quarta-feira, 1 de novembro de 2023

SORTE OU BRUXARIA?

Por Dias Campos (São Paulo, SP)

 

            Sabe aqueles dias em que a sorte parece bater à porta? Pois seu Osório sentiria dessa sensação à medida que lesse a revista Ilustração Brasileira.

            Estamos na capital do império, no primeiro dia de janeiro de 1877. Os secos e molhados do seu Osório vão de mal a pior, e a única coisa que ainda o diverte é ler as crônicas do seu autor preferido, Manassés, pseudônimo de Machado de Assis, até então irrevelado.

            A certa altura, o comerciante lê sobre as galerias recém-encontradas sob o Morro do Castelo.

            Prossegue o cronista relembrando a antiga lenda de que lá haveria um “tesouro dos contos arábicos” abandonado pelos jesuítas quando foram obrigados a deixar o Rio de Janeiro por ordem do Marquês de Pombal. Essa história, ouvia-a desde criança, e cresceu com a convicção de que fosse verdadeira. Daí que aguardava os jornais divulgarem os artefatos que seriam encontrados; se bem que ficasse preocupado com o povo que acorreria ao local.

            Ao final, Manassés questionava o fato de os jornais não mais publicarem notícias sobre as escavações, e mencionava a discussão que acontecia sobre a quem pertenceria o tesouro que fosse desenterrado, se ao Estado ou aos concessionários encarregados da demolição. E como discordasse dessas opções, afirmava que tudo era devido à arqueologia, cabendo ao Museu Nacional recebê-lo e preservá-lo.

            O silêncio dos jornais não causou estranheza a seu Osório. Afinal, nada como calar a imprensa para que essa notícia caísse no esquecimento, o que afastaria a pretensão do povo de se tornar mais um concorrente à partilha.

            - Eia! – animou-se o comerciante – Nem ao governo, nem aos apadrinhados, nem à posteridade. Será, sim, de quem chegar primeiro!

O tempo corria contra seu Osório, uma vez que bem sabia serem muitos os leitores de Manassés, o que, a seu juízo, ampliaria o leque de concorrentes à caça ao tesouro.

Mas o negociante tinha uma carta na manga. Certa vez, quando se aproximava a hora de fechar, um rapaz surgiu esbaforido em seu armazém. Cobria-se apenas de ceroulas e implorava acolhida, pois estava sendo perseguido por um homem mal-intencionado.

Seu Osório, que bem se lembrava dos seus arroubos na juventude, deduziu que a intenção do perseguidor nada tinha de má, pois quando o marido flagra a esposa em adultério, por certo que o sangue sobe-lhe à cabeça. Mas como o rapaz prometia retribuir a guarida tão logo alcançasse sua casa em segurança, o “compreensivo” comerciante deixou-o ficar.

No dia seguinte, o candidato a Don Juan cumpriu o que prometera. Retornou ao armazém, devolveu a casaca com que se esquivara, e ofereceu uma soma modesta como paga, pois, na condição de mero amanuense lotado no Ministério da Guerra, seus vencimentos não lhe permitiam dispor de muito mais.

Seu Osório recusou a quantia sorrindo. Mas não deixou de garantir-se quanto a um futuro favor, caso viesse a precisar.

Pois o momento chegara.

Foi àquele Ministério, encontrou o jovem devedor, e pediu que conseguisse uma autorização que lhe franqueasse a entrada, à noite, nas galerias do Morro do Castelo.

Achando melhor não se inteirar sobre os motivos do pedido, o funcionário público disse que tinha um amigo que trabalhava no órgão ministerial a que todas as concessionárias estavam vinculadas. E como ele também lhe devia um favor, se seu Osório pudesse esperar um ou dois dias, cria que conseguiria a melhor das falsificações. E a mandaria entregar.

O tempo de espera não agradava ao negociante. Mas como afluíam aos secos e molhados mais credores do que fregueses, alternativa não teve senão a de aceitar a oferta.

Foram os dois dias mais vagarosos por que já passou seu Osório... Mas o mancebo agradecido soube honrar as calças e os surrados bigodes. E na manhã do terceiro dia, um moleque batia à porta do armazém.

De posse da autorização falsa, e já tendo decorado a “justificativa oficial” à sua visitação às altas horas, caso algum responsável o quisesse barrar, o comerciante partiu a cavalo rumo à Ladeira do Castelo.

A só apresentação do selo imperial foi suficiente para que ingressasse.

Munido de lampião, de alguns apetrechos para escavação, e da certeza de que a sorte realmente o tivesse acenado, seu Osório desceu aos subterrâneos feito garoto travesso a poucos metros da goiabeira proibida e carregada – ora ávido pelos frutos saborosos, ora pronto para chispar ante o menor perigo.

Andando com prudência, alcançou uma bifurcação. Agora era o momento de refletir. Sabia que teria pela frente muitas horas para procurar. No entanto, se nada encontrasse, não estava disposto a retornar nas noites subsequentes, pois correria o risco de que o embuste fosse descoberto, e de ser preso. Sendo assim, resolveu apelar para sua estrela. E tomou de uma pataca, e se concentrou para o cara e coroa. Só não lançou a moeda ao ar porque viu o símbolo dos jesuítas adornando a entrada do túnel direito. Ora, como se sentia envolvido pela mesma sensação que o fartou quando leu aquela crônica animadora, o futuro barão decidia-se pela rota “indicada”.

Depois de alguns minutos caminhando, seu Osório estacou, pois percebeu uma portinhola de ferro incrustada na parede à sua esquerda. Se seguisse adiante, talvez nada mais encontrasse além de breu. Assim, aproximou-se e iluminou o achado. Apurando a vista, distinguiu outro símbolo dos jesuítas gravado em baixo relevo no tijolo logo acima. E novamente era visitado por aquela estimulante sensação... Pois era mover o ferrolho, e se apoderar do conteúdo. E quem sabe não voltaria para casa carregando um crucifixo de ouro maciço?!

O ferrolho rangeu ao ser movido. Quanto ao conteúdo... O que havia era um papelucho enrolado e enlaçado por fita vermelha, ambos com aparência de novos. Seu Osório desatou o laço e começou a ler: “Caríssimo. Se aqui chegaste em nome da arqueologia, sê bem-vindo e prossegue. De certo as glórias aguardam-te ao final. Mas se aqui vieste por causa da minha crônica, a quem caberiam as glórias senão a mim que tive todo esse trabalho? Neste caso, dá meia volta, bate as sandálias da cupidez, e cancela a assinatura da revista. – Todo seu. Manassés”

E toda vez que aquela “sensação de sorte” insiste em acariciar seu Osório, ele persigna-se, separa um vintém às almas do purgatório, e desconjura o Bruxo do Cosme Velho.

(Conto premiado com Menção Honrosa no XXIV Concurso de Contos "Alípio Correia")

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