações, eram com os roubos de bicicletas e passarinhos furtados.   

       Li e reli a última carta, que você me enviou e não pude fazer ligações com casos isolados, que ocorreram por aqui, as nossas pequenas tragédias. Lembras do Sebastião? O velho Tião, da nossa meninice, sempre bêbado e sempre andando e caindo pelas ruas. Inofensivo, pedindo dinheiro para mais um trago, pois bem depois de muitos tragos o velho Tião um dia cai no meio da rua. Pois bem pensamos que por fim tinha morrido, mas não morreu e a história é um pouco estranha. Um policial que fazia a ronda na praça da cidade que viu o caindo no chão verificou os sinais vitais e percebeu que o Sebastião ainda estava vivo e o policial chamou uma ambulância. E assim foi o maltrapilho e barbudo Tião parar no hospital. Camila, minha irmã, foi um fato trágico, embora mais que esperado. E poucos deram mais atenção ao fato em si. E outra tragédia veio para abalar a nossa calmaria, longe dos grandes centros.

Camilla você sem lembrar do Luide? O nosso amigo de meninices faceiras! Pois bem, você bem sabe dos problemas mentais que ele teve quando ficou mais moço, andando sem rumo pelas ruas da cidade e indo e voltando pelas cidades vizinhas até ser reconhecido e alguém o trazer de volta para casa. Ele sempre falava sozinho, interagindo com gente e coisas que não existiam. Pois um dia ele ficou mais agitado, gritava, chorava, ria, esbraveja, se encolhia em desespero e por fim era agressivo. Até que por fim também caiu no meio da rua, no mesmo lugar e na mesma hora que Tião. Também foi socorrido, os socorristas notaram que estava desacordado, e mais uma vez, mais um dos nossos foi socorrido ao hospital.

Estas duas tragédias, não chamaram a atenção de ninguém com muita profundidade, e Camilla nem o jornal e rádio da nossa cidade mencionaram os dois casos. O padre da nossa paróquia na missa de domingo pediu para rezarmos pelos nossos irmãos convalescidos. E nas pequenas igrejas neopentecostais e protestantes pastores oraram pelas duas pobres almas.

Camilla o mais trágico vem depois, Artur, que tu não conheceste, era filho da Glória a nossa amiga da escola, você bem sabe que ela era minha amiga, éramos inseparáveis. Se lembra dela estudando? A Glorinha sempre na nossa casa e às vezes ela está dormindo na nossa casa! E do papai nunca me deixava dormir na casa dela, era sempre uma briga com papai e mamãe e eu a Glorinha sempre chorávamos.

Pois bem irmã, tu bem sabes que eu dou aulas de inglês, português e literatura na escola que Glorinha era diretora. A mesma escola, que a gente estudou e nós formamos. Pois minha querida Camilla, por Deus Camilla, fui eu que escolhi o nome do primeiro e único filho dela Artur, sempre adorei as lendas do rei Artur como bem sabes Camila. Por Deus Camilla, não se sabe como e nem por quais circunstâncias, o nosso jovem Artur, o nosso doce Artur professor, muito querido por todos e todas. Ele sempre calmo, estudioso e bem-comportado, ele estava andando pelas ruas da cidade. Estava encharcado de sangue, balbuciando palavras ininteligíveis, era um idioma estranho. E ele caiu inconsciente no mesmo lugar, por Deus Camilla, foi no mesmo lugar, na mesma hora, no final da tarde.

Assim como os outros casos, ele cai desacordado e mais uma vez foi socorrido por uma ambulância e levado ao hospital. E te confesso que não tive coragem de avisar a minha amiga querida, a minha irmã de coração. Por Deus Camilla, me contaram depois que a nossa Glorinha não estava mais viva, Artur a tinha matado. Pensei em uma briga entre os dois, pois era sempre assim quando Artur perguntava pelo pai dele, quem eram, se estava vivo e onde vivia. Eu mesmo nunca soube e nem perguntei, quem era o pai de Artur. Mas os vizinhos não ouviram nada, pois eles dois sempre que brigavam faziam muito barulho. Mas naquele sábado ninguém percebeu nada e somente um estranho silêncio reinava na casa.

Pois bem Camilla, soube mais tarde que Artur estava desacordado no hospital. Os três casos, em um intervalo de três semanas. E nesta hora que tu passas os olhos nesta carta, você deve estar se perguntando porque tu nada ficou sabendo. Pois bem, você tinha acabado de sair daqui, para dar as tuas aulas de música e em meu amor infinito por ti, não imaginava tu voltando para casa e não era justo para contigo. Aqui se repetiu o mesmo silêncio que acontece por aqui, um hiato inexplicável.

O que aconteceu depois, minha querida Camilla, algo muito estranho, para além das estranhas tragédias, que abalaram a nossa calmaria interiorana. Uma equipe médica, veio ver os três pacientes. Você sabe que poucas coisas escapam de um universo tão pequeno como o daqui. Uma aeronave descendo em uma fazenda por aqui não passou desapercebido. E quando sai de dentro da aeronave uma equipe médica, na luz do dia, fica muito difícil de se esconder. Desembarcaram aqui e depois foram para o hospital na cidade vizinha.

E um nome começou a circular pela cidade, Calibor, o doutor sono, só depois fiquei sabendo que ele era um neurologista estrangeiro, reconhecido pelo mundo da medicina. Eu gostaria de não o ter conhecido, mas tive o desprazer de o conhecer, pois este homem era tudo, menos o que se espera de um médico mundialmente renomado. Soubemos de muitas coisas porque muitos médicos, médicas, enfermeiras e enfermeiras, que trabalham no hospital, vieram viver por aqui na zona rural. Gente de fora que vieram trabalhar no hospital.

Pois bem Camilla este sujeito passou por aqui, na nossa cidade, deste fim de mundo, vi este homem de pele escura, sem um filo de cabelo na cabeça, rosto fino, um cavanhaque, parecia um egípcio. Não usava um janelo branco como os médicos e o povo da saúde usam, ele estava usando um jaleco amarelo pálido.

E estava ele, analisando o local onde os três tinham caído, ele o seu séquito, homens e mulheres bem alinhados, e mais o diretor do hospital onde estavam os internados os infelizes cidadão da nossa cidade.

Camilla, eu não queria ter visto, mas vi, pois o alvoroço da cena que tinha mobilizado a cidade, eu não escapei do canto da sereia. Eu vi quando o doutor tirou os óculos de redondo de aro de tartaruga, as lentes eram espelhadas, os olhos Camilla, os olhos não eram frios, e nem exalavam maldade eram olhos blasfemos. Eram profundos, abissais e álgidos! Depois eles foram embora, como se nada fossemos, pois nem os políticos locais conseguiram convencer aquele homem estranho ficar na cidade. Foram embora em uma limusine, levantando poeira.

 

Camilla que cena, horrível vem aquele homem ali, eu senti na minha alma, eu bem sabia que algo de ruim estava por vir e veio. E o que passo a pensar que começou aqui, na nossa cidade, Camilla vi nascer aqui a tempestade que te assola aí no litoral.

 

Da tua irmã Cassilda.

 

Fragmento do livro: Sono paradoxal, de Samuel da Costa.

Contato: samueldeitajai@yahoo.com.br

 

 

 

 

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