sexta-feira, 1 de setembro de 2023

INDIGENTE

Por Waldir de Melo Filho (Walldyr Philho) (São Paulo, SP)


A noite fora uma das mais frias aquele ano. A temperatura chegou a incríveis

4°Celsius, fato histórico para um país de clima temperado como o nosso. A sensação era que estávamos voltando à era do gelo. Tudo era novo, assustador até. O frio doía de forma severa, inclemente como um bárbaro impiedoso que desconhecia o sentimento de empatia humana. Ele estava, além disso, como se fosse superior aos mortais que os congelava! Pairava, corria, deslizava sobre o véu do tempo devorando horas, minutos e segundo costurando com a linha da vulnerabilidade no tecido rompido do espaço!

O frio arrotava arrogância, prepotência com um orgulho desmedido, altivo, implacável e fazia o corpo vivo desejar a inanição da morte. Sim, somente ela seria capaz de enfrentar e parar a dor que sentíamos. Humanos e bichos eram agora uma única espécie sem distinção, pois todos ao seu modo morriam em agonia causada pela fúria de um clima insano, desconhecido que beirava o sobrenatural. Um frio que uivava seu hálito como um lobo ferido em noites de luar!

Mal se podia enxergar alguma coisa. Casas, carros e quaisquer outras coisas, espécie viva ou inanimada que fora coberta pelo manto gélido saído das entranhas malditas do abismo do tempo estavam congelados, estáticos diante da petrificação do gelo.

Fogueiras tímidas tremulavam nas calçadas em tambores de metal sujos, alimentados com o combustível do desespero humano! Livros, caixas, madeira e qualquer outro objeto que se rendesse a carbonização das chamas eram usados para produzir calor diante do devaneio inclemente do frio.

O ar estava impregnado com a fumaça negra, fétida do medo produzido. Fumaça intragável que pairava o ar como um subproduto da dor, gritos saídos de gargantas roucas, inflamadas, temperadas com lágrimas grossas e frias que rompiam as membranas das órbitas e preces ignoradas. Uma fumaça densa e gordurosa que se apegava as roupas, a pele e a mente como um parasita do inferno! Uma fumaça que dançava com passos pesados a valsa macabra dos condenados, subindo aos céus como emoliente do sacrifício humano no holocausto maldito da extinção!

A névoa deixava no ar um halo de mistério pavoroso ao entrar em contato com as fracas luzes dos postes! Havia silêncio como as noites agourentas do cemitério. Nada se manifestava, nem bichos e nem bactérias, todos estavam encolhidos na sua insignificância vulnerável diante do inesperado. Somente os humanos falavam alguma coisa motivada pelo desgosto do abandono e desespero.

Eu o vi chorando! Falava palavras desconexas como os murmúrios de um druida eloquente recitando seus feitiços na presença do sinistro. Carregava um saco com algumas tralhas, espólios queridos e inestimáveis da sua vidamiserável! Sua pele ensujecida buscava abrigo protetor no casaco rasgado de tecido fino, barato e fétido como um elefante enlameado tentando se proteger dos parasitas nas savanas da existência! Caminhava com passos tropeços como um ébrio enlouquecido privado de dignidade. Passou em frente a uma igreja que estava de portas abertas concedendo abrigo e distribuindo alguns cobertores e sopa quente. Chegou tarde, não havia mais nada. Ele não tinha direito de beber o caldo quente e ralo da sopa do infortúnio e nem se aquecer envolto no cobertor macio e limpo do amparo. Ele, não! Antes pelo contrário, fora jogado no lixo perdido da existência humana, descartado pelo divino que não o queria como criatura, filho ou orbe sagrada que precisava ser guardado nos recônditos celeste.

Queria chorar mais não tinha lágrimas, elas estavam ressecadas, congeladas no calabouço das suas emoções esquecidas. Entendeu que o direito de chorar não lhe pertencia também! Olhou um cachorro magro, sujo e fedido como ele, cheirar um resto de sopa deixada por alguém em um vasilhame descartável e rejeitar. Saiu andando ignorando a iguaria que não estava à altura do seu fino e apurado gosto requintado de cachorro de rua. Saiu andando com desprezo, isso porque desconhecia talvez a inanição da fome, a ferocidade em que ela devorava suas entranhas de dentro para fora como um câncer agressivo que não se pode conter.

A fome o debilitava, estagnava a sua mente pregando a na parede fria da exposição da miséria como um troféu de caça qualquer.

Sentiu uma dor absurda arrebentando o seu peito! Não era a dor do frio exatamente, era uma dor nova, diferente, muito mais forte que a que estava acostumado a sentir. Era a dor da vergonha, da rejeição... Uma dor que zombava do seu caráter, destruía a sua moral, incinerando sua honra de homem e esmagando com o peso de uma cordilheira a sua étnica! Era uma dor que o obrigava a fazer o que não queria como um coronel ditador ao seu escravo!

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Pegue e beba! Dizia a dor com a voz imperiosa, cheia de asco. Não era um nojo pelo prato disposto ao pé do poste na rua que fora rejeitado pelo cão. Era nojo dele que valia menos que o dejeto execrado da vida, nojo por alguém que perdera a identidade de ser gente e nem bicho conseguia ser! Era somente uma metamorfose ambulante que perambulava entre a sandice e lucidez, entre o certo e errado, entre o ébrio e sobriedade, entre o humano e animal.

Sentia aquela voz arder em sua consciência como uma oferenda agonizante do deus moloque. Ardia em seu corpo inteiro em uma dor reverberante que percorria cada célula do seu corpo, cada tendão, cada músculo arrebentando tudo, absolutamente tudo. E de forma inconsciente, se abaixou pegou a sopa descartada pela ignorância indiferente da ingratidão alheia e verteu seu caldo gelado como se bebesse o néctar divino dos deuses. Bebeu o caldo enriquecido da compaixão de alguém e do desprezo do cão que o rejeitou! Havia um osso de frango junto ao resto envolto em algumas fatias de couves cortadas grosseiramente... Seus olhos fundos e cinzentos brilharam ao vê aiguaria jogada. Sentiu a mesma alegria que um garimpeiro sente ao encontrar uma pepita preciosa.

Seu corpo já enfraquecido tremia a inanição e hipotermia, lutava para se manter de pé como um gladiador ferido na arena da morte. A dor veio forte, gritou com voz grave de ódio autoritária, feroz, impiedosa...

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Pegue e roa! Dizia ela se referindo ao osso de frango!

Suas mãos enrijecidas pelo frio, sujas pela miséria pegou o achado, levou á boca e comeu! Seus dentes estraçalhavam o osso frágil em busca do caldo tutanoso do seu interior que o ajudasse a alimentar seu corpo faminto.

Comia os fragmentos do osso e bebia o caldo da sopa murmurando abstratos como um animal encurralado.

Ao fundo, uma mocinha entoava uma canção da cantora “Shirley Carvalhães”. Cantava lindamente um hino com letras fortes, diretas como se fora escrita exclusivamente para ele. Uma letra que o acusava, sentenciava como um condenado ouvindo a deliberação da sua morte eterna.

Fala com Deus

Nada vai bem, vai tudo mal

Tempo ruim, grande temporal

Desabou sobre ti tudo aquilo

O que você mesmo plantou pra você

A meteorologia da consciência te diz que vai continuar a chover.

Meu medo era esse, que entre os dias maus

Tu fostes apanhado por este temporal

Com a casa vazia das armaduras de Deus

Sem forças pra vencer o inimigo seu

Tua consciência te diz que o tempo não vai mudar

Mas eu digo que vai porque Deus ele é Deus...

Ele não conseguiu ouvir o resto da canção. Seu peito arrebentou de tanta dor e grunhindo como uma besta ferida chorou! Chorou forte, intenso como há muitos anos não fazia... Chorou a dor de ser abandonado pela família que não se importava com ele, que não ligava, não o procurava... Chorou a falta dos amigos que não tinha! A dor de ser esquecido por Deus! Dor por ser tratado como lixo, por valer menos que o cachorro de rua que rejeitou a comida... Chorou porque existia e ele não queria mais isso, não queria viver e ainda estava ali, o frio tão forte e denso da noite não foi capaz de acabar com seu sofrimento e por isso chorou! Era um choro selvagem que jorrava do interior esquecido, ignorado e brigava com sua essência querendo se libertar da transformação da aberração que era! Chorou tudo e enfraquecido, sujo, fedido e faminto, encolheu se no canto da miséria imunda da sua insignificância com seu peito acelerado, declinou a cabeça no poste e pereceu!

Não tinha direito a vida! Estava ali ocupando um lugar que não lhe pertencia como um usurpador!

Morreu sozinho, abandonado como um decrépito porque não lhe era permitido à companhia de alguém, de um amigo qualquer!

Morreu porque a vida enojada não o queria. Simplesmente morreu porque como bicho humano não tinha nenhuma serventia!

Walldyr Philho

Poeta/ Escritor

10 comentários:

  1. Lindo conto, muito triste e verdadeiro, Parabéns

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    1. Pois é meu amigo, a realidade da vida de algumas pessoas são bem tristes mesmo, infelizmente. Muito obrigado pelo carinho da leitura. Forte abraço.

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  2. Muito lindo, triste e infelizmente a triste realidade de muitos!!!

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    1. Verdade. As vezes achamos que sofremos até ver situação assim bem diante dos nossos olhos... Imensamente agradecido pelo carinho da leitura, grato de verdade. Forte abraço

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  3. JOELMA DA SILVA DE MELO4 de setembro de 2023 às 09:03

    Além de muito lindo,um misto de realidade e tristeza!!! Parabéns !!

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    1. Oi minha irmã que prazer incrível encontrar você por aqui, feliz demais kkkkkk. Quero te agradecer imensamente pelo enorme carinho da leitura e apoio amigo de sempre. Forte abraço minha amiga.

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  4. Muito lindo, ele escreve com o coração, e da pra perceber quando começa a ler. Está de parabéns

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  5. Triste mais é a realidade de muitos parabéns

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    1. Bom dia. Pois Caro (a) amigo(a). Essa realidade está crescendo de uma maneira tão alarmante que nos assusta quanto ao futuro... Obrigado pelo carinho da leitura, forte abraço🤜🤛

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  6. Bom dia nobre amigo (a). Não imagina o tamanho da felicidade que sinto ao ler seu comentário. Ele afaga meu coração de uma forma tão singular e carinhosa que me enche de coragem para continuar escrevendo. Muito obrigado. Forte abraço, bom demais encontrar você por aqui ♥️.

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