quarta-feira, 1 de novembro de 2023

LUEN: A REVISTA ASTRO-DROMO

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

 

Não! Eu não quero...  

O teu silêncio como resposta!

Tampouco a sua recusa!         

Quero a minha boca faminta...

Colada na tua! Quero ouvir...  

As tuas juras de amor eviterno.

Ao pé de ouvido!       

 

            O barulho do salto alto, batendo no frio chão de mármore, chamava a atenção de todos e todas, austera e dona si, a mulher exuberante, saindo da meia idade e a caminho da velhice, caminhava com todo o vigor de alguém no início da vida adulta. Luen não pensava muito, pois o tempo de meias medidas e meias palavras, em definitivo ficaram para trás.      

        A responsável pelo cerimonial da câmara alta, ou seja, conceder títulos e outorga, conduzir as posses, títulos de cidadãos honorários e comendas, recepcionar toda a gama de autoridades nacionais e internacionais, que passavam pela câmara alta. Ela, era também, um dos elos de ligação, entre os três poderes e entre a câmara baixa.

        Para quem olhava de fora, era só um circo pomposo e inútil, mas em um país cartorário, que herdou da monarquia, uma série de protocolos nada comum em repúblicas modernas. Luen era a cara da diversidade terceiro mundista, uma linda mulher, negra e de origem no proletariado, austera e decidida, era a encarnação mais que ideal para o poder vigente. Luen era um dos primeiros contatos, de pessoas poderosas e nem tanto, dentro e fora do país, com o poder institucional, com o parlamento, com a câmara alta.          

        Ao se aproximar da recepção, uma jovem mulher, um tanto sem jeito, perguntou para Luen do crachá. Sim, todos os funcionários e funcionárias portavam seus crachás de identificação e como Luen sempre usava as entradas VIPs, ela não tinha um crachá de identificação.         

        E Luen, pensou no protocolo, que ela mesmo tinha revisado, uma identificação provisória, feito exclusivamente para elementos de outros poderes e autoridades estrangeiras em passagens breves, pela câmara alta. E Luen teve que esperar sem nada dizer, esperando que a funcionária ativasse o protocolo. E sem nada dizer, a jovem estagiária, entregou o crachá provisório para a chefe do cerimonial da câmara alta.        

Luen, sem nada dizer, seguiu em frente, na mente, a imagem da jovem que ela deixou para trás, pois ler uma séria de currículo vitae e escolher um alguém, para uma função é uma coisa. Descobrir se a escolha foi assertiva era outra coisa. E perambular pelos corredores amplos da câmara alta, um espaço que Luen conhecia bem, com um crachá temporário, foi uma sensação nova e libertadora.

 

         Seguindo em frente, Luen, longe divisou Luís, o funcionário mais antigo da câmara alta. Criatura imutável, sempre fazendo as mesmas coisas, a figura fazia lembrar a Dórian, mas Luen o conhecia bem, Luís era um visionário, apesar da função subalterna que exercia. Luen em um devaneio, pensou que se Dórian e Luís trovassem de lugar, ninguém perceberia a troca.

        — Heimdall, o nosso fiel guardião de Asgard, da ponte arco-íris Bifrost! — Falou alto Luen para Luís, que recebeu a deferência aterrado.

       — Senhora, primeira secretária, eu não entendo! — Devolveu Luís.

       — Cretino! Claro que você me entende bem! Seja transparente comigo, pelo menos uma vez na vida! Somos iguais! — Falou friamente Luen, em tom de autoridade, ela falava não no tom de pele, que ambos dividiam.

          — Sim! Senhora secretária, o que a senhora quer que eu faça? Calculo que seja algo fora do protocolo. — Devolveu o simples porteiro.

— Duas coisas, três na verdade! Primeiro faça o seu trabalho e dê uma geral, na minha pasta! — Ordenou Luen, erguendo a pasta, para Luís, era o meio da manhã, de um início de semana e não tinha muitas pessoas olhando a cena. Somente uma zeladora, que limpava a entrada da câmara alta, um estagiário e uma telefonista de idade avançada, ambos atrás de Luen. E claro, os olhos por detrás dos olhos eletrônicos, que olhavam a cena, eram do serviço de segurança da câmara alta vigiando.     

       — Pronto! Senhora primeira secretária. — Depois de olhar no interior da pasta zero, zero, sete de Luen.         

       — Chegará um envelope, daqui a pouco, quero que recebas, quero que mandes Leroy, o teu sobrinho, levar direto para mim, na minha sala! No meu gabinete — Falou firme Luen. 

        — Senhora primeira secretária...      

        — Sei meu querido Heimdall, foi eu que revisei o protocolo de segurança, o teu sobrinho, não pode ir até o segundo andar! —Disse Luen de forma complacente e continuou. — Obedeça, receba o documento e manda Leroy me entregar em mãos o envelope. Luen, tinha restringido os acessos em diferentes níveis de poder, quanto mais alto o andar, mais restrito eram os acessos. Somente naquele momento, Luen sentiu o quesito raça cor e gênero que as medidas tomadas tinham desencadeado. Quanto mais alto o nível, mais branco e mais masculino, ficava a cara do andar. Ali no penúltimo andar, Luan, a mulher negra era a soberana rainha Njinga, a única mulher negra com poder de mando na câmara alta.

       Luen, passou pela catraca, deixando para trás um pequeno caos, a dita senhora primeira secretária, estaria louca, pois estava quebrando protocolos que ela mesma tinha revisado. E como ela mesmo, tinha colocado um adendo, que somente ela a primeira secretária, ou pessoas que ela delegava poderes, podem ignorar os protocolos em casos especiais.

          E a Senhora primeira secretária, sabia que não demoraria para a aventureira irmã dela, que vivia na velha Europa, ligar dando efusivos vivas a novíssima postura e a mãe das duas também ligaria dizendo que estava preocupada com o rumo que a filha mais velha estava tomando. Mas Luen, a soberana Senhora primeira secretária, da câmara alta, estava mais preocupada, com o envelope, que chegaria dali a pouco. Um envelope ebúrneo, contendo a Revista Astro-Domo e em um texto em específico que ali estava publicado.      

Fragmento do livro Sono Paradoxal, de Samuel da Costa, poeta, contista e novelista em Itajaí, Santa Catarina.

Contato: samueldeitajai@yahoo.com.br

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário