Por Dias Campos (São Paulo, SP)
Sabe aqueles dias em que a sorte
parece bater à porta? Pois seu Osório sentiria dessa sensação à medida que
lesse a revista Ilustração Brasileira.
Estamos na capital do império, no
primeiro dia de janeiro de 1877. Os secos e molhados do seu Osório vão de mal a
pior, e a única coisa que ainda o diverte é ler as crônicas do seu autor
preferido, Manassés, pseudônimo de Machado de Assis, até então irrevelado.
A certa altura, o comerciante lê
sobre as galerias recém-encontradas sob o Morro do Castelo.
Prossegue o cronista relembrando a
antiga lenda de que lá haveria um “tesouro dos contos arábicos” abandonado
pelos jesuítas quando foram obrigados a deixar o Rio de Janeiro por ordem do Marquês
de Pombal. Essa história, ouvia-a desde criança, e cresceu com a convicção de que
fosse verdadeira. Daí que aguardava os jornais divulgarem os artefatos que seriam
encontrados; se bem que ficasse preocupado com o povo que acorreria ao local.
Ao final, Manassés questionava o
fato de os jornais não mais publicarem notícias sobre as escavações, e
mencionava a discussão que acontecia sobre a quem pertenceria o tesouro que fosse
desenterrado, se ao Estado ou aos concessionários encarregados da demolição. E
como discordasse dessas opções, afirmava que tudo era devido à arqueologia, cabendo
ao Museu Nacional recebê-lo e preservá-lo.
O silêncio dos jornais não causou
estranheza a seu Osório. Afinal, nada como calar a imprensa para que essa
notícia caísse no esquecimento, o que afastaria a pretensão do povo de se
tornar mais um concorrente à partilha.
- Eia! – animou-se o comerciante – Nem
ao governo, nem aos apadrinhados, nem à posteridade. Será, sim, de quem chegar
primeiro!
O tempo corria contra seu Osório, uma vez que bem sabia serem muitos os
leitores de Manassés, o que, a seu juízo, ampliaria o leque de concorrentes à
caça ao tesouro.
Mas o negociante tinha uma carta na manga. Certa vez, quando se
aproximava a hora de fechar, um rapaz surgiu esbaforido em seu armazém. Cobria-se
apenas de ceroulas e implorava acolhida, pois estava sendo perseguido por um
homem mal-intencionado.
Seu Osório, que bem se lembrava dos seus arroubos na juventude, deduziu
que a intenção do perseguidor nada tinha de má, pois quando o marido flagra a
esposa em adultério, por certo que o sangue sobe-lhe à cabeça. Mas como o rapaz
prometia retribuir a guarida tão logo alcançasse sua casa em segurança, o “compreensivo”
comerciante deixou-o ficar.
No dia seguinte, o candidato a Don Juan cumpriu o que prometera. Retornou
ao armazém, devolveu a casaca com que se esquivara, e ofereceu uma soma modesta
como paga, pois, na condição de mero amanuense lotado no Ministério da Guerra,
seus vencimentos não lhe permitiam dispor de muito mais.
Seu Osório recusou a quantia sorrindo. Mas não deixou de garantir-se quanto
a um futuro favor, caso viesse a precisar.
Pois o momento chegara.
Foi àquele Ministério, encontrou o jovem devedor, e pediu que conseguisse
uma autorização que lhe franqueasse a entrada, à noite, nas galerias do Morro
do Castelo.
Achando melhor não se inteirar sobre os motivos do pedido, o funcionário
público disse que tinha um amigo que trabalhava no órgão ministerial a que
todas as concessionárias estavam vinculadas. E como ele também lhe devia um
favor, se seu Osório pudesse esperar um ou dois dias, cria que conseguiria a
melhor das falsificações. E a mandaria entregar.
O tempo de espera não agradava ao negociante. Mas como afluíam aos secos
e molhados mais credores do que fregueses, alternativa não teve senão a de
aceitar a oferta.
Foram os dois dias mais vagarosos por que já passou seu Osório... Mas o mancebo
agradecido soube honrar as calças e os surrados bigodes. E na manhã do terceiro
dia, um moleque batia à porta do armazém.
De posse da autorização falsa, e já tendo decorado a “justificativa oficial”
à sua visitação às altas horas, caso algum responsável o quisesse barrar, o
comerciante partiu a cavalo rumo à Ladeira do Castelo.
A só apresentação do selo imperial foi suficiente para que ingressasse.
Munido de lampião, de alguns apetrechos para escavação, e da certeza de
que a sorte realmente o tivesse acenado, seu Osório desceu aos subterrâneos
feito garoto travesso a poucos metros da goiabeira proibida e carregada – ora ávido
pelos frutos saborosos, ora pronto para chispar ante o menor perigo.
Andando com prudência, alcançou uma bifurcação. Agora era o momento de
refletir. Sabia que teria pela frente muitas horas para procurar. No entanto,
se nada encontrasse, não estava disposto a retornar nas noites subsequentes, pois
correria o risco de que o embuste fosse descoberto, e de ser preso. Sendo
assim, resolveu apelar para sua estrela. E tomou de uma pataca, e se concentrou
para o cara e coroa. Só não lançou a moeda ao ar porque viu o símbolo dos
jesuítas adornando a entrada do túnel direito. Ora, como se sentia envolvido
pela mesma sensação que o fartou quando leu aquela crônica animadora, o futuro barão
decidia-se pela rota “indicada”.
Depois de alguns minutos caminhando, seu Osório estacou, pois percebeu
uma portinhola de ferro incrustada na parede à sua esquerda. Se seguisse
adiante, talvez nada mais encontrasse além de breu. Assim, aproximou-se e
iluminou o achado. Apurando a vista, distinguiu outro símbolo dos jesuítas
gravado em baixo relevo no tijolo logo acima. E novamente era visitado por
aquela estimulante sensação... Pois era mover o ferrolho, e se apoderar do conteúdo.
E quem sabe não voltaria para casa carregando um crucifixo de ouro maciço?!
O ferrolho rangeu ao ser movido. Quanto ao conteúdo... O que havia era um
papelucho enrolado e enlaçado por fita vermelha, ambos com aparência de novos.
Seu Osório desatou o laço e começou a ler: “Caríssimo. Se aqui chegaste em nome
da arqueologia, sê bem-vindo e prossegue. De certo as glórias aguardam-te ao
final. Mas se aqui vieste por causa da minha crônica, a quem caberiam as
glórias senão a mim que tive todo esse trabalho? Neste caso, dá meia volta,
bate as sandálias da cupidez, e cancela a assinatura da revista. – Todo seu. Manassés”
E toda vez que aquela “sensação de sorte” insiste em acariciar seu
Osório, ele persigna-se, separa um vintém às almas do purgatório, e desconjura
o Bruxo do Cosme Velho.
(Conto premiado com Menção Honrosa no XXIV Concurso de Contos "Alípio Correia")
Nenhum comentário:
Postar um comentário