quarta-feira, 1 de novembro de 2023

CRÔNICA DO DIA: DEUS EX MACHINA BY BUS (SEGUNDA PARTE)

Por Clarisse Cristal (Balneário Camboriú, SC)


 Somos reféns de nossas escolhas
 Amedrontados por obscuridades
 Servos mundanos de banalidades
 Refém de uma teologia neutra…

 
Fabiane Braga Lima


                 Do final da opereta bufa, tendo Renatinho terceiro como antagonista, fui tomar um café com o Sebastião, o Tião para os íntimos. Ocupamos uma cadeira de plástico em um pé sujo na rodoviária e confesso que é um lugar melhor que os ditos estabelecimentos chiquetosos, que estava acostumada a frequentar. Sentamo-nos e esperamos, uma bela mulher negra, com aparência estrangeira veio nos atender, ela anotou os nossos pedidos e foi embora. Aguardamos em silêncio e não demorou ela trouxe os nossos bens passados cafezinhos puros.
          Perguntei para o Tião se era sempre assim, o dia a dia dele, pensei que ele iria tirar um cigarro barato do bolso e dar uma tragada, mas não, ele tirou um cigarro eletrônico e deu uma tragada discreta. Tião olhou para o lado, como querendo ver se alguém estivesse por perto. 
O motorista de profissão, me deu aquele olhar de quem quer dizer: ̶ Quem és tu? O que de fato queres comigo? Devolvi o olhar e relatei brevemente quem eu era e sou de fato, um negro anjo, uma filha dos privilégios de uma classe abastada, uma querubina como diz o meu amigo Samuel da Costa. Tião me olhou desconfiado, mas aceitando a minha explicação, ele me disse que vez ou outra apareciam estudantes e jornalistas em início de carreira ciscando no ambiente que ele vive. E logo eu o interrompi, dizendo que eu não era da polícia e nem trabalhava para a empresa de viação e Tião deu uma enorme risada.
O motorista de profissão me confidenciou que era normal, ferrados não terem dinheiro para pagar as passagens e fiscais da empresa de viação, o interpelaram ainda dentro do ônibus. Ele sempre dizia para os fiscais, que passava fiado e que qualquer coisa pagava do próprio bolso.

           Como geralmente eram trabalhadores, Tião sempre recebia no final do mês, e sempre tive a mesma conversa com Renato segundo, dando sempre a mesma explicação.
Sebastião, me disse também que era motorista de profissão e que tinha várias categorias e cursos de transportes de direção de produtos perigosos. Ele me disse uma história, uma passagem ocorrida no Rio de Janeiro, um transporte de congelado. Logo, pensei em uma favela, cheia de traficantes de drogas bem armados e eu não estava de toda errada.
            Assim ele me relatou: ̶ Olha menina eu estava no Rio de Janeiro! Eu deveria fazer uma entrega em um frigorífico, e chegando lá notei que o depósito era dentro de uma favela. Chegando vi um posto policial, uma barreira, um alívio? Não, um início das minhas dores de cabeça, pois vi vestígios de incêndios ao redor do posto avançado da polícia.
            De cara minha querida e jovem amiga, o comandante do posto avançado perguntou para onde eu queria ir. Como eu dirigia uma carreta de transportes de frigoríficos e estávamos próximos de um depósito de congelados, logo era uma senha para propina. Me fiz de João sem braço e falei para onde eu queria ir. Então o meganha, guarnecido por outros quatros meganhas, homens marombados e fortemente armados. Para passar, disse o meganha chefe, que eu deveria deixar cinco caixas de congelados com eles, somente para passar, sem direito a escolta, disse ele. Eu ainda estava atrás do volante e simplesmente disse que não ia pagar coisa nenhuma e liguei o motor do meu possante e o policial me disse que eu não ia longe, não naquele lugar e não com aquela gente. E que o posto onde eles estavam foi incendiado oito vezes, aí eu entendo mesmo que eu teria passagem segura.
Dei arranque e não fui longe mesmo, pois vi três homens negros, jovens, pelo que eu entendi ainda à praia. Parei e os meninos me perguntaram se eu estava com problemas, eu falei da conversa que tive com os meganhas marombados. Indignados os meninos fizeram menção de pôr fogo no posto policial de novo. E pelo que eu entendi os homens da lei causam muitos problemas com as autoridades, logo perguntei se eles queriam ganhar uma grana e ganhar umas caixas de congelados se me ajudassem na descarga da carreta. Dei uma grana nas mãos dos guris, e três caixas de congelados, uma para cada um. Fiz três bons amigos, que me deixaram boas lembranças. Tenho que ir guriazinha, eu volto para casa e creio que passou da hora da senhorita voltar para casa antes que escureça.
             Termino aqui este relato, dizendo não que eu mudei de concepção de sociedade, pois não sou alienada e sim tendo uma real noção do mundo em que vivo e mais preparada também.


Fragmento do livro Do diário de uma louca, de Clarisse Cristal, poetisa, contista, novelista e bibliotecária de Balneário Camboriú, Santa Catarina.

 

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