Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)
O quão é sensível, às questões
raciais, as questões de classes e as subculturas adjacentes, aqui no velho
sul. Em um país, de maioria da população é negra, e negritude é sinônimo de
pobreza e aqui na fronteira sul, onde nós negros e negras, somos minoria
numérica e de poder, o debate é mais que sufocado é anulado e silenciado.
Dito isto, vamos ao localismo atomista,
no primeiro decénio do início do século XXI, quando uma tragédia aconteceu na
minha cidade e vidas se foram. Um desastre automobilístico, vitimando uma
estrela em ascensão do RAP/Hip Hop, da fronteira norte, vitimando também, mais
dois amigos próximos, um do movimento estudantil e outro do movimento negro. E
não vou me aprofundar no sinistro, porque aqui o foco é outro, e deixo para
mais tarde decorrer a tragédia. O que fica, e ficou, foi uma homenagem para as
vítimas do desastre, uma homenagem que um bom amigo, me veio com a proposta, de
fazermos um espetáculo de Rap, em uma favela-comunidade carente. Eu fiquei com
a incumbência dar infraestrutura (fazer a comunicação social do evento e dar
conta da aparelhagem de som) e da superestrutura (local a ser realizar o
evento) e o meu bom amigo do movimento do Hip Hop, de reunir o elenco, a
gurizada local do Rap/Hip Hop.
E avançamos um pouco mais, com a data
confirmada, divulgação realizada, local acertado e elenco reunido. E lá estava
eu no parlamento local, cuidando de outra luta de classes, e eis que surgiu na
minha frente, uma querubina, uma assessora de alto calibre, que há época
mantinha uma revista de arte e cultura. E lá vai eu fazer o meu social,
perguntar se a revista poderia cobrir o evento, a criatura mítica, loura e de
olhos verdes, reagiu assim, quando ouviu falar do evento de favelado, dando
hora, local e os motivos: — Olha, teu um compromisso na capital no mesmo dia,
parto de noite, e como o evento é de dia, posso sim dar uma passada por lá! —
Como o evento foi em uma favela perto da casa dela, da querubina, até que a
fala da semideusa estava coerente. Um pingo de esperança ficou suspenso no
ar.
Evento realizado, tudo certo, até quando
tudo deu errado, com os seus percalços, tão comum, em eventos feitos sem
patrocínios, feito na cara e da coragem e com pouco apoio. Na clássica luta de
raças/de classes/de gêneros, para os muitos ridículos da vida, lá estava eu de
volta ao parlamento local, duas semanas depois. E por incrível que pareça, a
querubina, editora-chefe da tal revista artística e cultural veio me procurar.
E a nobre semideusa, desceu de lá, das densas alturas e veio me procurar no
subsolo, um pouco de contexto aqui, geralmente não é a casa grande que procura
a senzala. E o que a magnânima querubina queria ter comigo afinal de contas? A
sacrossanta querubina, falou de um calhau, na revista cultural e artística, mas
o que é um calhau afinal? Para os leigos, na área da comunicação social, calhau
é um espaço em branco, um espaço vago em uma revista ou jornal, um encalhe, que
na falta do que por, se coloca qualquer coisa. Segundo a grandiosa semideusa
querubina-mor, da assessoria de comunicação social do parlamento local, um
grandioso festival de música pesada, feito lá nas densas alturas, no vale
europeu, não mandou o texto dando conta da cobertura do grandiosíssimo evento.
E o calhau me foi ofertado e eu teria um dia para mandar a matéria e as
fotografias do evento de Rap/Hip Hop.
E como trato de ridiculices da vida,
aqui neste texto, eu respondi logo que a oferta era um calhau, a querubina um
pouco constrangida, me disse que não era um calhau, era um espaço em branco a
ser ocupado. Eu respondi, dizendo que levaria a oferta do calhau, para o povo
favelado e preto. E com toda a paciência do mundo, disse que o povo preto e
pobre, não tinha recebido bem a ausência da revista cultural e artística no
evento. E falei para a querubina, que provavelmente, o povo local do Rap\Hip
Hop, não aceitaria bem a oferta do calhau. Constrangimentos à parte, eu não
levei a oferta ao povo do Rap\Hip Hop, somente para o meu parceiro, promotor do
evento, que claro ficou nervoso. É claro também, que a revista cultural e
artística, não recebeu a matéria do evento na favela. E vida que segue!
Fragmento do livro Dos Ridículos da Vida, de Samuel da Costa, contista, poeta e novelista em Itajaí, Santa Catarina.
Contato:
samueldeitajai@yahoo.com.br
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