quarta-feira, 1 de novembro de 2023

LUEN: A NEGRA ALVORADA NO NOVO MUNDO

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

 

Eu adornada e adorada

Como a magnificente deusa rainha     

De ébano       

Em todas as celestiais manhãs

Do mundo      

 

          Ao subir os degraus, das escadas de saída de incêndio, Luen pensou nos na caminhada que a levava até ali. A saída de incêndio era o lugar mais obscuro da câmara alta, frio, mal iluminado, desolado e em um passado não muito distante mal frequentado. Um lugar, usado para fazer pequenas conclaves, pois sem câmeras de vigilância ajudava para estas práticas nada republicanas diziam bocas pequenas. 

      E histórias aterradoras perambulavam aqueles seis lances de escadas, Luen vasculhou os arquivos da casa do povo e nada encontrou, somente pequenas menções na tribuna e pilhérias, mencionadas em voz baixa e captadas pelo sistema de gravação da câmara alta. Mas foi nos arquivos secretos que ela teve uma vaga ideia que ocorria ali e reforçada em pasquins baratos e a mídia eletrônica. Casais de amantes, ali foram flagrados e atos libidinosos, uso de drogas, evidenciado por overdoses e suicídios.

        Isso foi em um passado remoto, a primeira secretária da câmara alta usava as escadarias, para evitar toda a sorte de gente em corredores abarrotados de gente importante até bajuladores baratos. Luen entrara pelo subsolo e percorria os lances das escadas, era um exercício, para ela a princípio. Luen nunca viu nada de mais, somente o cheiro de mofo, uns incertos e trabalhadores fazendo pequenos reparos e fiscais civis e militares inspecionando a fuga caso algum sinistro ocorresse na câmara alta. Bons dias e boas tardes e nada mais entre Luen e essas pessoas.          

      Naquele dia, naquela manhã de outono seria diferente, a mulher de meia idade, sobriamente vestida, carregando uma funcional maleta zero, zero sete de cor bege venceu o primeiro lance, no subsolo. No andar térreo, o cheiro de mofo, foi substituído por olor de cobre, de sangue coagulado, Luen se estremeceu de prazer, de um estranho prazer. E uma sinfonia começou a sussurrar nos ouvidos de Luen, era um alarido de mulher e Luen a encontrou no segundo lance do andar térreo. Uma mulher jovem, alta e loura, a primeira secretária calculou que era uma telefonista e a jovem olhava para o chão ao notar a presença de Luen ergueu a cabeça e perguntou: — Ele disse pra mim que iria largar a esposa... Ele prometeu! — Luen nada disse, caminhou e ao chegar perto, leu o nome da mulher, em um broche no lado esquerdo do colete, Laura. A primeira secretária olhou para os pulsos de Laura, o sangue jorrava e inundou o chão. — Ele prometeu! Ele prometeu para mim! — Lamuriou a jovem mulher, Luen olhou profundamente para os olhos vidrados de Laura e Luen nada sentiu, passou ao lado da mulher e a primeira secretária sentiu uma brisa álgida naquele lugar insalubre.

        Luen prosseguiu sem olhar para trás e as lamúrias da jovem esvaeceu de forma lenta, conforme a primeira secretária, ganhava os lances das escadas. Luen estava preparada para o pior do ruim, mas não para o que acabará por ver. Até um estampido ecoou, o som veio de cima e um corpo caiu, Luen viu a cena em câmera lenta e reconheceu o corpo em queda. Um homem de meia idade, muito parecido com um assessor parlamentar, Luen procurou no seu palácio das memórias e dali lembrou que o assessor mencionou que o tio trabalhava na câmara baixa. Um homem respeitado, a família toda a bem da verdade, homens e mulher com respeitosos nomes como funcionários da máquina pública, o tio de jovem tinha morrido de forma trágica diziam nos corredores das duas câmaras. E Luen, vasculhou mais profundamente no palácio das memórias, rumores de dois suicídios, um casal de amantes clandestinos. A mulher ao saber que o amante não iria deixar da esposa para casar com a amante, esta última se matou e o homem que caiu em desgraça se matou em seguida.          

        Luen desejou que o banho de sangue parasse por ali, mas não parou, pois um andar acima, a primeira secretária ouviu sussurros e bufares. Ela fechou os olhos e tentou se antecipar ao golpe, mas não viu nada, somente vultos. E no meio do lance das escadas, Luen olhou para trás de formas abruptas e viu duas mulheres, uma negra e uma branca, pareciam prostitutas baratas. As tuas estavam injetando drogas em seus pulsos, as duas mulheres caíram para trás e deslizaram lentamente pela parede e chão. Luen viu a vida, se esvair das duas mulheres e um homem jovem esbarrou em Luen que quase foi ao chão, garoto subiu correndo velozmente, de forma inumana. Estava vestido como um punk à moda londrina e Luen pode olhar para a face assustada de jovem, ao passar perto dela, pois o tempo passou lentamente e acelerou. O bater acelerado do coração do jovem dizia para Luen que ele não iria longe e não demorou muito, Luen escutou passas que vinham do andar de baixo, era dois policiais legislativos. Os dois agentes da lei, correram ao largo de Luen, como se ela não existisse. E a primeira secretária se voltou para as duas mulheres mortas, as duas mulheres no chão estavam tomadas por insetos e o forte cheiro dos cadáveres putrefatos. A primeira secretária reconheceu as duas mulheres, eram Ianka e Isabella, a primeira era a filha do embaixador de um país do Leste europeu e a segunda era filha de uma consulesa de um país das Antilhas. Jovens, ricas e entediadas, as duas amigas, frequentavam o submundo da capital, até serem encontradas mortas. O jovem, que passou correndo era Boris, filho de professor universitário russo, um linguista especialista em línguas eslavas, um requisitado tradutor. Um jovem anarquista, foi preso e deportado.

Luen sorriu, retomou a marcha e pensou o que a aguardava nos andares de cima. A primeira secretária, só encontrou sons e olores, uma guilhotina voraz por sangue foi acionada e o grito da multidão. Um grito em espanhol, fogo bradou o sargento e o cheiro de pólvora, sangue, carne queimada e corpos em queda.

           Ao chegar ao quinto andar, Luen pensou que se passaram horas desde que começou a fazer a travessia, mas foram apenas vinte minutos. A primeira secretária, estava em alerta total ao passar pela antessala, passar entre as secretarias. Uma de frente a outra, uma era o oposto da outra e Luen escutou a secretária mais velha dizer sem abrir a boca: — Chegou a preta velha, a bruxa velha! — Luen, que nunca se deu conta da existência das duas, pelo menos não antes de assumir o posto de trabalho, a primeira secretária parou enquanto as duas assistentes esperaram e esperaram...   

Fragmento do livro Sono Paradoxal, de Samuel da Costa.

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